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Uma geração distraída ou desmotivada?

Porque você precisa rever os seus conceitos

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Crescer em Rede

Publicado em 29 de abril de 2019 às, 18h16.

Nos últimos tempos têm esquentado o debate sobre o uso da tecnologia na educação.

De um lado, estão os defensores de que, se bem utilizados, gadgets, softwares e aplicativos podem engajar os nativos digitais e aprimorar o processo de aprendizagem, tratando cada estudante como indivíduo e não impondo um ritmo e um conteúdo padronizado para todos.

Do outro, estão os aliados de um ensino mais tradicional, com livros didáticos densos, aulas expositivas e anotações manuscritas no caderno, um modelo pedagógico que precisa ser preservado para combater o déficit de atenção causado pelo uso intenso do celular, o acesso excessivo às redes sociais e o tempo desperdiçado vendo vídeos no YouTube.

Colocar a tecnologia como principal e única protagonista frente aos desafios enfrentados pelas escolas nos dias de hoje para educar esta geração pós-Internet me parece um equívoco, assim como refugar todos estes recursos e ignorar que estamos trabalhando com uma geração de nativos digitais.

A questão central, no meu entendimento, não é usar ou não usar tecnologias digitais, mas sim como e para que ensinar. Os docentes precisam ter clareza sobre as expectativas dos alunos e como eles aprendem para, então, desenhar as melhores estratégias de ensino, além de fortalecer a visão de uma educação empreendedora, que estimule o protagonismo dos alunos, a inovação, a criatividade, dentre outras competências, o que não implica, necessariamente, no uso de tecnologias digitais.

Não acho que esta geração seja somente de alunos distraídos pelo uso intenso do celular, mas de alunos desmotivados por uma escola que já não atende suas expectativas.

Eleito melhor professor do mundo pelo prêmio Global Education and Skills Forum, o queniano Peter Tabichi leciona na Escola Secundária Keriko Mixed Day, em Pwani Village, no Vale do Rift, uma escola rural de um bairro extremamente carente que conta com apenas um computador com conexão que nem sempre funciona.

Quase a totalidade (95%) dos alunos é de famílias pobres e muitos não têm sequer o que comer. Mesmo assim, Tabichi, que é professor de ciências e padre franciscano, expandiu o Clube de Ciências da escola e apoiou os alunos em seus projetos de pesquisa, conseguindo que 60% se qualificassem para competições nacionais.

Ele orientou os estudantes para participarem da Feira de Ciências e Engenharia do Quênia, onde apresentaram uma invenção que permite às pessoas cegas e surdas medir um objeto, o que rendeu ao grupo o primeiro lugar na categoria ‘colégios públicos’. Os alunos também conquistaram um prêmio da Royal Society of Chemistry em outro projeto que aproveitou a vida das plantas para gerar eletricidade.

O resultado do trabalho de Tabichi se refletiu em dados positivos – o número de matrículas dobrou em 3 anos, os casos de indisciplina caíram de 30 para 3 por semana e 26 alunos entraram na faculdade no ano passado; em 2017 ingressaram 16.

O exemplo do professor queniano mostra que é preciso muito mais do que recursos técnicos e ferramentas tecnológicas para motivar os alunos. Acima de tudo, os alunos querem atenção, querem se sentir importantes, querem aprender da maneira mais natural possível, usando ou não o celular, acessando ou não a Internet.

O melhor dos dois mundos

Na minha visão, a educação pode ser transformadora unindo o melhor dos dois mundos. Não há razão para fechar os olhos à chegada das tecnologias digitais que podem, sim, apoiar o processo de aprendizado. Mas não é preciso abandonar, enterrar as velhas metodologias. O essencial, no final do dia, é reter os alunos na escola e, a partir daí, ajudá-los a construir suas próprias jornadas de aprendizagem e a desenvolverem as habilidades fundamentais para estar no Século XXI.

Mais do que dar respostas aos nossos alunos, precisamos orientá-los a como saber fazer as perguntas certas. Em outras palavras, temos que estimular neles a curiosidade e a sede pela descoberta, pela pesquisa científica, pela leitura e produção textual. Não faz mais sentido colocar todos na mesma fôrma. É mandatório respeitar o tempo, o interesse e a vocação de cada um, incentivando o pensamento crítico e criativo e desenvolvendo a capacidade de raciocinar.

Se queremos seguir o professor Tabichi precisamos focar na qualificação dos professores para que consigam preparar as próximas gerações para atuarem em um mundo corporativo cada vez mais competitivo e exigente, o que inclui, é importante registrar, o domínio das tecnologias digitais.

É frustrante constatar que 70% dos jovens que entram no curso de pedagogia têm notas abaixo da média do Enem. E como bem pontuou Gabriel Zinny em seu livro “Educación 3.0, la batalla por el talento en America Latina”, “os líderes de negócios argumentam que existe uma profunda desconexão entre o que a escola ensina e o que realmente é necessário ao mercado de trabalho”.

Há países que definiram caminhos claros para elevar o nível dos docentes, como Finlândia, Cingapura, Coreia do Sul, Canadá, Japão e nações latinas, como Chile, Peru e Equador.

Maior seletividade acadêmica para contratar os melhores talentos para serem professores, maior incentivo salarial e promoção baseada na avaliação, definição de padrões de referência para formação docente e a realização de um exame nacional aplicado a todos os professores para avaliar conhecimento acadêmico e prático são algumas das iniciativas destes países para formar quadros mais preparados e melhorar os índices educacionais.

E o Brasil?

Com o objetivo de colocar o Brasil nesta mesma direção, no final do ano passado o Ministério da Educação apresentou e encaminhou ao Conselho Nacional de Educação a Base Nacional Comum para formação de professores da educação básica.

A BNC segue três eixos voltados ao desenvolvimento profissional dos docentes – conhecimento técnico, prática e engajamento profissional – que irão direcionar a reformulação dos cursos de pedagogia e das licenciaturas.

De acordo com o comunicado divulgado na ocasião pelo MEC, “a formação deve ter uma visão sistêmica que inclua a formação inicial, a formação continuada e a progressão na carreira”. O documento estimula também a articulação entre todos os atores envolvidos – o próprio Ministério, as instituições de ensino e os Conselhos de Educação.

No que tange ao conhecimento técnico, a meta é que os professores dominem os conteúdos e saibam como ensiná-los, tenham conhecimento acerca da realidade dos alunos e quais os processos de aprendizagem mais adequados, além de perceberem os diferentes contextos nos quais os estudantes estão inseridos e terem ciência da governança e da estrutura dos sistemas educacionais.

No viés da prática, o docente deverá estar preparado para planejar as ações pedagógicas com o objetivo de colaborar para aprimorar os resultados da aprendizagem, fazer a gestão dos ambientes de ensino e reunir os recursos necessários para fazer a avaliação dos alunos.

Por fim, no eixo do engajamento profissional a expectativa é que o professor assuma seu próprio desenvolvimento, além de participar de ações de planejamento pedagógico e se engajar nas ações com a comunidade escolar.

A BNC é uma iniciativa louvável, mas quando olhamos para realidade das salas de aula no Brasil chegamos na triste e evidente constatação de que há muito mais a fazer além da formação dos professores.

É mandatório, antes de mais nada, voltar a atrair profissionais talentosos para licenciatura. Uma pesquisa online realizada pela Associação Nova Escola com mais de cinco mil professores, entre os meses de junho e julho de 2018, identificou que 66% destes profissionais já precisaram se afastar do trabalho por questões de saúde.

O levantamento também mostrou que 87% dos participantes acreditam que seus problemas são ocasionados ou intensificados pelo trabalho. Tudo isso acaba colaborando para que apenas 2,4% dos jovens brasileiros de até 15 anos sonhem com esta carreira, segundo o relatório “Políticas Eficientes para Professores”, divulgado em junho de 2018 pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Há dez anos, esse percentual era de 7,5%.

Educar é empreender

A revisão de políticas educacionais deve ser acompanhada de uma mudança da postura do docente para que possa assumir as rédeas do seu próprio desenvolvimento profissional.

Em outro artigo abordei a necessidade de que o docente transforme sua carreira para se tornar um professor-empreendedor. Esse novo educador tem como característica fundir a imagem do professor inovador com a liderança empreendedora que assume riscos para criar seu próprio lugar no mundo profissional.

São profissionais empenhados em criar uma cultura de criatividade e reflexão na sala de aula, mas que também pensam suas ações para além deste espaço, pois têm consciência de que o aprendizado e lições valiosas não devem ficar restritos aos bancos escolares.

A possibilidade de se tornar um professor-empreendedor é um caminho possível para ajudar aqueles professores talentosos e dedicados a permanecerem entusiasmados com sua profissão e a compartilharem suas melhores práticas. A chave aqui é que o educador crie uma maneira diferente de navegar na profissão sem abandoná-la ou perder a vontade de ensinar.

É o que esperam nossos alunos. Minha sobrinha Isabela Allan concluiu no ano passado o Ensino Médio na escola pública após ter estudado até o início do terceiro ano em escolas particulares. Ela é a típica estudante desta geração, que não encontrou na escola um ambiente acolhedor e instigante, mas sim um sistema que não escuta e não engaja as crianças e jovens. Em um post que escreveu recentemente, ela desabafa:

“As crianças e adolescentes estão lutando pelo seu espaço e lugar de fala. Sentem conosco em roda e nos mostrem que somos todos IGUAIS, sábios e ignorantes, com algo a ensinar e algo a aprender. Vamos DEBATER mais, sermos também ouvidos para escutarmos com atenção. Assim nos sentiremos mais acolhidos e menos julgados. Não nos passem tarefas de casa predefinidas. Nos incentivem a pesquisar e trazer algo NOVO para o grupo. Trabalhem nossa autoestima intelectual dizendo que somos capazes e suficientes, não porque é um DEVER de casa, e sim porque se o fizermos estaremos contribuindo em algo. Esqueçam as notas, nos tragam FEEDBACKS. Deixem que façamos de novo e assim saberemos que o fracasso faz parte do processo”.

E então? Vamos dar mais ouvidos para Isabela e sua geração ao invés de nos colocarmos na confortável posição de considerar que são todos uma turma de distraídos? Não é melhor fazermos o impossível para motivá-los?

 (*) Luciana Allan é diretora do Instituto Crescer e Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) com especialização em tecnologias digitais aplicadas à educação