O Brasil na encruzilhada de modelos antigos ou o marinheiro de John Locke
O Brasil está à beira da encruzilhada com o seu exponencial crescimento da dívida pública e a necessidade de manter programas sociais
Bibiana Guaraldi
Publicado em 19 de outubro de 2020 às 09h11.
O Brasil está como o juiz ou o marinheiro descrito pelo filósofo liberal John Locke (1632-1704), autor de obras seminais no campo político. Sobram razões para ter uma boa dose de ceticismo, não em relação ao país, mas a uma parte da sua elite que conduz os destinos da nação. Locke traduz algo que soa atualíssimo: “Quem será o juiz, quando o príncipe ou o poder legislativo agem de forma contrária à confiança que lhes foi depositada?”, interroga no clássico “Primeiro Tratado do Estado”, a sua obra mais complexa.
Mesmo com os notáveis indicadores econômicos à vista – crescimento do comércio, do mercado de capitais e até mesmo da combalida indústria frente aos cenários aterrorizantes de meados de março –, há incertezas no horizonte. As dúvidas beiram desde a manutenção da atual taxa de juros básica, a Selic , fixada pelo Banco Central, até o ritmo de expansão do PIB, o conjunto de bens e serviços da economia, que certamente surpreenderá (positivamente) boa parte dos analistas, o que pode causar uma inflação de demanda, como dizem os economistas, nada desprezível para as autoridades monetárias.
O governo insiste entre dois opostos, que lembram discussões dos anos 1980: o desenvolvimentismo, baseado na forte presença do Estado, e um liberalismo que seria revisto até pelo notável economista Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976, e estrela da Universidade de Chicago.
Nesta EXAME, o colunista Mario Henrique Simonsen, início dos anos 1990, foi duro com as correntes opostas do pensamento econômico. “Na realidade, tanto Marx, de um lado, quanto Friedman e Hayek, de outro, tentaram construir uma grande síntese do comportamento econômico, à semelhança do que Newton fizera com a mecânica e a lei da gravitação. Ocorre que a teoria newtoniana foi um sucesso, enquanto as tentativas de síntese em economia deram errado. De fato, é preciso certa pobreza de espírito para levar qualquer dos três a sério, pelo menos dentro da perspectiva dos conhecimentos atuais.”
À época do ensaio, o ministro da Fazenda no governo Geisel (1974-1979) criticara com vigor tanto o modelo fracassado da velha União Soviética, que se dissolvia desde 1989, quanto o excesso de liberalismo de Ronald Reagan (1911-2004), nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher (1925-2013 ), na Inglaterra, que criaram enormes déficits públicos e bolhas nas bolsas de valores. Na visão de Simonsen, Karl Marx, Milton Friedman e Friedrich Hayek foram teóricos incapazes de criarem modelos eficazes de política econômica; isso para não falar de políticas públicas.
O Brasil está à beira da encruzilhada com o seu exponencial crescimento da dívida pública e a necessidade de manter programas sociais para evitar o aumento da miséria e a concentração de renda. Convive com a fricção de dois modelos.
Enquanto não conseguir debelar privilégios de castas empresariais – nem é preciso citar os nomes dos setores beneficiadas anos a fio pelo governo – e da elite do funcionalismo público que tem semelhanças com a velha “nomenklatura” do modelo soviético, o país viverá à beira do precipício. Com isso, cara leitora e caro leitor, não terá recursos para investir em infraestrutura, que gera empregos e permite o desenvolvimento sustentável. Sem ganhos de produtividade, estamos condenados a ter espasmos, expansões criativas e pontuais, como ocorre com centenas de startups, sem cingir o caminho do saudável crescimento.
Afinal, que relação o marinheiro citado por Locke tem com a atual encruzilhada nacional, como foi escrito no “Ensaio Acerca do Entendimento”?
Com a palavra, o filósofo inglês:
O Brasil precisa com urgência definir neste fim de ano o tamanho de sua linha, a sua capacidade de engendrar soluções que tornem o ambiente amigável para o setor privado, atraindo o investimento produtivo. Sem isso, estamos condenados a permanentes voos de galinha ou a trombar com um escolho.
O Brasil está como o juiz ou o marinheiro descrito pelo filósofo liberal John Locke (1632-1704), autor de obras seminais no campo político. Sobram razões para ter uma boa dose de ceticismo, não em relação ao país, mas a uma parte da sua elite que conduz os destinos da nação. Locke traduz algo que soa atualíssimo: “Quem será o juiz, quando o príncipe ou o poder legislativo agem de forma contrária à confiança que lhes foi depositada?”, interroga no clássico “Primeiro Tratado do Estado”, a sua obra mais complexa.
Mesmo com os notáveis indicadores econômicos à vista – crescimento do comércio, do mercado de capitais e até mesmo da combalida indústria frente aos cenários aterrorizantes de meados de março –, há incertezas no horizonte. As dúvidas beiram desde a manutenção da atual taxa de juros básica, a Selic , fixada pelo Banco Central, até o ritmo de expansão do PIB, o conjunto de bens e serviços da economia, que certamente surpreenderá (positivamente) boa parte dos analistas, o que pode causar uma inflação de demanda, como dizem os economistas, nada desprezível para as autoridades monetárias.
O governo insiste entre dois opostos, que lembram discussões dos anos 1980: o desenvolvimentismo, baseado na forte presença do Estado, e um liberalismo que seria revisto até pelo notável economista Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia em 1976, e estrela da Universidade de Chicago.
Nesta EXAME, o colunista Mario Henrique Simonsen, início dos anos 1990, foi duro com as correntes opostas do pensamento econômico. “Na realidade, tanto Marx, de um lado, quanto Friedman e Hayek, de outro, tentaram construir uma grande síntese do comportamento econômico, à semelhança do que Newton fizera com a mecânica e a lei da gravitação. Ocorre que a teoria newtoniana foi um sucesso, enquanto as tentativas de síntese em economia deram errado. De fato, é preciso certa pobreza de espírito para levar qualquer dos três a sério, pelo menos dentro da perspectiva dos conhecimentos atuais.”
À época do ensaio, o ministro da Fazenda no governo Geisel (1974-1979) criticara com vigor tanto o modelo fracassado da velha União Soviética, que se dissolvia desde 1989, quanto o excesso de liberalismo de Ronald Reagan (1911-2004), nos Estados Unidos, e de Margaret Thatcher (1925-2013 ), na Inglaterra, que criaram enormes déficits públicos e bolhas nas bolsas de valores. Na visão de Simonsen, Karl Marx, Milton Friedman e Friedrich Hayek foram teóricos incapazes de criarem modelos eficazes de política econômica; isso para não falar de políticas públicas.
O Brasil está à beira da encruzilhada com o seu exponencial crescimento da dívida pública e a necessidade de manter programas sociais para evitar o aumento da miséria e a concentração de renda. Convive com a fricção de dois modelos.
Enquanto não conseguir debelar privilégios de castas empresariais – nem é preciso citar os nomes dos setores beneficiadas anos a fio pelo governo – e da elite do funcionalismo público que tem semelhanças com a velha “nomenklatura” do modelo soviético, o país viverá à beira do precipício. Com isso, cara leitora e caro leitor, não terá recursos para investir em infraestrutura, que gera empregos e permite o desenvolvimento sustentável. Sem ganhos de produtividade, estamos condenados a ter espasmos, expansões criativas e pontuais, como ocorre com centenas de startups, sem cingir o caminho do saudável crescimento.
Afinal, que relação o marinheiro citado por Locke tem com a atual encruzilhada nacional, como foi escrito no “Ensaio Acerca do Entendimento”?
Com a palavra, o filósofo inglês:
O Brasil precisa com urgência definir neste fim de ano o tamanho de sua linha, a sua capacidade de engendrar soluções que tornem o ambiente amigável para o setor privado, atraindo o investimento produtivo. Sem isso, estamos condenados a permanentes voos de galinha ou a trombar com um escolho.