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Até quando o analfabetismo infantil será uma vergonha para o Brasil?

Em um país desigual como o Brasil, até aprender a ler e a escrever é um privilégio

Criança em uma escola na China (pidjoe/Getty Images)
Luciana Allan

Colunista

Publicado em 16 de novembro de 2023 às 14h49.

Você consegue lembrar do momento em que aprendeu a ler e escrever? Quando, de repente, as placas de trânsito começaram a fazer sentido e as capas de livros e revistas passaram a ser decifráveis? O processo de aprendizagem é, claro, gradual, mas cada pessoa no processo de alfabetização guarda na memória algum fato marcante dos primeiros anos escolares. Bem, nem todos, já que em um país desigual como o Brasil até aprender a ler e a escrever é um privilégio.

Por isso, é fácil imaginar o quão desafiador deve ter sido para as crianças nas séries iniciais atravessarem o período ideal de alfabetização durante a pandemia e o isolamento social. Longe dos colegas, com medo de um vírus mortal e, dependendo da região e classe social, sem nenhuma estrutura prática para que o aprendizado acontecesse. E, como era de se esperar, um dos piores cenários possíveis veio à tona.

A pesquisa Alfabetiza Brasil, realizada pelo Ministério da Educação em parceria com o INEP, apresentou dados bastante alarmantes sobre as crianças brasileiras. De acordo com o levantamento, apenas 4 em cada 10 crianças do segundo ano do ensino fundamental foram de fato alfabetizadas em 2021. Em 2019, antes da emergência sanitária, a proporção era de 6 a cada 10.

Foram consultados professores de 206 municípios em todos os Estados brasileiros, entre abril e maio. Entre os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2019 e 2021, o número de crianças não alfabetizadas no fim do segundo ano do ensino fundamental aumentou de 39,7% para 56,4%. Quando anunciou o resultado da pesquisa, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que os números vão garantir um norte para o programa a ser lançado pelo governo.

Mas será que nossa bússola está realmente funcionando quando mais da metade das crianças não sabem ler e escrever corretamente ao final do segundo ano?

Encarar essa triste realidade diante de nós em 2023 é desesperador. O país de Paulo Freire, educador que independente de qualquer posição ideológica é reconhecido mundialmente por seu método de alfabetização, passa mais uma vez por um grande constrangimento internacional.

A deficiência na alfabetização infantil é um problema recorrente e negligenciada ao longo dos anos. Mesmo com a disponibilidade de dados e registros históricos sobre essa fragilidade, não houve progresso significativo. Pelo contrário, tivemos um grande retrocesso. Se não sofremos um apagão de dados, por que não conseguimos mudar os resultados se sabemos onde está o problema?

Antes de apontar culpados, acredito que o analfabetismo infantil não seja apenas um problema metodológico, relacionado à escolha da abordagem de alfabetização, já que existem diversas metodologias válidas. O verdadeiro problema reside na falta de um trabalho contínuo entre os diversos atores envolvidos no processo.

Em primeiro lugar, não possuímos uma cultura de leitura enraizada na nossa sociedade, um aspecto crucial do qual é impossível fugir ou encontrar atalhos através de jogos ou da tecnologia. Crianças vão procurar os livros como entretenimento se virem os adultos fazendo o mesmo.

Há ainda uma série de questões que dificultam a alfabetização, como a infraestrutura das escolas, o ambiente familiar, a condição socioeconômica e a saúde das crianças. Todos esses fatores acabam interferindo no processo de aprendizagem. Uma criança que convive em um lar desestruturado não terá o psicológico adequado para aprender.

Crianças de pais também analfabetos têm menos apoio no ambiente familiar. Aquelas que não possuem um local adequado para estudar em casa, seja por falta de espaço ou pela necessidade de compartilhá-lo com muitas pessoas, enfrentam ainda mais obstáculos.

No Brasil, o investimento público por aluno na educação básica é, infelizmente, pífio; e equivale a apenas um terço dos gastos dos países ricos nessa etapa. Isso foi revelado no relatório Education at a Glance 2023, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em meados de setembro.

Em um ranking que abrange quase 50 países, o Brasil ocupa a terceira pior posição, ficando à frente apenas do México (US$ 2.702) e da África do Sul (US$ 3.085). Por aqui, o investimento anual por aluno na educação básica é de US$ 3.583 (cerca de R$ 17,7 mil), enquanto a média da OCDE é de US$ 10.949. O primeiro colocado, Luxemburgo, investe US$ 26.370.

Após Luxemburgo, estão Suíça, com US$ 17.333, e Bélgica, com US$ 16.500. Esses cálculos consideram todos os recursos públicos destinados à educação pública, divididos pelo número total de matrículas no ensino fundamental e médio.

O relatório internacional, que utiliza dados de 2020 e compara indicadores educacionais, aponta ainda que o Brasil reduziu os gastos públicos com educação em 10,5% após a pandemia de Covid-19. No entanto, em outras áreas, houve um aumento de 8,9% nos investimentos. Membros da OCDE tiveram um crescimento semelhante entre 2019 e 2020 em outras áreas (9,5%), mas também aumentaram os recursos destinados à educação em 2,1%.

Um lugar feliz

A própria escola, como ambiente, possui o papel de estimular o interesse da criança em aprender. Fazer da escola um lugar feliz para os alunos requer a combinação ideal de pessoas, lugares e atividades.

Os professores, como protagonistas, têm a missão de proporcionar um ambiente acolhedor e carinhoso, no qual os alunos se sintam seguros e confiantes, que seja também estimulante, bem organizado e com recursos tecnológicos adequados. Estudar em um local sujo, sem manutenção, com goteiras, carteiras quebradas e toda a sorte de precariedades será muito menos proveitoso, para não dizer impossível.

Fatores mais amplos, como subnutrição e saneamento básico, também irão afetar o desenvolvimento da capacidade de leitura na idade correta. Crianças que vivem em comunidades sem saneamento encaram problemas de saúde com mais frequência e que as levam a faltar à escola, prejudicando ainda mais o aprendizado.

A alfabetização na idade certa deve ser prioridade de todo país sério. Em junho, o Governo Federal publicou no Diário Oficial da União o Decreto Nº 11.556, que estabelece o “Compromisso Nacional Criança Alfabetizada”. A iniciativa, que usou os dados do Alfabetiza Brasil, tem como objetivo garantir que todas as crianças brasileiras estejam alfabetizadas até o final do segundo ano do Ensino Fundamental

As diretrizes abrangem a política de formação de professores, enfrentamento das desigualdades regionais, socioeconômicas, étnico-raciais e de gênero, além da centralidade dos processos de ensino-aprendizagem e das necessidades das escolas. Serão destinados R$ 1 bilhão em 2023 e mais R$ 2 bilhões até 2026 para a implementação de políticas e ações de alfabetização. Também serão adotadas medidas para recompor as aprendizagens, focando também no aprimoramento das competências em leitura e escrita dos alunos do terceiro ao quinto ano.

Será que dessa vez conseguiremos evoluir de forma consistente? Ou vamos continuar passando a vergonha de termos o triste título de sermos um dos campeões mundiais do analfabetismo infantil? O que será que conseguiremos ver de diferente do que já foi prometido por outros governos?

(*) Luciana Allan é Doutora em Educação pela USP e diretora técnica do Instituto Crescer, onde há mais de 20 anos lidera projetos nacionais e internacionais na área de educação.

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Você consegue lembrar do momento em que aprendeu a ler e escrever? Quando, de repente, as placas de trânsito começaram a fazer sentido e as capas de livros e revistas passaram a ser decifráveis? O processo de aprendizagem é, claro, gradual, mas cada pessoa no processo de alfabetização guarda na memória algum fato marcante dos primeiros anos escolares. Bem, nem todos, já que em um país desigual como o Brasil até aprender a ler e a escrever é um privilégio.

Por isso, é fácil imaginar o quão desafiador deve ter sido para as crianças nas séries iniciais atravessarem o período ideal de alfabetização durante a pandemia e o isolamento social. Longe dos colegas, com medo de um vírus mortal e, dependendo da região e classe social, sem nenhuma estrutura prática para que o aprendizado acontecesse. E, como era de se esperar, um dos piores cenários possíveis veio à tona.

A pesquisa Alfabetiza Brasil, realizada pelo Ministério da Educação em parceria com o INEP, apresentou dados bastante alarmantes sobre as crianças brasileiras. De acordo com o levantamento, apenas 4 em cada 10 crianças do segundo ano do ensino fundamental foram de fato alfabetizadas em 2021. Em 2019, antes da emergência sanitária, a proporção era de 6 a cada 10.

Foram consultados professores de 206 municípios em todos os Estados brasileiros, entre abril e maio. Entre os resultados do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) de 2019 e 2021, o número de crianças não alfabetizadas no fim do segundo ano do ensino fundamental aumentou de 39,7% para 56,4%. Quando anunciou o resultado da pesquisa, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que os números vão garantir um norte para o programa a ser lançado pelo governo.

Mas será que nossa bússola está realmente funcionando quando mais da metade das crianças não sabem ler e escrever corretamente ao final do segundo ano?

Encarar essa triste realidade diante de nós em 2023 é desesperador. O país de Paulo Freire, educador que independente de qualquer posição ideológica é reconhecido mundialmente por seu método de alfabetização, passa mais uma vez por um grande constrangimento internacional.

A deficiência na alfabetização infantil é um problema recorrente e negligenciada ao longo dos anos. Mesmo com a disponibilidade de dados e registros históricos sobre essa fragilidade, não houve progresso significativo. Pelo contrário, tivemos um grande retrocesso. Se não sofremos um apagão de dados, por que não conseguimos mudar os resultados se sabemos onde está o problema?

Antes de apontar culpados, acredito que o analfabetismo infantil não seja apenas um problema metodológico, relacionado à escolha da abordagem de alfabetização, já que existem diversas metodologias válidas. O verdadeiro problema reside na falta de um trabalho contínuo entre os diversos atores envolvidos no processo.

Em primeiro lugar, não possuímos uma cultura de leitura enraizada na nossa sociedade, um aspecto crucial do qual é impossível fugir ou encontrar atalhos através de jogos ou da tecnologia. Crianças vão procurar os livros como entretenimento se virem os adultos fazendo o mesmo.

Há ainda uma série de questões que dificultam a alfabetização, como a infraestrutura das escolas, o ambiente familiar, a condição socioeconômica e a saúde das crianças. Todos esses fatores acabam interferindo no processo de aprendizagem. Uma criança que convive em um lar desestruturado não terá o psicológico adequado para aprender.

Crianças de pais também analfabetos têm menos apoio no ambiente familiar. Aquelas que não possuem um local adequado para estudar em casa, seja por falta de espaço ou pela necessidade de compartilhá-lo com muitas pessoas, enfrentam ainda mais obstáculos.

No Brasil, o investimento público por aluno na educação básica é, infelizmente, pífio; e equivale a apenas um terço dos gastos dos países ricos nessa etapa. Isso foi revelado no relatório Education at a Glance 2023, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), divulgado em meados de setembro.

Em um ranking que abrange quase 50 países, o Brasil ocupa a terceira pior posição, ficando à frente apenas do México (US$ 2.702) e da África do Sul (US$ 3.085). Por aqui, o investimento anual por aluno na educação básica é de US$ 3.583 (cerca de R$ 17,7 mil), enquanto a média da OCDE é de US$ 10.949. O primeiro colocado, Luxemburgo, investe US$ 26.370.

Após Luxemburgo, estão Suíça, com US$ 17.333, e Bélgica, com US$ 16.500. Esses cálculos consideram todos os recursos públicos destinados à educação pública, divididos pelo número total de matrículas no ensino fundamental e médio.

O relatório internacional, que utiliza dados de 2020 e compara indicadores educacionais, aponta ainda que o Brasil reduziu os gastos públicos com educação em 10,5% após a pandemia de Covid-19. No entanto, em outras áreas, houve um aumento de 8,9% nos investimentos. Membros da OCDE tiveram um crescimento semelhante entre 2019 e 2020 em outras áreas (9,5%), mas também aumentaram os recursos destinados à educação em 2,1%.

Um lugar feliz

A própria escola, como ambiente, possui o papel de estimular o interesse da criança em aprender. Fazer da escola um lugar feliz para os alunos requer a combinação ideal de pessoas, lugares e atividades.

Os professores, como protagonistas, têm a missão de proporcionar um ambiente acolhedor e carinhoso, no qual os alunos se sintam seguros e confiantes, que seja também estimulante, bem organizado e com recursos tecnológicos adequados. Estudar em um local sujo, sem manutenção, com goteiras, carteiras quebradas e toda a sorte de precariedades será muito menos proveitoso, para não dizer impossível.

Fatores mais amplos, como subnutrição e saneamento básico, também irão afetar o desenvolvimento da capacidade de leitura na idade correta. Crianças que vivem em comunidades sem saneamento encaram problemas de saúde com mais frequência e que as levam a faltar à escola, prejudicando ainda mais o aprendizado.

A alfabetização na idade certa deve ser prioridade de todo país sério. Em junho, o Governo Federal publicou no Diário Oficial da União o Decreto Nº 11.556, que estabelece o “Compromisso Nacional Criança Alfabetizada”. A iniciativa, que usou os dados do Alfabetiza Brasil, tem como objetivo garantir que todas as crianças brasileiras estejam alfabetizadas até o final do segundo ano do Ensino Fundamental

As diretrizes abrangem a política de formação de professores, enfrentamento das desigualdades regionais, socioeconômicas, étnico-raciais e de gênero, além da centralidade dos processos de ensino-aprendizagem e das necessidades das escolas. Serão destinados R$ 1 bilhão em 2023 e mais R$ 2 bilhões até 2026 para a implementação de políticas e ações de alfabetização. Também serão adotadas medidas para recompor as aprendizagens, focando também no aprimoramento das competências em leitura e escrita dos alunos do terceiro ao quinto ano.

Será que dessa vez conseguiremos evoluir de forma consistente? Ou vamos continuar passando a vergonha de termos o triste título de sermos um dos campeões mundiais do analfabetismo infantil? O que será que conseguiremos ver de diferente do que já foi prometido por outros governos?

(*) Luciana Allan é Doutora em Educação pela USP e diretora técnica do Instituto Crescer, onde há mais de 20 anos lidera projetos nacionais e internacionais na área de educação.

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