O câmbio, os deuses e a sabedoria de Celso Pinto
O FGV Ibre preparou uma série histórica do PIB, produzida pelo grande especialista em contas nacionais e ex-presidente do IPEA, Claudio Considera
Publicado em 30 de julho de 2021 às, 11h18.
Última atualização em 30 de julho de 2021 às, 11h21.
Por Coriolano Gatto
O câmbio é a variável mais complexa da economia, dada a relação de troca entre os países. Causa ilusões e, às vezes, distorce a realidade. Há uma lenda de que o câmbio foi uma invenção dos deuses para humilhar os economistas. O jornalista econômico Celso de Campos Pinto, o maior do século passado, lançou na influente Gazeta Mercantil, formadora de um celeiro de profissionais, uma reportagem que marcou a época: a contabilidade do PIB (Produto Interno Bruto) em moeda nacional e em dólar.
A extinta Gazeta publicava a notícia de forma técnica e com precisão cirúrgica, a ponto de ganhar o apelido jocoso de “Pravda do mercado financeiro”, numa alusão ao jornal oficial do Partido Comunista na extinta União Soviética. Uma matéria na Gazeta Mercantil ganhava o peso de verdade absoluta e pautava toda a imprensa.
O FGV Ibre, a pedido da coluna, preparou uma série histórica do PIB, produzida pelo grande especialista em contas nacionais e ex-presidente do IPEA, Claudio Considera. A flutuação da moeda pode levar a conclusões errôneas, mas comprova a ilusão causada pela apreciação do real ou a sua forte desvalorização em períodos distintos da história.
Tome-se o exemplo mais recente a expansão do PIB. Em 2020, o dólar encerra em R$ 5,15, fazendo com que ficássemos muito pobres na moeda americana, em comparação a 2019, e estáveis em reais. Todos sabem que o PIB, a despeito de previsões catastrofistas caiu somente 4,1% e não 15% — como apontavam as previsões iniciais. Na contabilidade do PIB, seguindo o rigoroso padrão internacional, o conjunto de bens e serviços atingiu exatos R$ 7,447 trilhões ou US$ 1,445 bilhão, o correspondente a uma variação próxima de zero em relação a 2019 em reais e a uma queda de impressionantes 26% em moeda americana. Ficamos paupérrimos em dólar e pobres em reais, ou remediados, em linguagem popular.
Explica-se: o dólar fechou em 2019 a R$ 3,94. A apreciação do real em 1996, no primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, levou o PIB a crescer em dólar 21%. Os brasileiros ficaram, em termos estatísticos, muito ricos. No fim do governo Lula 2, em função da crise global, que causou uma desvalorização do real e um forte crescimento econômico impulsionado pelas commodities, ficamos ricos em dólar (+15%) e muito prósperos em real (quase 30%).
Durante o ciclo militar, houve uma época de maxidesvalorizações, o que causava inquietude no cidadão comum, e enricava os onipresentes insiders. Em certa ocasião, uma autoridade econômica tentou explicar que a dívida externa, mesmo com a forte expansão do dólar, aumentava apenas a expressão em cruzeiros, mas mantinha a dívida constante. Um deputado baixo — estatura de um metro e quarenta e cinco — foi questionar a autoridade, pois não aceitava as explicações técnicas. Recebeu então um verdadeiro tiro acadêmico eivado de maledicência: “Por exemplo, se o senhor expressar a sua altura em centímetros em vez de metros, isto não o tornará cem vezes mais alto.”
Celso Pinto não fazia previsões, apenas destrinchava a economia com a mesma elegância de Carlos Castelo Branco, morto em 1993, na área política. Não era um articulista enviesado. Interpretava os fatos com rara maestria. Na forte apreciação do real, em fins de 1996, publicou uma coluna, simultaneamente na Folha de S.Paulo e no extinto Jornal do Brasil, baseada em análise do então desconhecido do público, Ilan Godfajn, à época técnico do Fundo Monetário Internacional (FMI). Sem estardalhaço, apontou para algo que depois se tornaria óbvio em 1998: o real precisava sofrer correção para evitar que o mercado a fizesse, o que ocorreria em janeiro de 1999. No Plano Cruzado, em 1986, Celso cunhou uma expressão que se tornaria famosa: o realinhamento de preços em vez do popular descongelamento. A precisão não tinha lugar para opiniões desprovidas da verdade.
No início da pandemia, em abril de 2020, um analista de um grande banco internacional foi alvo de chacota de seus pares ao ousar prever um dólar em R$ 4,34 para 2021, no momento em que o mercado não sabia qual seria a taxa em sete dias, dada a volatilidade dos mercados. Nessa época, sequer estava definido o valor e a extensão do auxílio emergencial. Recentemente, o Banco Central, segundo o repórter Alex Ribeiro, produziu um estudo em que revela que a baixa de um ponto percentual na taxa Selic pelo Comitê de Política Monetária leva a uma depreciação cambial de 3,4%. No Plano Real, de FHC e parte da era petista, o câmbio e os juros na lua represaram a inflação e apreciaram o real. No início do Real, o dólar valia menos de R$ 0,90 e, em outubro, despencou para R$ 0,83, o que levou o então ditador Fidel Castro, eterno presidente de Cuba, a cheirar uma cédula de um real, e a perguntar em tom irônico: “Qual é o milagre do dólar valer muito menos do que o real?”.
Até agora, cara leitora e caro leitor, todos querem saber se o PIB vai crescer mais de 5% neste ano e outros 3% em 2022, com a imunização da população até outubro, não importando se será em dólar ou em reais. Essa missão espinhosa fica para os economistas e os deuses, que tentam desmoralizá-los.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME