O fantasma do vestibular
O segundo artigo da série sobre o Ensino Médio olha para o impacto na formação e desenvolvimento do estudante em um sistema focado numa prova específica
Publicado em 9 de outubro de 2024 às, 13h54.
Em um país continental como o nosso, com enormes diferenças de desenvolvimento regional, falar sobre oportunidades para os jovens que terminam a Educação Básica levanta paixões. Em especial, se acrescentarmos ao debate o sistema utilizado para o ingresso no Ensino Superior, as tais provas de vestibular.
Apesar das inúmeras críticas, essa ainda é a estratégia mais utilizada no Brasil para selecionar estudantes interessados e aptos a frequentar (e eventualmente pagar) pelos cursos, já que há limite de vagas.
As críticas perpassam pela quantidade de provas a que os estudantes são submetidos em um curto espaço de tempo; os custos envolvidos; o estresse ocasionado na vida dos jovens; o perfil dessas provas e sua relação com o que será trabalhado no Ensino Superior; o sentido que elas fazem para os estudantes e sua relação com o projeto de vida; além da diferença nos conteúdos cobrados entre provas de instituições e Estados não garantirem a equidade e democratização do acesso ao Ensino Superior.
E, por fim, esse sistema não diminui evasão nos cursos superiores nem evita desperdício de recursos das instituições.
Por exemplo, em 2018, a taxa geral de evasão na melhor instituição do país, a Universidade de São Paulo (USP), foi de 17,41% e nas universidades federais a taxa de desistência acumulada entre 2019 e 2021 atingiu 39%.
A questão é mais profunda
Em meu último artigo (leia aqui), argumentei que apenas 20% de nossa população vai pelo caminho acadêmico e escolhe ingressar no Ensino Superior. Então, gostaria de abrir a discussão sobre a validade de os três anos do Ensino Médio terem o vestibular como o principal foco pedagógico.
Para mim, isso não faz sentido, pois exclui um grande número de jovens que poderiam ser direcionados para outras formas de qualificação técnica ou mesmo serem orientados a desenharem suas próprias trilhas de desenvolvimento pessoal, participando de diferentes formações em instituições brasileiras junto, inclusive, com oportunidades de cursos no exterior. Hoje, é muito comum empresas que valorizam mais o conhecimento técnico e as habilidades do que, necessariamente, um diploma.
Para refletir objetivamente sobre isso, vamos a alguns números!
De acordo com a nossa legislação, deveriam estar no Ensino Médio 9,6 milhões de jovens entre 15 e 18 anos, ou 4,6% da população total do país (números do último Censo do IBGE).
Segundo os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) e do Censo Escolar, no ano passado 7,7 milhões de alunos estavam matriculados nesta etapa. A evasão registrada foi de 5,9%, sendo a taxa masculina de 7,3%, maior que a feminina de 4,5%. Ou seja, dos 9,6 milhões iniciais que deveriam estar cursando o Ensino Médio, somente 7,2 milhões concluem o equivalente a 75,4% do total que ingressou. Perdem-se pelo caminho 1,4 milhão de pessoas.
Sabemos que a necessidade de trabalhar motiva 41,7% dos jovens entre 14 e 29 anos a abandonarem a escola. A gravidez (22,4%) e a demanda de tarefas domésticas ou cuidar de outras pessoas (10,3%) também aparecem como motivos, sobretudo para mulheres. E, não devemos esquecer os 23,5% que abandonam a escola por desinteresse, não veem sentido nesta etapa de ensino que não se conecta com suas perspectivas futuras.
Outro aspecto a ser observado é o número de jovens NEM NEM. Segundo a Pnad, mais de 9 milhões de brasileiros entre 15 e 29 anos não trabalhavam e nem estudavam em 2023, o que representa 19,8% da população! A média dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) é de 13,8%.
O momento de dialogar com os jovens e prepará-los para a realidade que enfrentarão na vida adulta é (ou deveria ser) ao longo do Ensino Médio, durante o qual pulsa o desejo de refletir sobre o futuro, as oportunidades que virão pela frente e, ao mesmo tempo, a insegurança de que serão capazes de realizar seus sonhos.
Estamos falhando miseravelmente em desenhar processos pedagógicos que têm como grande objetivo preparar os estudantes para gabaritarem em provas de vestibular. Apesar de enfatizarem que o foco da avaliação tem sido, cada vez mais, a verificação de competências de leitura, escrita e raciocínio lógico, muito do que ainda é cobrado nestes exames está relacionado a um extenso currículo ministrado ao longo da vida escolar dos estudantes.
Se há outras oportunidades, além do ingresso ao Ensino Superior, como já exploramos aqui, não seria mais adequado rever esse objetivo e privilegiar realmente o desenvolvimento de competências e habilidades cognitivas básicas, digitais e socioemocionais que os preparem para a vida e que permitam que deem sequência a uma jornada formativa mais conectada aos seus interesses pessoais, que não necessariamente seguir para uma faculdade ou universidade?
Como é possível promover uma oferta que faça mais sentido para os estudantes e os conectem com seus projetos futuros?
Vejo três caminhos possíveis para esse dilema atual.
Primeiro, é necessário o desenvolvimento de políticas públicas para fortalecer o Ensino Técnico Superior, a fim de aproveitar as diferentes competências e interesses dos estudantes.
Em segundo lugar, dar o enfoque necessário à disciplina de Projeto de Vida, instituída pela reforma do Ensino Médio de 2017 e contemplada no itinerário formativo atual.
Em terceiro, revisitar a proposta pedagógica deixando um pouco de lado o fantasma do vestibular e colocando mais foco em estratégias de ensino e de avaliação que tenham como principal objetivo o desenvolvimento de competências e habilidades, como já é proposto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Vale lembrar que o Plano Nacional de Educação (PNE) 2024-2034 propôs a revisão das metas para os ensinos Médio, Técnico e Superior:
- Garantir a qualidade e a adequação da formação às demandas da sociedade, do mundo do trabalho e das diversidades de populações e seus territórios na educação profissional e tecnológica;
- Garantir a qualidade de cursos de graduação e instituições de ensino superior;
- Ampliar o acesso, a permanência e a conclusão na graduação, com inclusão e redução de desigualdades.
Precisamos trabalhar nessas três frentes de forma igual, entendendo que há estudantes que vão ter mais interesse em ir para o Ensino Técnico, mais mão na massa, enquanto outros vão querer realmente se especializar e se aprofundar numa área mais analítica, indo para o Ensino Superior.
Ressalto a relevância de se equilibrar a preparação para o vestibular com o desenvolvimento de competências práticas e habilidades para a vida, reconhecendo que nem todos os alunos seguirão para o Ensino Superior.
Organizar três anos de estudo com foco em conteúdo expositivo e preparação para testes torna a escola chata e entediante para muitos estudantes que não compreendem o real sentido de todo o processo. Ficar horas sentado numa cadeira sem poder aprender coisas que se relacionem com o que é necessário em um determinado momento e que amplie a visão de mundo é um fator propulsor para muitos casos de indisciplina e evasão.
Diante de todos esses aspectos, reforço a pergunta: será que é melhor formar para a vida ou para um teste específico?
Qual é o melhor caminho a seguir diante de um mundo que não é nem mais VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo), mas sim BANI (frágil, ansioso, não linear e ambíguo) sendo que muitas profissões que existem hoje desaparecerão em um futuro próximo?
Um jovem que se forma hoje, terá a perspectiva de mudar de profissão pelo menos três vezes ao longo da vida. Estamos no início de uma Nova Era, dominada pela Inteligência Artificial Generativa e que ainda tem muito por avançar. Então, repito: qual é o real sentido da Educação que é ofertada hoje? O quanto ela está contribuindo para que os jovens superem todos esses desafios?
São muitas as inquietações que me assolam, neste momento.
Na minha experiência com Educação, concluí que preparar para a vida é o mais acertado, ainda mais quando me deparo com o problema das vagas em aberto no mercado de trabalho, por não termos pessoas qualificadas.
Este, porém, é o tema de um próximo exercício em que me aprofundarei a abordar as oportunidades profissionais e de reconhecimento que não exigem Ensino Superior.
* Luciana Allan é Doutora em Educação pela USP e diretora técnica do Instituto Crescer, onde há mais de 20 anos lidera projetos nacionais e internacionais na área de educação.
Expertises: Educação, Tecnologia
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