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O dilema do liberalismo e as agendas de Lula e de Bolsonaro

No Brasil, as eleições presidenciais jogam para um dilema jamais visto na jovem democracia

Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. (Bolsonaro: Andressa Anholete / Lula: Minas/Bloomberg/Getty Images)
Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. (Bolsonaro: Andressa Anholete / Lula: Minas/Bloomberg/Getty Images)
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Coriolano Gatto

Publicado em 27 de abril de 2022 às, 12h53.

Última atualização em 27 de abril de 2022 às, 13h04.

O pensador conservador Patrick Deneen tem uma trajetória destacada ao abordar o colapso do liberalismo. Em um livro clássico, descreve o dilema moral de uma jovem aluna: “Somos meritocratas por um instinto de sobrevivência. Se não corrermos para o topo, a única opção que restará é o poço sem fim do fracasso. Como vemos a humanidade e, por consequência, as suas instituições como corruptas e egoístas, a única pessoa com quem você pode contar é si mesmo. O único jeito de se esquivar do fracasso, evitar ser deixado para trás em última instância, é sucumbir ao mundo de causas em nossa volta. Portanto, é ter os meios, a segurança financeira para poder depender apenas de si mesmo.”

Esse individualismo exacerbado da jovem reflete em um mundo protecionista, permeado por um individualismo sem tamanho, a ponto de influir nas eleições presidenciais de todo o mundo, e de manter uma guerra insana que contabilizará prejuízos internacionais gigantescos, inclusive com a queda de 20% do PIB na Rússia, país que vinha exibindo indicadores robustos, mesmo com a Covid-19.

No Brasil, as eleições presidenciais jogam para um dilema jamais visto na jovem democracia, vilipendiada por alguns militares que não honram a sua farda ao chancelar os horrores da tortura, que afrontam a democracia liberal e o cidadão de bem. E promovem ataques. Desprezam a inteligência.
 
 A questão fiscal é o nó górdio da disputa provável entre o futuro presidenciável Lula e o atual mandatário.

Lula insiste em um modelo em que é possível rever a reforma trabalhista e aumentar de sobremaneira os investimentos em educação, saúde, cultura e meio ambiente, sem contabilizar as promessas feitas para as demais áreas sociais. Lula fala para o seu eleitorado e está correto em suas promessas; o problema é que o Brasil não é nem de longe o mesmo de 2002, especialmente na piora na distribuição de renda e na queda brutal do salário real médio, segundo o insuspeito IBGE.

Bolsonaro cresce nas pesquisas de intenções de voto em razão do aumento de programas sociais e liberação de verbas para o FGTS, aumento do microcrédito e até mesmo emendas secretas do Orçamento. Ganha mais eleitores porque tem uma comunicação fácil, conversa com as pessoas; enquanto Lula, a julgar pelas aparições na TV, nem de longe lembra o político arrojado do início de século. Lula ficou hermético, palavreado refinado, metáforas incompreensíveis para a grande população que se informa na TV aberta; enquanto Bolsonaro, nos seus arroubos autoritários, domina um discurso simples, frases curtas e diretas. É magnetizante. O governo se beneficiou de alguns indicadores, como o ingresso expressivo de dólares. E ignorou a austeridade dos gastos públicos, o que provocou, por vezes, discordâncias de seu ministro da Economia, a quem cabe zelar pela responsabilidade fiscal.

Não à toa a elite financeira, que chegou a ensaiar o apoio a Lula, opta, a passos largos, por Bolsonaro, ainda que discorde de sua agenda de costumes, que lembra uma era vitoriana caduca, ou a de um porre, como foi o tonitruante Jânio Quadros em sua UDN. Não se trata de um dilema moral, mas de um apoio pragmático em contraposição às teses defendidas até agora por Lula, que não consegue ter uma agenda clara para a economia, às voltas de um terremoto sem precedentes em 2023. O petista não explica o que vai fazer com o Orçamento, com verbas carimbadas em mais de 95%. Nem parece o mesmo político que agiu com austeridade fiscal no período de 2003 a 2010.

Hoje, o mesmo Lula vive o dilema de anunciar o fim do teto dos gastos e prometer, mesmo sem bases técnicas, aumentar o orçamento de pastas fundamentais para um país que foi combalido por Bolsonaro, como educação, cultura, meio ambiente e saúde. Será que Lula acredita que, de um momento para o outro, o mundo protecionista − Joe Biden defende a América para os americanos − vai mesmo aportar centenas de bilhões de dólares sem um programa exíguo para o capital externo, uma Taxa de Retorno do Investimento (TIR) compatível com o chamado Risco Brasil?

Mudar a regra com a bola em jogo − para usar a metáfora preferida pelo ex-presidente − vai exigir uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) com aprovação de dois terços nas duas casas legislativas. Por maior que seja a sua votação nas urnas, será uma tarefa inglória. Já o atual mandatário, está alheio a mudanças, até mesmo porque não deu prioridade à educação − que retrocedeu pelo menos dois anos −, nem à saúde, muito menos à cultura e ao meio ambiente.

O que fica para o próximo presidente é uma dívida fiscal elevada − os estados não repetirão no próximo ano o desempenho de 2022 – além de muitas promessas de atração do capital estrangeiro, em razão do que planeja ser uma longeva guerra da Rússia na Ucrânia e de indicadores preditivos surpreendentes.
A despeito de muitas previsões, o Brasil pode crescer perto de 1% neste ano, dado o grande salto nas commodities e a regras institucionais dos marcos regulatórios lançados pelo Ministério da Economia, que dão segurança ao investidor internacional, noves fora o grande mercado consumidor. Há grandes oportunidades no cenário brasileiro, apesar das incertezas no mundo, o que alterou a trajetória do dólar e terá um efeito mais intenso no comportamento da inflação dos países emergentes.

As dificuldades são evidentes em um mundo com o agravante, particularmente aqui, do famoso conflito distributivo, como diria o economista Paul Singer, mestre de muitas gerações comprometidas com o desenvolvimento sustentável e inclusivo. Ninguém quer sucumbir o mundo à sua volta; ou voltar a velhos tempos sem liberdades de expressão ou a vozes benfazejas de autoritarismo. Bolsonaro e Lula sabem que o mundo de conflito armado não se enquadra no porvir.
 
O filósofo Bertrand Russel e Roberto Campos, em momentos diferentes, apontavam para o mesmo dilema: a estupidez está sempre na primeira fila, enquanto a inteligência situa-se na retaguarda para ver. Ou a diferença entre a inteligência e a estupidez é que a inteligência é limitada. O eleitor saberá distinguir quem é mais preparado para decidir os novos rumos do Brasil, independentemente de ideologia à esquerda ou à direita.

O fato concreto é que o Brasil tem pressa, sob o risco de perder a corrida por novas tecnologias, que aumentarão a produtividade, tema hoje crucial no desenvolvimento. Não faltam oportunidades, mas escasseiam projetos estruturantes para um novo Brasil.

Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME