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Por que Bulhões Pedreira continua atual

O advogado é o responsável pela construção da moderna estrutura jurídica do Estado brasileiro

Banco Central (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
BG

Bibiana Guaraldi

Publicado em 6 de novembro de 2020 às 11h59.

Última atualização em 6 de novembro de 2020 às 12h03.

O economista Pedro Sampaio Malan costumava dizer que no Brasil até o passado é incerto. Outro ex-ministro disse que temos de facilitar o futuro em vez de restaurar o passado. Por vezes, tem-se a sensação de que o Brasil anda em círculos incongruentes. Atualmente, como se fosse uma novidade na nossa legislação, o Senado aprovou, nesta semana, projeto deBanco Central independente, o que reforçará os mecanismos de uma política econômica que precisa estar ancorada em dois pilares: a estabilidade da moeda e o desenvolvimento econômico que persiga a meta de inclusão social. Não é novidade porque, em 1964, ao elaborar o anteprojeto de lei da Reforma Bancária, o advogado José Luiz Bulhões Pedreira propôs a criação do Banco Central do Brasil (em substituição à SUMOC) com independência ao Poder Executivo, o que foi referendado pelo então ministro do Planejamento, Roberto Campos (1964-1967). O Banco Central nasceu independente do Executivo, pois seus dirigentes não eram demissíveis “ad nutum” e tinham prazo de mandato não coincidente com o do presidente da República. A regra mudou no governo do general Costa e Silva, quando a tigrada assume de vez o poder. O BC perde a sua independência por pressão da área econômica.

Bulhões Pedreira, em um curto espaço de tempo, fez um conjunto de diplomas legais (decretos-leis, leis etc.) que brilhantes advogados demorariam, no melhor cenário, muitos anos para sistematizar tantas obras.

Registre-se que o advogado – que não se sentia à vontade com o título de jurista, embora fosse um grande produtor de conhecimento – fora um crítico daquele regime ao chancelar o legítimo patrimônio de Juscelino Kubitschek, o presidente bossa nova, perseguido pelo regime. JK era alvejado pelos militares como um leão desprotegido numa savana. Era a época da caça às bruxas, da patranhada.

No momento em que a B3 bate recordes de transações financeiras, com bem-sucedidos IPOs (ofertas iniciais de ações, na tradução em inglês), não custa lembrar que, em coautoria com o não menos brilhante professor Alfredo Lamy Filho, Bulhões Pedreira elaborou o anteprojeto da Lei das Sociedade por Ações (Lei nº 6.404, de 1976), alterada pontualmente nas últimas três décadas, mas mantida na sua característica original de disciplinar a figura do controlador e proteger o acionista minoritário, um ser que estava em extinção. É da lavra da dupla Bulhões Pedreira-Lamy a criação de um órgão regulador que pudesse fiscalizar os trambiques de investidores inescrupulosos e, ao mesmo tempo, buscar mecanismos para o desenvolvimento do mercado de capitais – a CVM. A Praça XV, onde estava a sede da Bolsa de Valores do Rio, era um covil de ladrões, disse uma autoridade em 1974, antes de assumir cargo no governo Geisel (1974-1979).

Sim; ladrões, malfeitores usurpadores da poupança do púbico, tudo aquilo que Bulhões Pedreira e Lamy combatiam ao avistarem um novo capitalismo, idealizado por outro Bulhões, no caso, Octavio Gouvêa de Bulhões, um enorme incentivador da poupança em ações como mecanismo de democratização do capital. Fora ministro da Fazenda do governo Castello Branco e, como professor, na então Faculdade de Economia e Administração da UFRJ, tinha como monitora a economista Maria da Conceição Tavares, uma opositora da ditadura civil militar

Com a palavra, o empresário Daniel Valente Dantas, que conviveu com José Luiz Bulhões Pedreira e com Mario Henrique Simonsen. O depoimento de Daniel foi dado antes da barbárie impetrada contra ele na famigerada Operação Satiagraha, em 2008, anulada pelo STJ.

“Há uma diferença muito grande entre o modo de operar do Mario Henrique e do Bulhões Pedreira. Eu nunca pedia para o Simonsen uma prescrição diante de um problema. Eu lhe perguntava:
— Nessa circunstância, o que o senhor levaria em consideração?
A varredura era total.
A questão na sala de aula é precisa, objetiva e clara. No mundo real, não. Quando as pessoas erram, o normal é errar o problema e não a solução. Na sala de aula, o problema está lá escrito. Na vida, a identificação do problema é 95% da solução. E o erro vem normalmente da má identificação do problema.

Para o doutor Bulhões, a pergunta era outra:

— Diante do problema, o que deve ser feito?

Era impressionante. Ele traçava uma prescrição adequada com aderência ao mundo real dentro de um apreço estético pela eficiência. Não havia pirotecnia. Ele trazia a solução precisa, alcançando com êxito o objetivo.”

Nem preciso aprofundar o vasto conhecimento de Bulhões Pedreira, que deixou livros e apostilas primorosas sobre o direito da economia, societário e tributário, noves fora gravações de curso dado a jovens e futuros talentosos advogados no fim dos anos 1980.

A sua obra permanece atualíssima. Era dono de uma  linha engenhosa do conhecimento jurídico-econômico, um artesão no complexo mundo das companhias abertas e um mestre generoso com os seus discípulos. Eu estive oito vezes com ele. Numa delas, foi para convidá-lo para um debate no “Jornal do Brasil”, o Balanço Mensal, mesa-redonda idealizada pelos grandes jornalistas Flavio Pinheiro e Miriam Leitão. Após a publicação do debate, ele me dá uma reprimenda sobre o destaque dado à foto dele em relação aos demais participantes. Eu fiquei mudo. O que responder diante de um mestre dos mestres? Nada.

Ele era tão preciso que, rotineiramente, consultava a Lei das Sociedades por Ações, aquela que fora coautor, injustamente criticada pelo advogado Modesto Carvalhosa. Bulhões e Lamy, em 1976, já tinham reconhecimento para recusarem parvoíces e tramoias, mais afeitas a burocratas de governos populistas de direita e de esquerda ou a agentes privados. Nem o sisudo presidente Geisel, que leu detalhadamente o anteprojeto de lei, nem o jovem ministro da Fazenda Simonsen aceitariam qualquer parágrafo assimétrico. Geisel e Simonsen mais pareciam seminaristas em meio a uma floresta de interesses gigantescos.

O advogado, morto em 24 de outubro de 2006, aos 81 anos, tinha um apreço estético com a derivação do texto, e trazia soluções eficientes para os seus clientes ou para um assunto relacionado ao interesse público – a sua última grande contribuição foi para a legislação que desaguaria na nova lei de falências e de recuperação judicial, de 2005. O estudo nascera ainda por iniciativa de Armínio Fraga Neto, então presidente do Banco Central, no segundo governo FHC.

O modelo do advogado tinha como fórmula gastar o mínimo em dispêndio ao encontrar uma solução para um problema. Um empresário me disse que ele era como o Pelé, festejado agora pelos seus 80 anos: a sua meta permanente era fazer o gol. Por vezes, poderia driblar inúmeros adversários – e aí a estética pesava mais alta – e em outras bastava um chute certeiro ou a cobrança precisa de um pênalti. O importante era atingir a meta de uma forma que se gastasse menos energia e, se possível, a estética prevalecesse, como no famoso gol de bicicleta de Edson Arantes do Nascimento. Bulhões Pedreira fora um arquiteto do moderno direito societário, antecipando-se a legislações internacionais, e sabendo ouvir a demanda do cliente e do melhor interesse público. Com a exceção do antigo BNDE, em que foi o diretor jurídico nos anos 1950, não exerceu função de natureza pública, jamais cobrou honorários do governo e evitou graves crises no sistema financeiro, naquele estilo discreto, quebrado apenas na grande festa de 80 anos do seu amigo Roberto Campos, em abril de 1987, nos salões do Copacabana Palace, no Rio. O advogado pautava a sua vida pelo estudo, e no passado fora um grande jogador de polo, como o lendário Winston Churchill.

Certa vez eu o vi sentado em um julgamento na CVM, Centro do Rio, para espanto do presidente da autarquia, o então jovem advogado Marcelo Trindade, hoje dono de uma influente banca de advocacia. Doutor Bulhões Pedreira, já perto dos 80 anos e com um prestígio internacional, que entendia também de matemática, de economia e de contabilidade, ouvia o inquérito contra o seu cliente e a exposição do advogado de defesa. Os participantes olhavam o mestre absorto em seus pensamentos. Trindade conduz o inquérito e ressalta a presença inusitada. Bulhões Pedreira ouve, e no fim das contas foi produzido um termo de compromisso.

O advogado é o responsável pela construção da moderna estrutura jurídica do Estado brasileiro, antecipando a legislações que tornaram possíveis, desde o Código de Águas até mudanças no mercado de capitais que viabilizaram o desenvolvimento do capitalismo brasileiro com as suas virtudes e os seus defeitos.

Mesmo antes de morrer, jamais reclamou da vida. Trabalhou como um azougue. Era um homem dedicado à profissão, como um Pontes de Miranda, com a vantagem de conviver com um Brasil moderno. É bobagem imaginar o que ele pensaria do atual mercado de capitais, que ganhou enorme complexidade, mas ele insistiria na mesma tecla: é importante defender quem toma o risco, o empresário, desde que cumprida as exigências da Lei das S/A, e os investidores daquele mercado, contra os agentes que não privilegiam o interesse de seus clientes. Afinal, a ideia de um covil de ladrões, como existente nos anos 1970, não combina com um país que almeja alcançar mecanismos societários e de mercado refinados. Não é de bom tom acionista controlador lançar mão de nomes pomposos, para obter vantagens de companhia aberta, ou agente do mercado de capitais sobrepor seus interesses ao de seus clientes. Bulhões Pedreira não assinaria embaixo de tamanha desfaçatez. O idealizador da primeira debênture conversível em ações jamais aceitaria arranhar a Lei das S/A, que virou sinônimo de excelência, ou de pressupostos essenciais ao desenvolvimento do mercado de capitais.

“A função de um empresário é atuar como um grande jogador: caso não tenha disposição para aceitar o risco, não vai progredir no negócio. Não se trata de discussão ética. Ninguém ouviu falar de empresas que nascessem espontaneamente pela reunião de investidores do mercado e administradores profissionais, sem um ou alguns líderes que desempenhassem a função do empreendedor”, me disse o advogado em 1998. Mais atual impossível.

Bulhões Pedreira não tem rótulos, por mais criativos que sejam. Ele era apenas um advogado dedicado incessantemente ao seu trabalho – por vezes, uma música erudita, um jazz, um uísque e um bom vinho branco, como o Chassagne Montrachet “Fontaine Saygnard”, safra 1990, depois de uma longa jornada.

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O economista Pedro Sampaio Malan costumava dizer que no Brasil até o passado é incerto. Outro ex-ministro disse que temos de facilitar o futuro em vez de restaurar o passado. Por vezes, tem-se a sensação de que o Brasil anda em círculos incongruentes. Atualmente, como se fosse uma novidade na nossa legislação, o Senado aprovou, nesta semana, projeto deBanco Central independente, o que reforçará os mecanismos de uma política econômica que precisa estar ancorada em dois pilares: a estabilidade da moeda e o desenvolvimento econômico que persiga a meta de inclusão social. Não é novidade porque, em 1964, ao elaborar o anteprojeto de lei da Reforma Bancária, o advogado José Luiz Bulhões Pedreira propôs a criação do Banco Central do Brasil (em substituição à SUMOC) com independência ao Poder Executivo, o que foi referendado pelo então ministro do Planejamento, Roberto Campos (1964-1967). O Banco Central nasceu independente do Executivo, pois seus dirigentes não eram demissíveis “ad nutum” e tinham prazo de mandato não coincidente com o do presidente da República. A regra mudou no governo do general Costa e Silva, quando a tigrada assume de vez o poder. O BC perde a sua independência por pressão da área econômica.

Bulhões Pedreira, em um curto espaço de tempo, fez um conjunto de diplomas legais (decretos-leis, leis etc.) que brilhantes advogados demorariam, no melhor cenário, muitos anos para sistematizar tantas obras.

Registre-se que o advogado – que não se sentia à vontade com o título de jurista, embora fosse um grande produtor de conhecimento – fora um crítico daquele regime ao chancelar o legítimo patrimônio de Juscelino Kubitschek, o presidente bossa nova, perseguido pelo regime. JK era alvejado pelos militares como um leão desprotegido numa savana. Era a época da caça às bruxas, da patranhada.

No momento em que a B3 bate recordes de transações financeiras, com bem-sucedidos IPOs (ofertas iniciais de ações, na tradução em inglês), não custa lembrar que, em coautoria com o não menos brilhante professor Alfredo Lamy Filho, Bulhões Pedreira elaborou o anteprojeto da Lei das Sociedade por Ações (Lei nº 6.404, de 1976), alterada pontualmente nas últimas três décadas, mas mantida na sua característica original de disciplinar a figura do controlador e proteger o acionista minoritário, um ser que estava em extinção. É da lavra da dupla Bulhões Pedreira-Lamy a criação de um órgão regulador que pudesse fiscalizar os trambiques de investidores inescrupulosos e, ao mesmo tempo, buscar mecanismos para o desenvolvimento do mercado de capitais – a CVM. A Praça XV, onde estava a sede da Bolsa de Valores do Rio, era um covil de ladrões, disse uma autoridade em 1974, antes de assumir cargo no governo Geisel (1974-1979).

Sim; ladrões, malfeitores usurpadores da poupança do púbico, tudo aquilo que Bulhões Pedreira e Lamy combatiam ao avistarem um novo capitalismo, idealizado por outro Bulhões, no caso, Octavio Gouvêa de Bulhões, um enorme incentivador da poupança em ações como mecanismo de democratização do capital. Fora ministro da Fazenda do governo Castello Branco e, como professor, na então Faculdade de Economia e Administração da UFRJ, tinha como monitora a economista Maria da Conceição Tavares, uma opositora da ditadura civil militar

Com a palavra, o empresário Daniel Valente Dantas, que conviveu com José Luiz Bulhões Pedreira e com Mario Henrique Simonsen. O depoimento de Daniel foi dado antes da barbárie impetrada contra ele na famigerada Operação Satiagraha, em 2008, anulada pelo STJ.

“Há uma diferença muito grande entre o modo de operar do Mario Henrique e do Bulhões Pedreira. Eu nunca pedia para o Simonsen uma prescrição diante de um problema. Eu lhe perguntava:
— Nessa circunstância, o que o senhor levaria em consideração?
A varredura era total.
A questão na sala de aula é precisa, objetiva e clara. No mundo real, não. Quando as pessoas erram, o normal é errar o problema e não a solução. Na sala de aula, o problema está lá escrito. Na vida, a identificação do problema é 95% da solução. E o erro vem normalmente da má identificação do problema.

Para o doutor Bulhões, a pergunta era outra:

— Diante do problema, o que deve ser feito?

Era impressionante. Ele traçava uma prescrição adequada com aderência ao mundo real dentro de um apreço estético pela eficiência. Não havia pirotecnia. Ele trazia a solução precisa, alcançando com êxito o objetivo.”

Nem preciso aprofundar o vasto conhecimento de Bulhões Pedreira, que deixou livros e apostilas primorosas sobre o direito da economia, societário e tributário, noves fora gravações de curso dado a jovens e futuros talentosos advogados no fim dos anos 1980.

A sua obra permanece atualíssima. Era dono de uma  linha engenhosa do conhecimento jurídico-econômico, um artesão no complexo mundo das companhias abertas e um mestre generoso com os seus discípulos. Eu estive oito vezes com ele. Numa delas, foi para convidá-lo para um debate no “Jornal do Brasil”, o Balanço Mensal, mesa-redonda idealizada pelos grandes jornalistas Flavio Pinheiro e Miriam Leitão. Após a publicação do debate, ele me dá uma reprimenda sobre o destaque dado à foto dele em relação aos demais participantes. Eu fiquei mudo. O que responder diante de um mestre dos mestres? Nada.

Ele era tão preciso que, rotineiramente, consultava a Lei das Sociedades por Ações, aquela que fora coautor, injustamente criticada pelo advogado Modesto Carvalhosa. Bulhões e Lamy, em 1976, já tinham reconhecimento para recusarem parvoíces e tramoias, mais afeitas a burocratas de governos populistas de direita e de esquerda ou a agentes privados. Nem o sisudo presidente Geisel, que leu detalhadamente o anteprojeto de lei, nem o jovem ministro da Fazenda Simonsen aceitariam qualquer parágrafo assimétrico. Geisel e Simonsen mais pareciam seminaristas em meio a uma floresta de interesses gigantescos.

O advogado, morto em 24 de outubro de 2006, aos 81 anos, tinha um apreço estético com a derivação do texto, e trazia soluções eficientes para os seus clientes ou para um assunto relacionado ao interesse público – a sua última grande contribuição foi para a legislação que desaguaria na nova lei de falências e de recuperação judicial, de 2005. O estudo nascera ainda por iniciativa de Armínio Fraga Neto, então presidente do Banco Central, no segundo governo FHC.

O modelo do advogado tinha como fórmula gastar o mínimo em dispêndio ao encontrar uma solução para um problema. Um empresário me disse que ele era como o Pelé, festejado agora pelos seus 80 anos: a sua meta permanente era fazer o gol. Por vezes, poderia driblar inúmeros adversários – e aí a estética pesava mais alta – e em outras bastava um chute certeiro ou a cobrança precisa de um pênalti. O importante era atingir a meta de uma forma que se gastasse menos energia e, se possível, a estética prevalecesse, como no famoso gol de bicicleta de Edson Arantes do Nascimento. Bulhões Pedreira fora um arquiteto do moderno direito societário, antecipando-se a legislações internacionais, e sabendo ouvir a demanda do cliente e do melhor interesse público. Com a exceção do antigo BNDE, em que foi o diretor jurídico nos anos 1950, não exerceu função de natureza pública, jamais cobrou honorários do governo e evitou graves crises no sistema financeiro, naquele estilo discreto, quebrado apenas na grande festa de 80 anos do seu amigo Roberto Campos, em abril de 1987, nos salões do Copacabana Palace, no Rio. O advogado pautava a sua vida pelo estudo, e no passado fora um grande jogador de polo, como o lendário Winston Churchill.

Certa vez eu o vi sentado em um julgamento na CVM, Centro do Rio, para espanto do presidente da autarquia, o então jovem advogado Marcelo Trindade, hoje dono de uma influente banca de advocacia. Doutor Bulhões Pedreira, já perto dos 80 anos e com um prestígio internacional, que entendia também de matemática, de economia e de contabilidade, ouvia o inquérito contra o seu cliente e a exposição do advogado de defesa. Os participantes olhavam o mestre absorto em seus pensamentos. Trindade conduz o inquérito e ressalta a presença inusitada. Bulhões Pedreira ouve, e no fim das contas foi produzido um termo de compromisso.

O advogado é o responsável pela construção da moderna estrutura jurídica do Estado brasileiro, antecipando a legislações que tornaram possíveis, desde o Código de Águas até mudanças no mercado de capitais que viabilizaram o desenvolvimento do capitalismo brasileiro com as suas virtudes e os seus defeitos.

Mesmo antes de morrer, jamais reclamou da vida. Trabalhou como um azougue. Era um homem dedicado à profissão, como um Pontes de Miranda, com a vantagem de conviver com um Brasil moderno. É bobagem imaginar o que ele pensaria do atual mercado de capitais, que ganhou enorme complexidade, mas ele insistiria na mesma tecla: é importante defender quem toma o risco, o empresário, desde que cumprida as exigências da Lei das S/A, e os investidores daquele mercado, contra os agentes que não privilegiam o interesse de seus clientes. Afinal, a ideia de um covil de ladrões, como existente nos anos 1970, não combina com um país que almeja alcançar mecanismos societários e de mercado refinados. Não é de bom tom acionista controlador lançar mão de nomes pomposos, para obter vantagens de companhia aberta, ou agente do mercado de capitais sobrepor seus interesses ao de seus clientes. Bulhões Pedreira não assinaria embaixo de tamanha desfaçatez. O idealizador da primeira debênture conversível em ações jamais aceitaria arranhar a Lei das S/A, que virou sinônimo de excelência, ou de pressupostos essenciais ao desenvolvimento do mercado de capitais.

“A função de um empresário é atuar como um grande jogador: caso não tenha disposição para aceitar o risco, não vai progredir no negócio. Não se trata de discussão ética. Ninguém ouviu falar de empresas que nascessem espontaneamente pela reunião de investidores do mercado e administradores profissionais, sem um ou alguns líderes que desempenhassem a função do empreendedor”, me disse o advogado em 1998. Mais atual impossível.

Bulhões Pedreira não tem rótulos, por mais criativos que sejam. Ele era apenas um advogado dedicado incessantemente ao seu trabalho – por vezes, uma música erudita, um jazz, um uísque e um bom vinho branco, como o Chassagne Montrachet “Fontaine Saygnard”, safra 1990, depois de uma longa jornada.

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