O risco de cercear a cultura de um país em reação a seus governantes
Cancelamentos, bloqueios e sanções são em sua essência instrumentos anticulturais
Da Redação
Publicado em 13 de março de 2022 às 10h19.
Última atualização em 31 de março de 2023 às 15h07.
Marta Porto
“ Uma arte cercear a outra? Não pode. O rap é a música da liberdade”.
Mano Brown, Podpah, março 2022
Não sei se Mano Brown concorda ou não com minha posição contráriaàonda de cancelamentos de artistas e intelectuais russos desde que Vladimir Putin resolveu atacar a Ucrânia e empreender sua guerra insana. Mas, ao responder no Podpah “uma arte cercear a outra? Não pode”, Brown coloca a pergunta que me faço todos os dias desde que os bloqueios começaram: podem as organizações culturais cercearem outras culturas, mesmo em reação às ações extremas de seus governantes?
Na coluna anterior, expus alguns dos motivos que me levam a responder que não. Além de não combinar com as ideias de democracia liberal que grande parte dessas instituições defende, o cancelamento leva à percepção de que os setores culturais e seus dirigentes estão rapidamente dispostos a abrir mão de estabelecer pontes usando os instrumentos já conhecidos pela comunidade cultural, os intercâmbios e a cooperação do conhecimento que as artes oferecem. Ou afirmando a memória também como espaço de resistência. Em O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera soube traduzir isso muito bem: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
As artes são um dos raros lugares em que é possível promover encontros. Criar condições de convivência pacífica e fazer pessoas e comunidades em conflito encontrarem maneiras de cantarem, dançarem, chorarem e se emocionarem umas com as outras. É também o lugar onde se reconhecem e se dá voz às resistências quase heróicas de criadores que fazem oposição a regimes autoritários. É uma janela aberta para a inteligência e um abrigo para as diferenças, transcendendo fronteiras reais ou simbólicas em convites para uma zona de encontros. Erguer muros em um mundo que já pegou gosto por construí-los é em si uma atitude anti cultural.
Assumir este lugar implica riscos, como o de dar visibilidade àqueles que se colocam ao lado sujo da história, violam princípios de dignidade humana e pregam a violência. Isso tudo é verdade, e as organizações culturais devem estar alertas para não oferecerem de forma acrítica um palco para ideias como essas.
Mas, diante da emergência de assegurar espaços plurais em tempos em que os vínculos com identidades estreitas são celebrados, empreender uma jornada de cancelamentos não parece ser o melhor caminho para quem atua por e pela cultura. Sobretudo em tempos de guerra e ódio.
Ao excluir de sua programação o filme do jovem cineasta russo Kirill Sokolov, o Festival de Glasgow perde a oportunidade de ter um opositor ao regime e à guerra de Putin. Qual a vantagem cultural desta decisão?
Lembro de uma fala de Rebecca Lamoin, Diretora de Public Engagement and Learning at Queensland Performing Arts Centre, dita em um contexto diferente mas que ajuda a jogar luzes nesta discussão:
“ Não há maneira fácil de lidar com a vida na sociedade. Viver em sociedade, encontrar formas de compartilhar um espaço comum e agir nele envolve tensão e história. Arte e ciência também refletem essa tensão. É por isso que também deve ter um lugar nas organizações culturais. No entanto, a questão de quando e como tomar uma posição é muito pertinente. O perigo de se envolver em políticas partidárias e agendas pessoais é real. Acreditamos, no entanto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a missão de muitas organizações culturais de promover a compreensão, o diálogo, a tolerância e o respeito, bem como o necessário pensamento crítico, podem fornecer a orientação necessária na tomada de decisões. As organizações culturais devem permanecer relevantes na vida das pessoas. Podem permanecer em silêncio diante das injustiças sociais, da intolerância, do ódio e da discriminação?”
Não podem e não devem. Para isso existem os serviços de comunicação, os educativos, as curadorias, para organizar formas de tomar posições claras sem que isso implique censura, bloqueios e exclusão por noções de identidades estreitas.
Em uma guerra, mesmo quando está claro o lado do agressor e do agredido, como nesta guerra de Putin contra a Ucrânia, há perdedores em todos os lados. Há medo, incompreensão, dor e perdas. E há sobretudo a prevalência de um ethos pouco disposto a promover zonas humanitárias de aproximação, afeto e trocas.
A cooperação cultural se funda na crença de que essas zonas são possíveis e desejáveis. Não propõe que as artes, a poesia, a livre criação humana e as instituições que as tornam públicas vivam em um mundo paroquial e pequeno, longe do colapso que afeta a vida real das pessoas, mas faz um convite para não fazer do colapso um destino.
Mimetizar as sanções e os bloqueios econômicos nas instituições que cuidam do simbólico sugere que falhamos em proteger o valor da pluralidade, em detrimento da opressão.
Marta Porto
“ Uma arte cercear a outra? Não pode. O rap é a música da liberdade”.
Mano Brown, Podpah, março 2022
Não sei se Mano Brown concorda ou não com minha posição contráriaàonda de cancelamentos de artistas e intelectuais russos desde que Vladimir Putin resolveu atacar a Ucrânia e empreender sua guerra insana. Mas, ao responder no Podpah “uma arte cercear a outra? Não pode”, Brown coloca a pergunta que me faço todos os dias desde que os bloqueios começaram: podem as organizações culturais cercearem outras culturas, mesmo em reação às ações extremas de seus governantes?
Na coluna anterior, expus alguns dos motivos que me levam a responder que não. Além de não combinar com as ideias de democracia liberal que grande parte dessas instituições defende, o cancelamento leva à percepção de que os setores culturais e seus dirigentes estão rapidamente dispostos a abrir mão de estabelecer pontes usando os instrumentos já conhecidos pela comunidade cultural, os intercâmbios e a cooperação do conhecimento que as artes oferecem. Ou afirmando a memória também como espaço de resistência. Em O Livro do Riso e do Esquecimento, Milan Kundera soube traduzir isso muito bem: “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
As artes são um dos raros lugares em que é possível promover encontros. Criar condições de convivência pacífica e fazer pessoas e comunidades em conflito encontrarem maneiras de cantarem, dançarem, chorarem e se emocionarem umas com as outras. É também o lugar onde se reconhecem e se dá voz às resistências quase heróicas de criadores que fazem oposição a regimes autoritários. É uma janela aberta para a inteligência e um abrigo para as diferenças, transcendendo fronteiras reais ou simbólicas em convites para uma zona de encontros. Erguer muros em um mundo que já pegou gosto por construí-los é em si uma atitude anti cultural.
Assumir este lugar implica riscos, como o de dar visibilidade àqueles que se colocam ao lado sujo da história, violam princípios de dignidade humana e pregam a violência. Isso tudo é verdade, e as organizações culturais devem estar alertas para não oferecerem de forma acrítica um palco para ideias como essas.
Mas, diante da emergência de assegurar espaços plurais em tempos em que os vínculos com identidades estreitas são celebrados, empreender uma jornada de cancelamentos não parece ser o melhor caminho para quem atua por e pela cultura. Sobretudo em tempos de guerra e ódio.
Ao excluir de sua programação o filme do jovem cineasta russo Kirill Sokolov, o Festival de Glasgow perde a oportunidade de ter um opositor ao regime e à guerra de Putin. Qual a vantagem cultural desta decisão?
Lembro de uma fala de Rebecca Lamoin, Diretora de Public Engagement and Learning at Queensland Performing Arts Centre, dita em um contexto diferente mas que ajuda a jogar luzes nesta discussão:
“ Não há maneira fácil de lidar com a vida na sociedade. Viver em sociedade, encontrar formas de compartilhar um espaço comum e agir nele envolve tensão e história. Arte e ciência também refletem essa tensão. É por isso que também deve ter um lugar nas organizações culturais. No entanto, a questão de quando e como tomar uma posição é muito pertinente. O perigo de se envolver em políticas partidárias e agendas pessoais é real. Acreditamos, no entanto, que a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a missão de muitas organizações culturais de promover a compreensão, o diálogo, a tolerância e o respeito, bem como o necessário pensamento crítico, podem fornecer a orientação necessária na tomada de decisões. As organizações culturais devem permanecer relevantes na vida das pessoas. Podem permanecer em silêncio diante das injustiças sociais, da intolerância, do ódio e da discriminação?”
Não podem e não devem. Para isso existem os serviços de comunicação, os educativos, as curadorias, para organizar formas de tomar posições claras sem que isso implique censura, bloqueios e exclusão por noções de identidades estreitas.
Em uma guerra, mesmo quando está claro o lado do agressor e do agredido, como nesta guerra de Putin contra a Ucrânia, há perdedores em todos os lados. Há medo, incompreensão, dor e perdas. E há sobretudo a prevalência de um ethos pouco disposto a promover zonas humanitárias de aproximação, afeto e trocas.
A cooperação cultural se funda na crença de que essas zonas são possíveis e desejáveis. Não propõe que as artes, a poesia, a livre criação humana e as instituições que as tornam públicas vivam em um mundo paroquial e pequeno, longe do colapso que afeta a vida real das pessoas, mas faz um convite para não fazer do colapso um destino.
Mimetizar as sanções e os bloqueios econômicos nas instituições que cuidam do simbólico sugere que falhamos em proteger o valor da pluralidade, em detrimento da opressão.