O aperfeiçoamento do mercado de capitais e como evitar as armadilhas
O mercado de capitais experimentou um grande salto e um refinamento em suas práticas, com a adesão a novos modelos de governança
André Martins
Publicado em 8 de abril de 2021 às 13h10.
Última atualização em 8 de abril de 2021 às 22h02.
De tempos em tempos, o mercado de capitais vê surgirem modismos, alguns bem-intencionados, em muitos casos adotados em nome da chamada governança corporativa, tendo como alvo a reinvenção de um sistema que tem como arcabouço a Lei das Sociedades por Ações. Nela, além da instituição do dividendo mínimo obrigatório, talvez a inovação mais relevante tenha sido o reconhecimento da figura do acionista controlador, com a definição de seus deveres e responsabilidades.
Com a palavra José Luiz Bulhões Pedreira (1925-2006), coautor da Lei das S/A, em uma conversa no início de 1998:
“Em toda companhia aberta, há duas espécies irredutíveis de acionistas: o empresário empreendedor, que cria e expande a empresa, a ela se dedica permanente e profissionalmente, vive todos os seus problemas e se realiza nessa atividade; e o investidor de mercado, que objetiva, tão somente, a mera aplicação do capital. Nunca ninguém ouviu falar de empresa que nascesse espontaneamente pela reunião de investidores do mercado e administradores profissionais, sem um ou alguns líderes que desempenhassem a função do administrador.”
O que o Bulhões Pedreira disse há mais de 40 anos (a Lei 6.404, de 1976) continua perfeitamente válido: sem o empresário responsável pela organização inicial dos fatores de produção (capital e trabalho) que constitui a empresa, esta não existe. Permanece, por isso, a exigência de fazer com que o poder absoluto e imperial do controlador, não disciplinado na lei antiga, não prevalecesse como tal.
Ele queria − e nisso foi absolutamente original − o reconhecimento da figura do controlador e que a responsabilidade pela gestão da sociedade não ficasse limitada aos profissionais indicados pelo acionista majoritário, num sistema em que este último frequentemente não integrava a administração, participando por meio de sucessivas holdings, mas com poder absoluto sobre a vida empresarial.
De lá para cá, o mercado de capitais experimentou um grande salto e um refinamento em suas práticas, com a adesão a novos modelos de governança, o que introduziu a saudável conformidade às boas práticas de meio ambiente e social, hoje traduzidas no acrônimo ESG, com a ênfase cada vez maior à necessidade de conselheiros independentes, contrapondo-se, quando necessário, aos representantes do acionista controlador.
Mas os conselheiros independentes não podem substituir o acionista que toma risco, carrega, em muitos casos, a experiência secular da família, além da vivência empresarial. Nem vou citar casos recentes de malfeitos em que os conselheiros foram meras peças de decoração e sequer foram responsabilizados, ainda que comecem a surgir, de forma tímida, mecanismos para responsabilizar os administradores em atos em que não agiram com a necessária diligência, o que aumenta a responsabilidade do conselheiro, especialmente em segmentos mais regulados pelo Estado.
Pior ainda é o caso das empresas estatais, onde conselheiros competentes e bem-intencionados se viram, em casos recentes, surpreendidos pelo que ocultamente acontecia nos subterrâneos da empresa e nos canais entre esses subterrâneos e órgãos do governo.
Da mesma forma, é inconcebível que na transição para um capitalismo empresarial moderno, o controlador não entenda a importância do crescente mercado de capitais e da sua pulverização. “Em um determinado ponto da economia moderna, o capital necessário para o progresso (às vezes para a própria sobrevivência da empresa) é maior do que os recursos do controlador e a geração interna de caixa. É mais interessante a empresa se expandir e ele ficar com 40% de um negócio muito maior.
E surge o conceito moderno do chamado ‘acionista de referência’”, diz Paulo Cezar Aragão, sócio-fundador de BMA Advogados, ex-superintendente jurídico da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), no período 1979-1981. Ter um unicórnio sob gestão − empresa que vale mais de US$ 1 bilhão – ao mesmo tempo, paradoxalmente, exige novas fontes de financiamento e abre caminho para elas, o que vai levar a companhia para a permanente competição dentro de um mercado aberto à internacionalização, mesmo com todas as intempéries da economia brasileira.
Antes, os conselheiros eram eleitos pelo acionista controlador. No Novo Mercado, a preocupação formal é a de ter conselheiros independentes que possam se contrapor ao controlador, e não apenas serem um mero preposto deste último. Mas, ao mesmo tempo, deveria ser uma inquietação de todos os lados, com o preparo do conselheiro, com o conhecimento dele para tratar do desenvolvimento da companhia e dos riscos inseridos nela e no mercado em que está presente.
Não faz sentido, por exemplo, um conselheiro da Vale S/A não entender em profundidade o mercado de mineração, das barragens e de toda a complexidade envolvida no negócio. Vale lembrar que a ausência de rigor técnico causou duas grandes tragédias: Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambas em Minas Gerais. Fez falta quem conhecesse as lições do engenheiro Eliezer Batista (1924-2018), o grande estrategista e empreendedor da mineradora.
O conselho de administração, diziam os autores da Lei das Sociedades Anônimas, funciona como uma verdadeira miniassembleia geral permanente, formada pelos representantes indicados pelos acionistas, com o dever legal de zelar pelo direito daqueles que investiram recursos nela e para os hoje chamados de stakeholders, ou seja, todos aqueles que, como empregados, clientes, fornecedores ou integrantes da comunidade onde atua a empresa, vinculam-se diretamente com ela.
Ocorre que o pêndulo foi em demasia para o outro lado, de tal forma que a ideia da governança corporativa passou a ser um valor em si próprio, criando verdadeiros baluartes na matéria, mas que se acham distantes da própria essência do negócio. Da mesma forma, é inconcebível que um conselheiro tenha assento em um número grande de empresas, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde há uma limitação em razão da complexidade da atividade e da responsabilidade perante todos os acionistas.
Sem querer desmerecer os esforços bem-intencionados de órgãos destinados a disseminar os princípios da boa governança corporativa, não faz muito sentido que conselheiros sejam formados por meio de certificados sem conhecerem a essência da administração de um negócio, as suas mazelas e os percalços de uma economia complexa como a brasileira, em que decisões políticas no afogadilho influenciam o câmbio e a taxa de juros em algumas semanas. Decisões irracionais de governos exigem que os conselheiros passem no teste do purgatório de ser empresário no Brasil, onde há insegurança jurídica em boa parte dos segmentos da economia.
Não é bom para uma companhia aberta, sujeita a todo tipo de intempérie, ter uma espécie de conselheiro de laboratório, aquele que estudou a fundo em todas as escolas de governança, mas não teve a vivência, e experiência, de um acionista controlador, que conhece o seu mercado e, milimetricamente, os seus riscos.
O importante é tomar decisões, refletidas, informadas e desinteressadas, fora de um conflito. Isso tudo dentro do conceito de que o administrador não é obrigado a dar certo, mas a se esforçar. Por definição, algumas decisões serão melhores do que outras. O dever do conselheiro é buscar acertar mais, agindo de forma diligente, tomando decisões informadas, refletidas e desinteressadas.
Nessa busca permanente pela boa governança, é importante destacar a preocupação com companhias que buscam a presença de mulheres em seus conselhos de administração, a exemplo do que é corriqueiro na Europa, e com excepcionais resultados. Não à toa companhias como a Embraer, a B3, Magazine Luisa e a Ambev são exemplos de paradigma de conselheiras preparadas e com uma visão de negócio e em conformidade com as melhores práticas sociais, exemplifica Paulo Aragão.
Essas preocupações, trazidas pelo crescimento e pela globalização da economia nacional, não constituem um mero modismo, mas o efeito da necessidade de atualizar, de forma permanente, o arcabouço legal criado em 1976. Ou como disse, certa vez, o empresário Daniel Valente Dantas, que conviveu com Bulhões Pedreira em grandes batalhas societárias:
“Ele tinha um apreço pela estética da obra. Não só aderência ao mundo real, que dava a ele a capacidade da arquitetura ficar em pé e ser eficaz. Além de eficaz, era extraordinariamente eficiente na construção”.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME
De tempos em tempos, o mercado de capitais vê surgirem modismos, alguns bem-intencionados, em muitos casos adotados em nome da chamada governança corporativa, tendo como alvo a reinvenção de um sistema que tem como arcabouço a Lei das Sociedades por Ações. Nela, além da instituição do dividendo mínimo obrigatório, talvez a inovação mais relevante tenha sido o reconhecimento da figura do acionista controlador, com a definição de seus deveres e responsabilidades.
Com a palavra José Luiz Bulhões Pedreira (1925-2006), coautor da Lei das S/A, em uma conversa no início de 1998:
“Em toda companhia aberta, há duas espécies irredutíveis de acionistas: o empresário empreendedor, que cria e expande a empresa, a ela se dedica permanente e profissionalmente, vive todos os seus problemas e se realiza nessa atividade; e o investidor de mercado, que objetiva, tão somente, a mera aplicação do capital. Nunca ninguém ouviu falar de empresa que nascesse espontaneamente pela reunião de investidores do mercado e administradores profissionais, sem um ou alguns líderes que desempenhassem a função do administrador.”
O que o Bulhões Pedreira disse há mais de 40 anos (a Lei 6.404, de 1976) continua perfeitamente válido: sem o empresário responsável pela organização inicial dos fatores de produção (capital e trabalho) que constitui a empresa, esta não existe. Permanece, por isso, a exigência de fazer com que o poder absoluto e imperial do controlador, não disciplinado na lei antiga, não prevalecesse como tal.
Ele queria − e nisso foi absolutamente original − o reconhecimento da figura do controlador e que a responsabilidade pela gestão da sociedade não ficasse limitada aos profissionais indicados pelo acionista majoritário, num sistema em que este último frequentemente não integrava a administração, participando por meio de sucessivas holdings, mas com poder absoluto sobre a vida empresarial.
De lá para cá, o mercado de capitais experimentou um grande salto e um refinamento em suas práticas, com a adesão a novos modelos de governança, o que introduziu a saudável conformidade às boas práticas de meio ambiente e social, hoje traduzidas no acrônimo ESG, com a ênfase cada vez maior à necessidade de conselheiros independentes, contrapondo-se, quando necessário, aos representantes do acionista controlador.
Mas os conselheiros independentes não podem substituir o acionista que toma risco, carrega, em muitos casos, a experiência secular da família, além da vivência empresarial. Nem vou citar casos recentes de malfeitos em que os conselheiros foram meras peças de decoração e sequer foram responsabilizados, ainda que comecem a surgir, de forma tímida, mecanismos para responsabilizar os administradores em atos em que não agiram com a necessária diligência, o que aumenta a responsabilidade do conselheiro, especialmente em segmentos mais regulados pelo Estado.
Pior ainda é o caso das empresas estatais, onde conselheiros competentes e bem-intencionados se viram, em casos recentes, surpreendidos pelo que ocultamente acontecia nos subterrâneos da empresa e nos canais entre esses subterrâneos e órgãos do governo.
Da mesma forma, é inconcebível que na transição para um capitalismo empresarial moderno, o controlador não entenda a importância do crescente mercado de capitais e da sua pulverização. “Em um determinado ponto da economia moderna, o capital necessário para o progresso (às vezes para a própria sobrevivência da empresa) é maior do que os recursos do controlador e a geração interna de caixa. É mais interessante a empresa se expandir e ele ficar com 40% de um negócio muito maior.
E surge o conceito moderno do chamado ‘acionista de referência’”, diz Paulo Cezar Aragão, sócio-fundador de BMA Advogados, ex-superintendente jurídico da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), no período 1979-1981. Ter um unicórnio sob gestão − empresa que vale mais de US$ 1 bilhão – ao mesmo tempo, paradoxalmente, exige novas fontes de financiamento e abre caminho para elas, o que vai levar a companhia para a permanente competição dentro de um mercado aberto à internacionalização, mesmo com todas as intempéries da economia brasileira.
Antes, os conselheiros eram eleitos pelo acionista controlador. No Novo Mercado, a preocupação formal é a de ter conselheiros independentes que possam se contrapor ao controlador, e não apenas serem um mero preposto deste último. Mas, ao mesmo tempo, deveria ser uma inquietação de todos os lados, com o preparo do conselheiro, com o conhecimento dele para tratar do desenvolvimento da companhia e dos riscos inseridos nela e no mercado em que está presente.
Não faz sentido, por exemplo, um conselheiro da Vale S/A não entender em profundidade o mercado de mineração, das barragens e de toda a complexidade envolvida no negócio. Vale lembrar que a ausência de rigor técnico causou duas grandes tragédias: Mariana (2015) e Brumadinho (2019), ambas em Minas Gerais. Fez falta quem conhecesse as lições do engenheiro Eliezer Batista (1924-2018), o grande estrategista e empreendedor da mineradora.
O conselho de administração, diziam os autores da Lei das Sociedades Anônimas, funciona como uma verdadeira miniassembleia geral permanente, formada pelos representantes indicados pelos acionistas, com o dever legal de zelar pelo direito daqueles que investiram recursos nela e para os hoje chamados de stakeholders, ou seja, todos aqueles que, como empregados, clientes, fornecedores ou integrantes da comunidade onde atua a empresa, vinculam-se diretamente com ela.
Ocorre que o pêndulo foi em demasia para o outro lado, de tal forma que a ideia da governança corporativa passou a ser um valor em si próprio, criando verdadeiros baluartes na matéria, mas que se acham distantes da própria essência do negócio. Da mesma forma, é inconcebível que um conselheiro tenha assento em um número grande de empresas, ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde há uma limitação em razão da complexidade da atividade e da responsabilidade perante todos os acionistas.
Sem querer desmerecer os esforços bem-intencionados de órgãos destinados a disseminar os princípios da boa governança corporativa, não faz muito sentido que conselheiros sejam formados por meio de certificados sem conhecerem a essência da administração de um negócio, as suas mazelas e os percalços de uma economia complexa como a brasileira, em que decisões políticas no afogadilho influenciam o câmbio e a taxa de juros em algumas semanas. Decisões irracionais de governos exigem que os conselheiros passem no teste do purgatório de ser empresário no Brasil, onde há insegurança jurídica em boa parte dos segmentos da economia.
Não é bom para uma companhia aberta, sujeita a todo tipo de intempérie, ter uma espécie de conselheiro de laboratório, aquele que estudou a fundo em todas as escolas de governança, mas não teve a vivência, e experiência, de um acionista controlador, que conhece o seu mercado e, milimetricamente, os seus riscos.
O importante é tomar decisões, refletidas, informadas e desinteressadas, fora de um conflito. Isso tudo dentro do conceito de que o administrador não é obrigado a dar certo, mas a se esforçar. Por definição, algumas decisões serão melhores do que outras. O dever do conselheiro é buscar acertar mais, agindo de forma diligente, tomando decisões informadas, refletidas e desinteressadas.
Nessa busca permanente pela boa governança, é importante destacar a preocupação com companhias que buscam a presença de mulheres em seus conselhos de administração, a exemplo do que é corriqueiro na Europa, e com excepcionais resultados. Não à toa companhias como a Embraer, a B3, Magazine Luisa e a Ambev são exemplos de paradigma de conselheiras preparadas e com uma visão de negócio e em conformidade com as melhores práticas sociais, exemplifica Paulo Aragão.
Essas preocupações, trazidas pelo crescimento e pela globalização da economia nacional, não constituem um mero modismo, mas o efeito da necessidade de atualizar, de forma permanente, o arcabouço legal criado em 1976. Ou como disse, certa vez, o empresário Daniel Valente Dantas, que conviveu com Bulhões Pedreira em grandes batalhas societárias:
“Ele tinha um apreço pela estética da obra. Não só aderência ao mundo real, que dava a ele a capacidade da arquitetura ficar em pé e ser eficaz. Além de eficaz, era extraordinariamente eficiente na construção”.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME