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'Não importa a cor do gato mas se ele vai caçar o rato'

Os liberais dizem que os sociais-democratas idolatram o Estado e toleram o mercado. O que existe de verdade ou exagero nessas observações?

O cenário de inflação ficou muito ruim e devemos terminar o ano com a inflação ao redor de dois dígitos (Manoel Pires/Divulgação)
O cenário de inflação ficou muito ruim e devemos terminar o ano com a inflação ao redor de dois dígitos (Manoel Pires/Divulgação)
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Coriolano Gatto

Publicado em 18 de novembro de 2021 às, 14h39.

Última atualização em 18 de novembro de 2021 às, 19h37.

Por Coriolano Gatto

O economista Manoel Pires faz parte da nova geração formada em pleno amadurecimento do regime democrático. Com passagens pela UFF, UFRJ e UnB, onde concluiu o seu doutorado, ele coordena o Observatório Fiscal do FGV Ibre, um dos centros de excelência do país. Fala mansa, didático, é capaz de discorrer sobre temas complexos com facilidade. Trabalhou no governo Lula 2 e Dilma 2. A frase que ilustra a entrevista, do líder chinês Deng Xiaoping, dá a perfeita tradução do seu pragmatismo. Pires reconhece que houve avanços nos últimos governos, e cita a reforma da Previdência e marcos regulatórios. “É importante reconhecer os avanços e ter clareza dos desafios que estão postos para apresentar boas soluções. Ignorar essas questões não ajuda. Muitas vezes, os economistas se preocupam em provar suas teses, mas em discussões práticas isso atrapalha.” O colunista conheceu Pires em Brasília, onde reside – ele nasceu em Duque de Caxias. Defende uma política distributiva agressiva, e bate duro em agendas caras para o desenvolvimento do país.

- O governo atual abandonou temas importantes como educação, ciência e tecnologia e faz apologia à ignorância.

Tem como seus inspiradores os economistas John Maynard Keynes, James Tobin e Paul Krugman e aqui, no plano profissional, Nelson Barbosa e Luiz Guilherme Schymura, “que me tiram da zona de conforto”.

As chamadas correntes progressistas ganharam fama de serem irresponsáveis na agenda fiscal. Os liberais dizem que os sociais-democratas idolatram o Estado e toleram o mercado. O que existe de verdade ou exagero nessas observações?

Essa questão remete à forma de organização da sociedade. Existem vários modelos possíveis com resultados mais ou menos bem delineados. As economias de origem anglo-saxã têm tradição de menor interferência, mas observa-se maior desigualdade. Os países nórdicos são extremamente liberais, mas compensam com uma atuação estatal bastante efetiva e uma ampla rede de proteção social. Mas essas experiências se estabeleceram com sucesso nos países com uma população muito homogênea.

A social democracia combina uma intervenção estatal maior no domínio econômico e alguma proteção social. Essas experiências ficam no meio do caminho com níveis de crescimento e desigualdade intermediária. Os países emergentes ainda estão buscando essa identidade. O Chile adotou um caminho mais liberal, mas a sociedade tem demandado mais proteção social. A desigualdade lá é maior do que a nossa. O México tem pouca proteção social: as pessoas se aposentam com mais de 70 anos, não existe seguro desemprego. A economia, por lá, também não cresce.

O Brasil tentou estabelecer uma social democracia nos últimos 30 anos que foi posta em questionamento na última eleição. O que me chamou muita atenção, desde então, é que se gasta muita energia discutindo se o governo atual é suficientemente liberal. Mas deveríamos discutir quais políticas são adequadas para resolver nossos problemas. Muitas vezes o que importa não é a cor do gato, mas se ele vai caçar o rato.

Como chefe do Observatório Fiscal do FGV Ibre, você tem mantido relacionamento com o Ministério da Economia e com o Governo do RJ, mesmo sabendo que há discordâncias naturais. Falta diálogo no Brasil para tratar da delicada situação econômica para o ano vindouro?

Existe muita polarização, mas percebo muita disposição para ouvir e debater. O país foi atingido por duas crises em um curto espaço de tempo e isso tem gerado muita aflição na sociedade. Há o receio de que o país não consiga voltar a crescer, tem a sombra da inflação, a pobreza voltou e a desigualdade aumentou. Isso cria uma certa desesperança, principalmente porque temos uma geração que nunca viu isso.

Mas, nos últimos anos, o país fez muitas coisas para poder avançar e evitar retrocessos. O sentido de equilíbrio fiscal se fortaleceu. O Governo Federal fez uma ampla reforma da previdência. Governos estaduais estão se ajustando e a sociedade aceitou essas reformas.

Mas em troca do quê? Prometeu-se mais crescimento que não veio. Isso gera uma fadiga que precisa ser compreendida. O governo atual abandonou temas importantes como educação, ciência e tecnologia e faz apologia à ignorância. Apesar de todos os esforços, não é difícil perceber que, desse jeito, isso não vai dar certo.

Há economistas que fulanizam os conhecidos desacertos da política econômica no ministro Paulo Guedes, mas omitem avanços que ocorreram em marcos regulatórios. Qual é a sua opinião?

Existem resultados positivos em concessões, a nova lei do saneamento e as mudanças no setor de telecomunicações. Recentemente, o leilão de 5G foi bem-sucedido e alguns investimentos foram destravados. Outras mudanças regulatórias ainda precisam de mais tempo para amadurecer como a lei do gás. Temos o novo marco de ferrovias que, se aprovado, vai funcionar por meio de uma alternativa menos restritiva, com menor participação estatal. As ferrovias sempre foram um nó importante no desenvolvimento do país e nunca deslanchou porque tem muitos riscos na fase de construção.

O resultado agregado é, contudo, frustrante, pois o investimento continua muito baixo. A ligação entre a agenda de investimentos e privatizações, por exemplo, não é direta. A privatização é uma transferência de um ativo público para o setor privado. Em alguns casos, os ativos transferidos precisam ser administrados de forma mais eficiente com incorporação de novas técnicas de gestão ou direcionamento do plano de negócios. Em outros casos, podem ampliar o investimento do país. Mas os valores em discussão são baixos tendo em vista o tamanho da economia brasileira.

Os dados da ABDIB (Associação Brasileira da Infraestutura e Indústrias de Base) mostram que o Brasil está entre os países que tem a maior participação privada no total do investimento da economia. Existem, portanto, limites para avançar mesmo reconhecendo que melhorias devem ser perseguidas.

Os investimentos públicos não podem ficar permanentemente abaixo da depreciação do estoque de capital como nos últimos anos. Isso é desleixo e falta de compromisso. Não se trata de ser intervencionista; mesmo em economia mais liberais, isso não acontece.

É importante reconhecer os avanços e ter clareza dos desafios que estão postos para apresentar boas soluções. Ignorar essas questões não ajuda. Muitas vezes, os economistas se preocupam em provar suas teses, mas em discussões práticas isso atrapalha.

Há acadêmicos que, a despeito do baixo déficit primário de 1,1% do PIB para 2022, apontam para uma situação de insolvência no médio prazo. Há fundamento nisso?

O Brasil tem um grande desafio fiscal. A dívida tem trajetória insustentável e, ao mesmo tempo, a sociedade demanda mais serviços públicos, mas não parece disposta a financiar isso. Em uma economia que não cresce, esse conflito distributivo se torna insuportável.

Não tenho expectativa de que consigamos produzir avanço significativo no próximo ano, mas espera-se que o próximo governo consiga trazer alguma contribuição. Alguns temas têm amadurecido como a necessidade de se buscar uma regra fiscal mais sustentável depois da fratura do teto de gastos. A reforma administrativa também passou por um debate, apesar de não ter avançado.

É muito difícil resolver essas questões sem algum aumento de carga tributária. Espaço existe: a tributação no Brasil incide pouco sobre a renda, é muito ineficiente e mal distribuída. A carga tributária caiu bastante nos últimos 5 anos.

Não estamos em quadro de insolvência, mas é preciso melhorar bastante até mesmo porque à medida que se avança, cria-se uma outra visão sobre o país, de que está progredindo. Isso cria perspectiva.

É fato que o Mapa da Fome aumentou e o governo Bolsonaro, noves fora o interesse eleitoreiro no Auxílio Brasil, no valor de R$ 400 reais, que termina em dezembro de 2022. O ex-presidente Lula mencionou R$ 600 para amparar os 30 milhões de miseráveis. Isso é factível, tendo em vista que o Orçamento da União, de R$ 1,6 trilhão, sendo que as despesas discricionárias não passam de R$ 100 bilhões. Como aumentar as verbas para programas sociais, saúde, educação e infraestrutura com um orçamento carimbado que obriga prefeitos a gastarem o dinheiro com despesas inúteis?

É muito difícil encontrar uma forma sustentável de ampliação do programa assistencial nos moldes do que foi o auxílio emergencial. Mas o programa assistencial deve ser ampliado tanto em termos de valor do benefício quanto em termos de cobertura. A inflação está alta e a pobreza aumentou nos dois últimos anos. Uma boa meta seria ampliar o orçamento do Bolsa Família, agora Auxílio Brasil, de R$ 34 bilhões para algo mais próximo de R$ 70-80 bilhões.

As reformas administrativa e tributária ficaram para 2023. Você acha possível mexer, por exemplo, em temas como a taxação de tributação e de dividendos, apoiada até por grandes banqueiros. Como se sabe, a medida foi abolida por um governo social democrata em 1995 e mantida por governos mais à esquerda e mais à direita.  A contrapartida seria a redução do IRPJ, que causou protestos nos estados. A tributação com a redução do IRPJ tem um efeito neutro?

A discussão da reforma administrativa está contaminada pela percepção de que parte dos problemas do país está no funcionalismo público que tem salários elevados. Isso é verdade, em alguns casos, certamente não em todos. Ao longo dessa discussão fiscal desenvolveu-se a ideia de que para o país melhorar alguns grupos precisam perder e que o problema está sempre no outro. Na prática, os grupos que perdem são sempre os mais vulneráveis.

O princípio norteador da reforma administrativa deve ser a profissionalização da gestão pública. Isso passa por uma política de recursos humanos que envolve a folha de salários e uma previdência mais racional, como o Estado se organiza para prestar serviços melhores para a sociedade e como adotar tecnologias mais eficientes e poupadoras de mão de obra.

A taxação de lucros e dividendos sempre foi vista como uma medida importante para termos uma tributação mais progressiva e para oferecer mais recursos e reequilibrar as contas públicas. A renda obtida por meio de lucros e dividendos dos 0,1% mais ricos do país equivale a 58% da sua renda total. Ou seja, 58% da renda dos 0,1% mais ricos do país não está sendo tributada.

Para a carga não ficar muito elevada, a tributação de lucros e dividendos deve vir acompanhada da redução da tributação na empresa. A proposta do governo alinharia o sistema brasileiro ao que se vê no resto do mundo. Infelizmente, o andamento no Congresso não foi positivo e esse é um tema que ficará para a frente.

Você tem acompanhado a situação financeira do Estado do RJ. Mesmo com todos os esforços do secretário Nelson Rocha em reduzir a despesa e a ajuda da bonança do petróleo, a dívida, com todo o rigor, é pagável? É preciso encontrar mecanismos para que o Estado ganhe mais fôlego para atrair investimentos e, com isso, ter condições de refinanciar a dívida em um prazo mais longo? Qual é o nó górdio?

Veja a situação do RJ: um estudo recente mostrou que as despesas do governo voltaram para o nível de 2008. Isso é muita coisa e quem faz isso não está brincando com as finanças do Estado. No último mês, aprovou-se uma reforma da previdência e uma reforma administrativa.

O Estado do RJ está buscando uma forma de se viabilizar. É importante reconhecer esse tipo de esforço e pensar sobre suas consequências em um Estado que precisa investir para a economia voltar a crescer e que não é possível ficar vários anos sem reajustar os salários dos servidores.

Mesmo com todo esse esforço, é difícil ver o Estado gerando um fluxo de caixa para pagar a dívida. Olhando os números e todo esforço já feito, me parece que essa dívida deveria ser reestruturada. O Regime de recuperação fiscal foi ampliado para que o RJ continue sem ter que pagar dívida. Com o tempo as coisas vão ficando mais claras para se adotar uma solução permanente.

Para piorar a situação fiscal, há economistas que defendem para 2022 uma taxa Selic de 12% em meio a uma economia em desaceleração. Você acredita que o aumento de juros é a melhor solução para pôr a inflação no centro da meta, já considerando que preços administrados tendem a subir com menor intensidade e, com isso, a inflação poderá ter uma curva declinante? Ao longo da história, os juros foram bons para os rentistas.

O cenário de inflação ficou muito ruim e devemos terminar o ano com a inflação ao redor de dois dígitos. Algumas pressões devem se manter no primeiro semestre. Somando a questão inflacionária decorrente dos choques de oferta, do câmbio e da incerteza fiscal, temos condições financeiras muito adversas em uma economia que não se recuperou e o desemprego segue elevado. O Banco Central acelerou o aperto de juros, mas a dose, a meu ver, começa a ficar exagerada. Se a inflação não ceder nos primeiros meses do ano, o Banco Central talvez se veja na situação de ter que ser mais gradualista. A economia brasileira não precisa de mais uma recessão.

A imunização em fins de novembro vai aumentar o emprego no comércio, ainda que persista um índice grande de informalidade. É possível pensar em queda do desemprego mesmo reconhecendo a taxa tenha um fator estrutural apontada pelo economista Luiz Guilherme Schymura em artigo no Valor?

Sim, a normalização cria condições para que a economia se recupere, mas a velocidade é muito incerta. É possível termos queda do desemprego com desaceleração econômica porque a normalização se dará em empregos de baixa produtividade ao passo que as condições gerais, que seguem negativas, podem afetar os demais setores da economia que já operam próximo da normalidade. O quadro é muito incerto e os prognósticos inspiram cuidado e serenidade.

Se o Paulo Guedes fosse seu aluno – não esqueça que ele se graduou na UFMG também tão conceituada quanto à UnB onde o você dá aula – passaria de ano?  Por favor, fique à vontade para responder (ou não) a questão com toda a sua isenção.

Essa é uma boa provocação. O cargo de ministro requer mais do que bom treinamento em economia. É preciso saber lidar com o mundo da política, ter uma boa leitura do que é possível fazer e como lidar com as adversidades. Além disso, é importante montar uma boa equipe e ter capacidade de liderança.

Existe uma perspectiva errada de que é papel do Ministro da Economia manter sob controle o poder político ou que ele seria responsável pela estabilidade. Sem dúvida, ele contribui para isso. Mas, em última instância, esse é o papel do grupo político no poder. Quem não entende isso, costuma ter dificuldades.