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As ilusões do PIB, da inflação e o relógio do Chapeleiro maluco de Alice

A incongruência faz da agenda econômica algo que precisa ser entendido como uma mera distorção da realidade, tal como no “Alice no País de Maravilhas”

 (Ricardo Moraes/Reuters)
(Ricardo Moraes/Reuters)
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Coriolano Gatto

Publicado em 29 de março de 2021 às, 12h40.

Última atualização em 29 de março de 2021 às, 12h42.

A economia brasileira, tão pujante em inovações criadas por milhares de startups, nos mais diferentes segmentos, está às voltas com fenômenos estatísticos, que atingem de sobremaneira os números do PIB e da inflação.

Uma ilusão terá repercussão em um otimismo desabrido ou em um pessimismo movido por razões eleitorais. Essa incongruência faz da agenda econômica algo que precisa ser entendido como uma mera distorção da realidade, tal como no clássico “Alice no País de Maravilhas”, de Lewis Carrol, eivado de subtextos, de mensagens subliminares. Aos fatos da fantástica história:

Alice estava olhando por cima dos ombros com curiosidade.
− Que relógio engraçado − ela observou.
− Ele diz o dia do mês e não diz a hora!

− Por que deveria − resmungou o Chapeleiro.
− Por acaso o seu relógio diz o ano que é?
− É claro que não − replicou Alice.
− Mas é que o ano permanece por muito tempo o mesmo − completou.
− Este é exatamente o caso do meu − disse o Chapeleiro.

O ano se assemelha a esse diálogo e parece paralisado. O Brasil pode ter um crescimento zero, caso o PIB volte forte no segundo semestre, fazendo com que a economia cresça 3,6%, o correspondente ao chamado carry over do ano passado. É um PIB zero. Economistas reunidos pela PUC-Rio, semana passada, concluíram que, caso não haja medidas populistas, o PIB pode ter uma expansão de 1,8% em 2022, com o processo de aceleração em massa da vacina − cerca de 800 mil doses por dia − o que impulsionará à normalidade a atividade econômica.

Isso muda o jogo político em 2022 ainda que grandes atores, nos bastidores e nas negociações, sejam o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, e o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, dois  artífices de negociações políticas, que desaguariam na aprovação das reformas administrativa e tributária em 2021.

Nesse processo, como na vida, há vencedores e perdedores. Alice, de Carrol, gostaria que o ano permanecesse estático. Para a petroquímica, o dólar, que sobe em razão de incertezas, traz enormes ganhos para o setor, bem como para toda a indústria, protegida da concorrência internacional, especialmente dos chineses, cujas importações tendem a refrear pela elevada depreciação do real.

Restrições pontuais podem ocorrer, como o feriadão de São Paulo, que causaria uma queda de 1,6% na produção industrial do país, atesta relatório do Banco Itaú.
O ciclo de commodities vai facilitar mais ainda a geração de emprego no agronegócio, que hoje representa 27% do PIB ou o equivalente a R$ 2 trilhões.

Os indicadores do comércio exterior comprovam essa relevância. As exportações brasileiras podem ter uma expansão de 13%, alcançando os US$ 237 bilhões e as importações de 8%, o equivalente a US$ 173 bilhões (superávit comercial de US$ 64 bilhões). Apenas o complexo da soja, petróleo e minério de ferro respondem por 40% das vendas externas, impulsionadas pelo boom das commodities, que possivelmente não se repetirá em 2022.

Mesmo com o já previsto desaquecimento da economia no primeiro semestre, é certo que haverá uma recuperação a partir de julho, o que projetará uma expansão (estatística) de 3,6%. Nesta pandemia, em que o governo Bolsonaro agiu com ineficácia − para não usar um termo mais duro − na vacinação em massa, trata-se de um resultado alvissareiro. Ter um PIB, sem maquiagem ou milagres, zero é até um alento diante do cenário devastador no setor de serviços, que representa cerca de 70% do PIB, especialmente em segmentos como bares, restaurantes, turismo e toda a cadeia do entretenimento e cultura.

Terra arrasada na ausência de políticas públicas para dar apoio aos pequenos negócios, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos e na Europa. Milhões de empregos ceifados pela ausência de um Estado, diferentemente do que fez Joe Biden, que além de quase US$ 2 trilhões investidos no programa de combate à Covid-19, injetará US$ 3 trilhões em infraestrutura, o que dará um impulso avassalador à economia e multiplicará os negócios privados em toda a atividade econômica, nos próximos três anos. Biden quer entrar para a história como o democrata Franklin Delano Roosevelt, o FDR, o grande líder político depois da crise devastadora de 1929, que conduziu os Estados Unidos a uma grande potência, após a Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945.

Os fenômenos estatísticos não deixam de assombrar a economia brasileira, tal como Alice ficou espantada com o relógio que congelava o ano. Sim, 2021 parece ser uma ilusão causada pelo fenômeno estatístico, assim como pela elevação de preços. A inflação, medida pelo IPCA, pode atingir a incrível marca de 7,8% em meados junho, projetada no acumulado de doze meses. É o cálculo de Mario Mesquita, economista-chefe do Itaú.

Noves fora o impacto do câmbio − que sobe em boa parte pela incerteza causada pelo governo −, há também o fenômeno estatístico, pois, na comparação com o primeiro semestre de 2021, existe o efeito sazonal. Não custa lembrar que, na primeira metade de 2020, houve uma queda sem precedentes da variação dos preços. Tanto é assim que, descontado esse truque estatístico, a inflação terminará o ano, segundo os especialistas, pouco acima de 5%, o que obrigará o Banco Central a fixar a Selic, o juro básico da economia, em 5,5% com vistas a evitar um descontrole na elevação dos preços.

De todo modo, o índice alto de junho cria expectativas negativas na economia. E ninguém quer a volta desse fantasma ou de juros altos.

Essa era acabou e, certamente, não voltará para desespero de grandes rentistas. Os juros baixos, no mundo inteiro, vieram para ficar, o que vai exigir uma maior competição no sistema bancário e grande inovação dos gestores de recursos. Acabou a época da indolência.

Voltemos à Alice, de Carroll:

− Acho que vocês poderiam fazer alguma coisa melhor com o tempo do que gastá-lo com adivinhações que não têm resposta − disse Alice.
− Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu, falaria dele com mais respeito − afirma o Chapeleiro.
− Não sei o que quer dizer − disse Alice.
− Claro que não! Atrevo-me a dizer que você nunca chegou a falar com o Tempo – emendou o Chapeleiro.
− Talvez não, mas sei que tenho de bater o tempo quando estudo música − disse Alice.

O tempo de Alice, de suas aulas, e o do Chapeleiro, é o mesmo que aguarda o Brasil em sua realidade de espelhos convexos, capaz de produzir ilusões estatísticas em que pese os sinais de reconstrução do Estado com as reformas no porvir, que buscam cortar privilégios de setores que aparelharam o país por décadas. O Brasil não pode conviver com o baixo crescimento.

− Acorde, Alice querida! Mas que sono comprido você dormiu  − disse sua irmã.

Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME