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O Brasil que nunca foi colônia

Há uma sofisticação viva nesse caldo cultural formado pela diversidade brasileira. Que desafia o projeto de destruição e aponta novos caminhos

Emicida: “A cultura brasileira, mano, é o lugar onde o Brasil nunca foi colônia” (Divulgação/Divulgação)
Marta Porto

Jornalista e crítica da cultura

Publicado em 31 de março de 2022 às 15h42.

Última atualização em 31 de maio de 2023 às 15h19.

Há poucas semanas, assisti à série 2022, dirigida por Monique Gardenberg e Felipe Hirsch. São três episódios que revelam, através de encontros musicais que emocionam, a sofisticação e a riqueza dessa fonte original chamada cultura brasileira. Quem não assistiu, deveria. É um painel do Brasil que dá certo, que se insurge contra o fracasso e a mediocridade e que por sua força rítmica, cultural e artística é reverenciado pelo mundo. Com 22 canções, a série se divide em dois atos com encontros entre artistas que atravessam batidas e gêneros diversos, e um terceiro ato com seus testemunhos. Os três atos formam um caleidoscópio da força cultural do Brasil, da sua inventividade e da insurgência do nosso povo contra formas históricas de dominação. É nesse terceiro ato que colhi a frase que dá título a este texto, dita por Emicida: “A cultura brasileira, mano, é o lugar onde o Brasil nunca foi colônia”.

Nos dias seguintes à passagem da série, parei para assistir à segunda temporada do Mano a Mano, conduzido por Mano Brown e um dos melhores podcasts produzidos nos últimos anos. A entrevista de estreia foi com o mesmo Emicida e ofereceu uma aula de história e de cultura universalista elaborada por dois homens que têm em comum mais do que as origens vindas das duras periferias paulistanas. Duas cabeças curiosas, questionadoras, críticas, com sede de aprender sempre. Um diferencial imenso em um país onde quem menos pensa criticamente parece se deleitar com a própria ignorância. E quem menos recebeu as oportunidades objetivas de amadurecer por essa via é quem oferece a ponte para milhões de brasileiros acreditarem na leitura e na cultura como fontes de criação e liberdade. Primeiro pessoal, depois coletiva.

Anitta e Felipe Neto são outros bons exemplos. Celebridades globais, vencedores na indústria do entretenimento, onde a competição é enorme e as vitórias são difíceis de se sustentarem no tempo, ambos entregam ao país mais do que seus sucessos financeiros. Oferecem uma plataforma de como lidar com a alienação imposta por um sistema que não prioriza a educação de qualidade e que despreza a cultura como ativo econômico e social. Gostando ou não dos “produtos” que eles oferecem, nas regras globais de sucesso eles estão na ponta do ranking.

Um dos maiores indicadores de que uma nação está no caminho do desenvolvimento é a sua capacidade de olhar para tudo que o singulariza e fazer disso um caminho de prosperidade. Quando um país faz pouco caso das suas fontes originais de riqueza, ele fracassa. Quando ele opta por desrespeitar seu povo, ele fracassa. Quando ele toma decisões alheias às exigências e desafios do seu tempo, ele fracassa. Um fracasso medido em baixo crescimento e massas de pessoas gerações após gerações submetidas a falta de oportunidades, fome, pobreza, violência e degradação de suas condições de vida.

O Brasil possui essas fontes originais oferecidas pela natureza abundante e pela resiliência e inventividade do seu povo. Mas, é impactante como decidimos não só ignorar, mas desprezar o que nos torna ricos diante do mundo.

A destruição da natureza é, além de um crime contra a humanidade traduzido no agravamento da crise ecológica, uma perda de oportunidade econômica. João Moreira Salles, em artigo publicado em 25 de março na Revista Piauí, Notas sobre três Presidentes, duas bombas e o fim do mundo, mostra o desastre que nós brasileiros resolvemos empreender:

“Nossa arma verde-amarela de destruição em massa não produz efeitos tão instantâneos quanto as das nações nucleares, mas é igualmente letal. Trata-se, é claro, da destruição da Amazônia, a nossa bomba ecológica.

O bioma amazônico é um dos sistemas vitais para o funcionamento do planeta. Controla pelo menos três fluxos essenciais à manutenção da vida: o do carbono, o da biodiversidade e o dos ciclos hidrológicos. Esses fluxos vitais, ‘sistemas de suporte da vida’, na expressão de cientistas, não passam de nove, o que nos torna responsáveis por pelo menos um terço deles”.

Na cultura não é diferente. Não se desprezam apenas os artistas brasileiros, mas também as tecnologias sociais que abundam nas periferias, subúrbios e cidades brasileiras. As tecnologias de sobrevivência e as de vivência. Como as que foram decisivas durante a pandemia para fazer chegar alimentos e renda para milhões de brasileiros, as que impedem as favelas de sucumbirem à violência do Estado e do crime organizado, as que encontram alternativas diárias de solidariedade ativa em cada rincão do país. Se elas já estão presentes na lógica de investimentos privados, na área pública ainda é um desafio aproximar programas e decisões políticas daquilo que a sociedade civil produz de melhor.

Há uma sofisticação viva nesse caldo cultural formado pela diversidade brasileira. Que desafia o projeto de destruição e aponta novos caminhos.

Se quisermos ter uma chance de, ao navegarmos na incerteza que estes tempos nos oferecem, ter um lugar na mesa para imaginar diferentes cenários de futuro, é preciso começar com aquilo que traduz nossa abundância. E o potencial é grande se o Brasil for capaz de olhar para si e para onde caminha a economia global.

Segundo a Pesquisa Global de Entretenimento e Mídia (E&M) 2021-25, da PwC, a receita global total de E&M caiu 3,8% em 2020 — de longe a maior retração na história — mas “embora os impactos da pandemia nos diferentes segmentos de E&M sejam assimétricos, a previsão de receitas para a indústria permanece robusta. A contração causada pela pandemia em 2020 dá lugar a uma forte recuperação em 2021 e à retomada do crescimento contínuo acima do PIB global nos próximos cinco anos”.

Mesmo com o impacto negativo da covid19 no mercado de mídia e entretenimento, as projeções de crescimento são otimistas e o Brasil é um celeiro de talentos, prêmios e artistas bem sucedidos. O que falta? Investir em formação artística e técnica e nas áreas vinculadas ao mercado de E&M desde a educação básica apostando fortemente em jovens e empreendimentos deste setor. Em uma coluna anterior abordei este tema.

As perspectivas e investimentos em setores vinculados à economia verde e do cuidado são ainda mais fortes. Aqui estão concentrados cerca de 3 trilhões de dólares em ativos.Os setores de energia, agricultura, serviços e indústrias da economia verde devem concentrar boa parte das oportunidades de empregos de qualidade nos próximos anos. Parte desse esforço foi lançado em outubro de 2021 pela ONU em seu Acelerador Global das Nações Unidas para Empregos e Proteção Social, com metas de gerar 400 milhões de empregos vinculados às economias verde e assistencial até 2030.

O Brasil pode ter oferta abundante e vantagem competitiva nessas duas áreas. Mas, estimular o seu crescimento será uma tarefa inconclusa se não for comprometida com uma aspiração universalista, aquele postulado básico criado por homens e mulheres que considera que existem direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e que não deveriam ser negados a nenhum indivíduo. Muito menos à maioria do povo de um país.

Marta Porto é Jornalista, crítica da cultura e fundadora da Marta Porto Consultoria. Foi Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Coordenadora da UNESCO/RJ e Membro do Comitê que redigiu a Agenda 21 de Cultura

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Há poucas semanas, assisti à série 2022, dirigida por Monique Gardenberg e Felipe Hirsch. São três episódios que revelam, através de encontros musicais que emocionam, a sofisticação e a riqueza dessa fonte original chamada cultura brasileira. Quem não assistiu, deveria. É um painel do Brasil que dá certo, que se insurge contra o fracasso e a mediocridade e que por sua força rítmica, cultural e artística é reverenciado pelo mundo. Com 22 canções, a série se divide em dois atos com encontros entre artistas que atravessam batidas e gêneros diversos, e um terceiro ato com seus testemunhos. Os três atos formam um caleidoscópio da força cultural do Brasil, da sua inventividade e da insurgência do nosso povo contra formas históricas de dominação. É nesse terceiro ato que colhi a frase que dá título a este texto, dita por Emicida: “A cultura brasileira, mano, é o lugar onde o Brasil nunca foi colônia”.

Nos dias seguintes à passagem da série, parei para assistir à segunda temporada do Mano a Mano, conduzido por Mano Brown e um dos melhores podcasts produzidos nos últimos anos. A entrevista de estreia foi com o mesmo Emicida e ofereceu uma aula de história e de cultura universalista elaborada por dois homens que têm em comum mais do que as origens vindas das duras periferias paulistanas. Duas cabeças curiosas, questionadoras, críticas, com sede de aprender sempre. Um diferencial imenso em um país onde quem menos pensa criticamente parece se deleitar com a própria ignorância. E quem menos recebeu as oportunidades objetivas de amadurecer por essa via é quem oferece a ponte para milhões de brasileiros acreditarem na leitura e na cultura como fontes de criação e liberdade. Primeiro pessoal, depois coletiva.

Anitta e Felipe Neto são outros bons exemplos. Celebridades globais, vencedores na indústria do entretenimento, onde a competição é enorme e as vitórias são difíceis de se sustentarem no tempo, ambos entregam ao país mais do que seus sucessos financeiros. Oferecem uma plataforma de como lidar com a alienação imposta por um sistema que não prioriza a educação de qualidade e que despreza a cultura como ativo econômico e social. Gostando ou não dos “produtos” que eles oferecem, nas regras globais de sucesso eles estão na ponta do ranking.

Um dos maiores indicadores de que uma nação está no caminho do desenvolvimento é a sua capacidade de olhar para tudo que o singulariza e fazer disso um caminho de prosperidade. Quando um país faz pouco caso das suas fontes originais de riqueza, ele fracassa. Quando ele opta por desrespeitar seu povo, ele fracassa. Quando ele toma decisões alheias às exigências e desafios do seu tempo, ele fracassa. Um fracasso medido em baixo crescimento e massas de pessoas gerações após gerações submetidas a falta de oportunidades, fome, pobreza, violência e degradação de suas condições de vida.

O Brasil possui essas fontes originais oferecidas pela natureza abundante e pela resiliência e inventividade do seu povo. Mas, é impactante como decidimos não só ignorar, mas desprezar o que nos torna ricos diante do mundo.

A destruição da natureza é, além de um crime contra a humanidade traduzido no agravamento da crise ecológica, uma perda de oportunidade econômica. João Moreira Salles, em artigo publicado em 25 de março na Revista Piauí, Notas sobre três Presidentes, duas bombas e o fim do mundo, mostra o desastre que nós brasileiros resolvemos empreender:

“Nossa arma verde-amarela de destruição em massa não produz efeitos tão instantâneos quanto as das nações nucleares, mas é igualmente letal. Trata-se, é claro, da destruição da Amazônia, a nossa bomba ecológica.

O bioma amazônico é um dos sistemas vitais para o funcionamento do planeta. Controla pelo menos três fluxos essenciais à manutenção da vida: o do carbono, o da biodiversidade e o dos ciclos hidrológicos. Esses fluxos vitais, ‘sistemas de suporte da vida’, na expressão de cientistas, não passam de nove, o que nos torna responsáveis por pelo menos um terço deles”.

Na cultura não é diferente. Não se desprezam apenas os artistas brasileiros, mas também as tecnologias sociais que abundam nas periferias, subúrbios e cidades brasileiras. As tecnologias de sobrevivência e as de vivência. Como as que foram decisivas durante a pandemia para fazer chegar alimentos e renda para milhões de brasileiros, as que impedem as favelas de sucumbirem à violência do Estado e do crime organizado, as que encontram alternativas diárias de solidariedade ativa em cada rincão do país. Se elas já estão presentes na lógica de investimentos privados, na área pública ainda é um desafio aproximar programas e decisões políticas daquilo que a sociedade civil produz de melhor.

Há uma sofisticação viva nesse caldo cultural formado pela diversidade brasileira. Que desafia o projeto de destruição e aponta novos caminhos.

Se quisermos ter uma chance de, ao navegarmos na incerteza que estes tempos nos oferecem, ter um lugar na mesa para imaginar diferentes cenários de futuro, é preciso começar com aquilo que traduz nossa abundância. E o potencial é grande se o Brasil for capaz de olhar para si e para onde caminha a economia global.

Segundo a Pesquisa Global de Entretenimento e Mídia (E&M) 2021-25, da PwC, a receita global total de E&M caiu 3,8% em 2020 — de longe a maior retração na história — mas “embora os impactos da pandemia nos diferentes segmentos de E&M sejam assimétricos, a previsão de receitas para a indústria permanece robusta. A contração causada pela pandemia em 2020 dá lugar a uma forte recuperação em 2021 e à retomada do crescimento contínuo acima do PIB global nos próximos cinco anos”.

Mesmo com o impacto negativo da covid19 no mercado de mídia e entretenimento, as projeções de crescimento são otimistas e o Brasil é um celeiro de talentos, prêmios e artistas bem sucedidos. O que falta? Investir em formação artística e técnica e nas áreas vinculadas ao mercado de E&M desde a educação básica apostando fortemente em jovens e empreendimentos deste setor. Em uma coluna anterior abordei este tema.

As perspectivas e investimentos em setores vinculados à economia verde e do cuidado são ainda mais fortes. Aqui estão concentrados cerca de 3 trilhões de dólares em ativos.Os setores de energia, agricultura, serviços e indústrias da economia verde devem concentrar boa parte das oportunidades de empregos de qualidade nos próximos anos. Parte desse esforço foi lançado em outubro de 2021 pela ONU em seu Acelerador Global das Nações Unidas para Empregos e Proteção Social, com metas de gerar 400 milhões de empregos vinculados às economias verde e assistencial até 2030.

O Brasil pode ter oferta abundante e vantagem competitiva nessas duas áreas. Mas, estimular o seu crescimento será uma tarefa inconclusa se não for comprometida com uma aspiração universalista, aquele postulado básico criado por homens e mulheres que considera que existem direitos inerentes à dignidade da pessoa humana e que não deveriam ser negados a nenhum indivíduo. Muito menos à maioria do povo de um país.

Marta Porto é Jornalista, crítica da cultura e fundadora da Marta Porto Consultoria. Foi Secretária de Cidadania e Diversidade Cultural do Ministério da Cultura, Coordenadora da UNESCO/RJ e Membro do Comitê que redigiu a Agenda 21 de Cultura

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