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O que o fechamento da Ford revela do velho capitalismo e a serpente de duas cabeças

As isenções tributárias para as empresas atingiram R$ 320 bilhões, no ano passado, mais do que a totalidade do auxilio emergencial e do Bolsa Família

A Ford culpou o governo. Deveria espetar o erro em Pedro Álvares Cabral, o nosso descobridor (Carla Carniel/Reuters)
A Ford culpou o governo. Deveria espetar o erro em Pedro Álvares Cabral, o nosso descobridor (Carla Carniel/Reuters)
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Coriolano Gatto

Publicado em 13 de janeiro de 2021 às, 18h18.

O Brasil convive com sinais erráticos, como uma serpente de duas cabeças. A metáfora vem a propósito de uma empresa, que recebe benefícios bilionários dos incautos contribuintes, polui o meio ambiente, produz carros de qualidade inferior ao de seus concorrentes asiáticos e, como se não bastasse, paga generosos salários aos seus executivos.

A Ford, que recebeu durante um século todo o tipo de anabolizante fiscal, especialmente a partir do governo Juscelino Kubitschek, o presidente bossa nova que herda um ciclo de crescimento e inicia a marcha da inflação, a partir de 1956. Foi um grande amigo das montadoras.

O fato é que em um pequeno recorte feito pelo Ibre (Instituto Brasileiro de Economia) comprova que as grandes montadoras receberam R$ 47 bilhões em isenções federais, sem contar os subsídios generosos dos estados e municípios, entre 2006 e 2020. Para se ter uma ideia, no Paraná, a conta é de R$ 1,4 bilhão por ano de renúncia do ICMS para a produção de carros e outros veículos automotores. No Rio Grande do Sul, os números são superlativos e abertos por setor da atividade produtiva como deveriam ser no Rio de Janeiro. O governador João Doria poderia também revelar o tamanho da isenção a essas empresas. E o liberal governador Romeu Zema deveria explicar as vantagens concedidas à Fiat, que, em áureos tempos, oferecia viagens luxuosas a jornalistas - descritas pela revista Veja - e carros caros com preço altamente subsidiados a editores e colunistas relevantes.

Quanto custa cada emprego gerado pela Ford em Camaçari e por que o fechamento de suas fábricas causa tanto espanto? Por que, durante a pandemia, muitas empresas, entre redes de varejo, indústrias e corajosas startups abriram o capital na bolsa ou tomaram riscos elevados, enquanto a Ford, que já vinha mal das pernas há três anos, não conseguiu se reinventar? O câmbio é uma variável que costuma desmoralizar os economistas, mas qualquer despreparado sabe que o dólar quase a 6 reais, como ocorreu na época de volatilidade absurda, era o momento certo para exportar. No caso dos carros da Ford, não haveria compradores. Já a Vale viu suas ações dobrarem de preço em razão das compras maciças de minério de ferro da China, em 2020. Produto de qualidade.

Durante parte do Governo Dilma Rousseff, as montadoras ainda tiveram o benefício do Inova Auto, que despejou R$ 5,2 bilhões no setor. O BNDES ou o BNDE – como ainda fala o ministro Paulo Guedes – ao oferecer um programa com taxas de juros de pouco mais de 2% ao ano seguiu na era petista a farra de parte do ciclo militar, quando o banco oferecia um financiamento com correção monetária negativa de 20%, projeto concebido pelo então poderoso ministro Reis Velloso (governos Médici e Geisel). Isso significava que um financiamento de 100, equivaleria no guichê do bancão apenas 80. A maior parte dos beneficiários era de São Paulo.

Muitas empresas quebraram e a farra ficou conhecida como o Recreio dos Bandeirantes.

Numa análise ainda em discussão no âmbito do Ibre sobre benefícios fiscais como um todo, José Roberto Afonso mostra que, em valores constantes, os benefícios saltam de R$ 220 bilhões, em 2011, para R$ 305 bilhões em 2014 (Dilma 1). Nesta conta, estão inclusas as renúncias creditícias, que no total da mesada aos ricos alcança impressionantes 6,16% do PIB em 2014.

Há bons economistas que investigam o chamado valor adicionado de uma Ford, que deixou para trás 5 mil  empregos -- o que é lastimável -- mas quanto a empresa contribuiu de riqueza para a sociedade de Taubaté à Bahia? Por que o então governador gaúcho Olívio Dutra, do PT, que depois do fim do seu mandato era visto andando de ônibus, abriu mão da fábrica da Ford, enquanto Antonio Carlos Magalhães e o então governador César Borges atraíram a montadora a um custo certamente elevado para o estado? No caso gaúcho, a renúncia do estado chegaria a preços de hoje a R$ 2,6 bilhões, noves fora a ajuda do governo federal. Dutra estava certo, pois em 1999 a economia patinava em razão da forte desvalorização do real.

As isenções tributárias para as empresas atingiram R$ 320 bilhões, no ano passado, mais do que a totalidade do auxilio emergencial e do Bolsa Família. Cerca de 67 milhões de brasileiros foram beneficiados, sendo que uns 30 milhões, para espanto do Ministério da Economia, eram invisíveis. É gente que dá duro, acorda na madrugada, mas o governo, por uma falha histórica de uma sociedade medieval, simplesmente os desconhecia.
Por que o fechamento da Ford causa tanta comoção e chama a atenção dos famosos especialistas? Será que os investidores e a bolsa estão míopes por manterem a aposta em uma expansão que pode atingir 4,5% do PIB neste ano? São malucos?

As isenções não sairiam mais baratas se os trabalhadores recebessem treinamento adequado para montarem os seus negócios e, os executivos deixassem de ganhar salários exorbitantes com direito a bônus generosos?

A Ford culpou o governo. Deveria espetar o erro em Pedro Álvares Cabral, o nosso descobridor.

Há algo estranho nessa equação. Em meados de 1994, um corajoso funcionário da Receita Federal entregou ao “Jornal do Brasil” os balanços das quatro grandes montadoras. Por manobras fiscais legais, nenhuma delas recolhia Imposto de Renda pois apresentavam prejuízos. No dia seguinte, em off the records, a equipe do extinto jornalão confirmava com altas autoridades econômicas que a manchete no domingo estava correta. Enquanto a classe média pagava o seu IR, o dono da quitanda emitia notas fiscais, as montadoras de carros não recolhiam um centavo de imposto de renda. E tudo parecia normal.

Logo depois da deposição do presidente João Goulart, em março de 1964, com o decisivo apoio dos americanos, na chamada operação Brother Sam, houve uma grande reformulação do Estado. Goulart herdara uma inflação sem controle e o seu ministro Celso Furtado produzira um programa trienal tão ortodoxo a ponto de receber os elogios de Roberto Campos, o ministro do Planejamento de Castello Branco (1964-1967).

As reformas, como já foi descrito nesta coluna, cara leitora e caro leitor, foram duríssimas, mas necessárias para pôr o país no trilho do crescimento, o que ocorreria a partir de 1969. Os mesmos empresários que se beneficiaram da inépcia de João Goulart, um politico conciliador, ficaram assustados com o regime militar.

Um grupo deles, achando que poderia manipular as autoridades, foi se queixar da grave situação econômica ao então ministro da Fazenda, Octavio Gouvêa de Bulhões, sobre as dificuldades e pedindo subsídios e benefícios fiscais. Em 1989, voltando no tempo, Bulhões, recostado em sua cadeira no apartamento em Copacabana, Zona Sul do Rio, me disse sem pestanejar  a famosa frase dirigida aos empresários chorões: “A falência é purificadora”.

Foi um santo homem, servidor público dedicado, que admirava a ironia fina. Bulhões, ao contrário do que acontecerá aos executivos da Ford, morreu com pouquíssimos recursos em 1990. Os chefões da Ford vão curtir uma generosa indenização.

Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME