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O que as artes agregam ao debate sobre educação e inovação produtiva

Para Marta Porto, ex-coordenadora da Unesco, o modelo “fordista” de escola precisa mudar e dar lugar a um novo olhar sobre aprendizado,

Membros do Balé do Teatro Municipal de Santiago realizam um ensaio de sua última atuação. (Miguel Sanchez/AFP)
RC

Rodrigo Caetano

Publicado em 18 de janeiro de 2022 às 16h21.

Última atualização em 18 de janeiro de 2022 às 16h22.

A relação positiva entre arte e excelência na educação está amplamente comprovada por estudos como o de James Catterall (1948-2017), professor da Universidade da Califórnia (UCLA) que dedicou boa parte da sua vida para analisar pesquisas que provam como as artes desenvolvem a cognição do indivíduo, habilidade aplicável a qualquer outra área do conhecimento.

Ana Mae Barbosa, PhD pelas Universidade de Columbia e Central England, e uma das maiores especialistas brasileiras no tema, em artigo publicado na Revista 24 do Observatório Itaú Cultural (2018), mostrou que a introdução das artes nos ensinos fundamental e médio nos Estados Unidos, no programa conhecido como Stem (Science, Technology, Engineering and Mathematics) melhorou significativamente o fraco desempenho em ciências dos estudantes norte-americanos. A partir dos estudos da pesquisadora Georgette Yakman, a sigla passou a ser conhecida como Steam, que inclui artes e design, ampliando nos jovens as competências de criação e imaginação, essenciais para a investigação e o conhecimento científico.

Por que menciono isso no meio de uma tempestade provocada pela pandemia que deixou mais de 5,5 milhões de crianças e jovens brasileiros sem aulas em 2020 [1] e segundo estudo recente divulgado pelo Todos pela Educação, 244 mil crianças e jovens entre 6-14 anos sem o direito à educação?

Primeiro, porque o modelo fordista de escola precisa mudar. A pandemia acelerou um debate que se arrasta há anos, da necessidade de olharmos para um sistema de ensino-aprendizagem que não responde mais ao tempo que vivemos, e que faz as crianças e jovens de hoje, como seus pais, avós, bisavós, irem aos bancos escolares com pouca ou nenhuma motivação para enfrentarem o dia de estudos. Além do modelo híbrido, é preciso aprofundar o que queremos das escolas, qual ambiente físico melhor acolhe e estimula em uma era de uso exacerbado das tecnologias, se as didáticas e práticas que discutimos incentiva a cooperação, a criatividade e a resolução de problemas ou se ainda estamos presos em um sistema que contribui para a evasão e o desinteresse.

Como a cultura pode contribuir para a mudança? E como pode cooperar com o desenvolvimento de jovens mais preparados?

Primeiro, arte e cultura são ferramentas de extrema importância para o conhecimento e a educação de qualidade, como os estudos de Catterall e Yakman provam.  Contribuem para formar cidadãos mais críticos, respeitosos e atentos a sociedade onde vivem. Atribuem aos jovens maior capacidade imaginativa e de criação de cenários mais ricos e complexos. Competências, que os últimos anos de crises combinadas - tensões políticas, extremismos diversos e crise climática tudo agravado pela crise sanitária global do Covid19-, se mostraram determinantes para a qualidade ou não dos pactos e das respostas postas na mesa para enfrentar esses desafios. A pergunta é direta: como seremos capazes de tomar melhores decisões, para o nosso futuro e o do planeta, sem apostar em uma educação de longo prazo que também priorize a criatividade, a ética, a consciência cívica e a capacidade de se estar “nos lugares e nas peles dos outros”, como nos propunha o poeta Amós Oz?

É no contato com textos clássicos, populares e contemporâneos do teatro e da literatura que crianças e jovens encontram traduzidos dilemas éticos e dramas sociais que vão determinar boa parte de suas vidas adultas. Na dança e no teatro associam cooperação, entrega, confiança e alteridade como bases para um resultado comum. Nas artes visuais experimentam a ler e a expressar em imagens a capacidade de imaginar livremente ou de traduzir experiências de diversidade e luta contra a opressão. Todas desenvolvem a criatividade, a imaginação e o senso crítico.

Segundo, porque a produtividade do país depende de formação continuada e o motor econômico no século 21 é a economia do conhecimento, impulsionada pelo investimento em inovação e no ensino das ciências básicas, pelo acesso e desenvolvimento das tecnologias e pelos setores das artes, design, gastronomia, moda, entretenimento e todo o conjunto das chamadas indústrias criativas.

 

Pegando o recorte apenas das atividades culturais, segundo informe divulgado pela Unesco em 2021, elas movimentam 6,1% da economia mundial e geram uma renda anual de US$ 2,25 bilhões e quase 30 milhões de empregos no mundo, “empregando mais pessoas com idades entre 15 e 29 que qualquer outro setor. A indústrias culturais e criativas se tornaram essenciais para o crescimento econômico inclusivo, reduzindo as desigualdades e colaborando para o desenvolvimento sustentável. Elas estão entre os setores que mais crescem no mundo”. [2]

É certo que as indústrias criativas, a inovação e o entretenimento, impulsionam a economia brasileira e a global, mas seguindo outros setores a tendência é de concentração das melhores oportunidades e remunerações, pois exigem mão de obra qualificada. A desestruturação dos setores artísticos e cultural provocados por uma gestão intencionalmente catastrófica operada pelo governo federal, em nada ajuda o incremento desses setores, além de exigir, nos próximos anos, um esforço grande de articulação e inovação institucional.

Mas, no meio dessas crises combinadas, há algumas oportunidades que podemos aproveitar. Olhando para um processo de transição, enquanto estamos vagarosamente nos preparando para mudanças mais estruturais, uma delas é criar oportunidades formativas, nas diversas linguagens e conteúdos das artes e da cultura, as chamadas disciplinas eletivas, para o ensino médio e profissionalizante em linha com a implantação obrigatória em 2022 do novo ensino médio. Com a ampliação do tempo mínimo dos estudantes de 800 para 1.000 horas anuais, e uma base curricular mais flexível, estruturada em trilhas formativas e com oferta que deveria ser mais variada, há uma chance de ampliarmos conteúdos nas escolas ligados a fotografia, design, música, comunicação cultural, artes cênicas, visuais e audiovisuais, literatura, gestão do patrimônio e diversas outras modalidades de ensino e aprendizagem que as atividades culturais oferecem, durante os três anos do ciclo médio. Isso já faria uma boa diferença para enfrentar os dois desafios que mencionei acima.

Para acontecer é preciso um plano orientado de trabalho – pedagógico, mas também de governança - e o engajamento do sistema cultural, que enfrenta dificuldades combinadas, tem estrutura desigual nos Estados e municípios brasileiros, mas apresenta resiliência e uma boa rede básica de gestão. Há instituições, equipamentos, profissionais, gestores, artistas de altíssima qualidade que poderiam se engajar em um programa dessa natureza: elaborar e implantar um plano de ação para oferta de disciplinas eletivas na trilha Linguagens e suas Tecnologias, cuja oferta é pequena e em alguns locais do país, inexistente.

Quantos jovens não têm assim uma oportunidade interrompida de aprofundar seus estudos nas artes, seguindo ou não carreira? E quantos profissionais não perdem um imenso mercado de trabalho?

Um dos impeditivos para avançarmos é a dificuldade das secretarias de cultura disporem de tempo e técnicos para organizarem essa oferta, em especial no ciclo pandêmico quando há demandas urgentes na mesa, como a implantação das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Mas, abrir um diálogo com as secretarias de educação e organizar uma oferta a partir da sua rede de programas e instituições, é algo que pode ser feito de imediato.  Uma saída complementar é envolver fundações e institutos de educação e cultura que reúnam especialistas das áreas para elaborar as bases de um Plano de Arte e Cultura para o Novo Ensino Médio, uma bússola inicial que oriente os pontos-chave para um processo de implantação.

O importante é começar.


[1] Cenário da Exclusão Escolar no Brasil (Unicef, 2021)

[2] Cultura e Desenvolvimento no Brasil (Unesco, 2021)

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A relação positiva entre arte e excelência na educação está amplamente comprovada por estudos como o de James Catterall (1948-2017), professor da Universidade da Califórnia (UCLA) que dedicou boa parte da sua vida para analisar pesquisas que provam como as artes desenvolvem a cognição do indivíduo, habilidade aplicável a qualquer outra área do conhecimento.

Ana Mae Barbosa, PhD pelas Universidade de Columbia e Central England, e uma das maiores especialistas brasileiras no tema, em artigo publicado na Revista 24 do Observatório Itaú Cultural (2018), mostrou que a introdução das artes nos ensinos fundamental e médio nos Estados Unidos, no programa conhecido como Stem (Science, Technology, Engineering and Mathematics) melhorou significativamente o fraco desempenho em ciências dos estudantes norte-americanos. A partir dos estudos da pesquisadora Georgette Yakman, a sigla passou a ser conhecida como Steam, que inclui artes e design, ampliando nos jovens as competências de criação e imaginação, essenciais para a investigação e o conhecimento científico.

Por que menciono isso no meio de uma tempestade provocada pela pandemia que deixou mais de 5,5 milhões de crianças e jovens brasileiros sem aulas em 2020 [1] e segundo estudo recente divulgado pelo Todos pela Educação, 244 mil crianças e jovens entre 6-14 anos sem o direito à educação?

Primeiro, porque o modelo fordista de escola precisa mudar. A pandemia acelerou um debate que se arrasta há anos, da necessidade de olharmos para um sistema de ensino-aprendizagem que não responde mais ao tempo que vivemos, e que faz as crianças e jovens de hoje, como seus pais, avós, bisavós, irem aos bancos escolares com pouca ou nenhuma motivação para enfrentarem o dia de estudos. Além do modelo híbrido, é preciso aprofundar o que queremos das escolas, qual ambiente físico melhor acolhe e estimula em uma era de uso exacerbado das tecnologias, se as didáticas e práticas que discutimos incentiva a cooperação, a criatividade e a resolução de problemas ou se ainda estamos presos em um sistema que contribui para a evasão e o desinteresse.

Como a cultura pode contribuir para a mudança? E como pode cooperar com o desenvolvimento de jovens mais preparados?

Primeiro, arte e cultura são ferramentas de extrema importância para o conhecimento e a educação de qualidade, como os estudos de Catterall e Yakman provam.  Contribuem para formar cidadãos mais críticos, respeitosos e atentos a sociedade onde vivem. Atribuem aos jovens maior capacidade imaginativa e de criação de cenários mais ricos e complexos. Competências, que os últimos anos de crises combinadas - tensões políticas, extremismos diversos e crise climática tudo agravado pela crise sanitária global do Covid19-, se mostraram determinantes para a qualidade ou não dos pactos e das respostas postas na mesa para enfrentar esses desafios. A pergunta é direta: como seremos capazes de tomar melhores decisões, para o nosso futuro e o do planeta, sem apostar em uma educação de longo prazo que também priorize a criatividade, a ética, a consciência cívica e a capacidade de se estar “nos lugares e nas peles dos outros”, como nos propunha o poeta Amós Oz?

É no contato com textos clássicos, populares e contemporâneos do teatro e da literatura que crianças e jovens encontram traduzidos dilemas éticos e dramas sociais que vão determinar boa parte de suas vidas adultas. Na dança e no teatro associam cooperação, entrega, confiança e alteridade como bases para um resultado comum. Nas artes visuais experimentam a ler e a expressar em imagens a capacidade de imaginar livremente ou de traduzir experiências de diversidade e luta contra a opressão. Todas desenvolvem a criatividade, a imaginação e o senso crítico.

Segundo, porque a produtividade do país depende de formação continuada e o motor econômico no século 21 é a economia do conhecimento, impulsionada pelo investimento em inovação e no ensino das ciências básicas, pelo acesso e desenvolvimento das tecnologias e pelos setores das artes, design, gastronomia, moda, entretenimento e todo o conjunto das chamadas indústrias criativas.

 

Pegando o recorte apenas das atividades culturais, segundo informe divulgado pela Unesco em 2021, elas movimentam 6,1% da economia mundial e geram uma renda anual de US$ 2,25 bilhões e quase 30 milhões de empregos no mundo, “empregando mais pessoas com idades entre 15 e 29 que qualquer outro setor. A indústrias culturais e criativas se tornaram essenciais para o crescimento econômico inclusivo, reduzindo as desigualdades e colaborando para o desenvolvimento sustentável. Elas estão entre os setores que mais crescem no mundo”. [2]

É certo que as indústrias criativas, a inovação e o entretenimento, impulsionam a economia brasileira e a global, mas seguindo outros setores a tendência é de concentração das melhores oportunidades e remunerações, pois exigem mão de obra qualificada. A desestruturação dos setores artísticos e cultural provocados por uma gestão intencionalmente catastrófica operada pelo governo federal, em nada ajuda o incremento desses setores, além de exigir, nos próximos anos, um esforço grande de articulação e inovação institucional.

Mas, no meio dessas crises combinadas, há algumas oportunidades que podemos aproveitar. Olhando para um processo de transição, enquanto estamos vagarosamente nos preparando para mudanças mais estruturais, uma delas é criar oportunidades formativas, nas diversas linguagens e conteúdos das artes e da cultura, as chamadas disciplinas eletivas, para o ensino médio e profissionalizante em linha com a implantação obrigatória em 2022 do novo ensino médio. Com a ampliação do tempo mínimo dos estudantes de 800 para 1.000 horas anuais, e uma base curricular mais flexível, estruturada em trilhas formativas e com oferta que deveria ser mais variada, há uma chance de ampliarmos conteúdos nas escolas ligados a fotografia, design, música, comunicação cultural, artes cênicas, visuais e audiovisuais, literatura, gestão do patrimônio e diversas outras modalidades de ensino e aprendizagem que as atividades culturais oferecem, durante os três anos do ciclo médio. Isso já faria uma boa diferença para enfrentar os dois desafios que mencionei acima.

Para acontecer é preciso um plano orientado de trabalho – pedagógico, mas também de governança - e o engajamento do sistema cultural, que enfrenta dificuldades combinadas, tem estrutura desigual nos Estados e municípios brasileiros, mas apresenta resiliência e uma boa rede básica de gestão. Há instituições, equipamentos, profissionais, gestores, artistas de altíssima qualidade que poderiam se engajar em um programa dessa natureza: elaborar e implantar um plano de ação para oferta de disciplinas eletivas na trilha Linguagens e suas Tecnologias, cuja oferta é pequena e em alguns locais do país, inexistente.

Quantos jovens não têm assim uma oportunidade interrompida de aprofundar seus estudos nas artes, seguindo ou não carreira? E quantos profissionais não perdem um imenso mercado de trabalho?

Um dos impeditivos para avançarmos é a dificuldade das secretarias de cultura disporem de tempo e técnicos para organizarem essa oferta, em especial no ciclo pandêmico quando há demandas urgentes na mesa, como a implantação das leis Aldir Blanc e Paulo Gustavo. Mas, abrir um diálogo com as secretarias de educação e organizar uma oferta a partir da sua rede de programas e instituições, é algo que pode ser feito de imediato.  Uma saída complementar é envolver fundações e institutos de educação e cultura que reúnam especialistas das áreas para elaborar as bases de um Plano de Arte e Cultura para o Novo Ensino Médio, uma bússola inicial que oriente os pontos-chave para um processo de implantação.

O importante é começar.


[1] Cenário da Exclusão Escolar no Brasil (Unicef, 2021)

[2] Cultura e Desenvolvimento no Brasil (Unesco, 2021)

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