As armadilhas dos indicadores e o alerta de Larry Summers
É preciso usar os números com inteligência e independência, diria o insuspeito Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz
Publicado em 15 de outubro de 2021 às, 18h35.
Por Coriolano Gatto
Não é apenas o câmbio que desmoraliza os economistas. Alguns indicadores sociais, que outrora foram de grande valia, começam a ser revistos para medir a popularidade de um político vis-à-vis o desempenho na economia. Um competente cientista político me pediu para fornecer o salário real médio dos últimos anos. Ao escarafunchar os números, cheguei a uma conclusão insólita: o indicador sobe, mesmo em épocas de recessão, e cai, dependendo do momento, com a expansão da economia.
A explicação: na recessão, os empregos precários são os primeiros a serem cortados, enquanto na retomada acontece o movimento inverso. Agora, por exemplo, com o aumento do emprego na área do comércio e de serviços, a taxa de desemprego vai cair, mas o salário real médio não subirá em razão desse fenômeno estatístico.
O desemprego pode ter terminar o ano abaixo de 13,5% com a imunização em massa. É uma sandice criticar o fato de os mais pobres conseguirem um emprego com carteira assinada apenas para politizar o dado da taxa de desemprego. O espirituoso Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano e acadêmico renomado, citou um dado da distorção em recente evento promovido pelo Banco BTG:
− Um restaurante que tinha cinco garçons e passará a ter três. O número de refeições permanece o mesmo. Esse aumento de produtividade não é bom. Eles terão uma jornada árdua e insustentável e pedirão a antecipação das férias. O PIB será menor.
A coluna mergulhou em um indicador que achava imbatível: o poder de compra do salário mínimo versus a cesta básica.
O gráfico (publicado abaixo) mostra que o último dado disponível está no patamar próximo ao do fim de FHC 2. Nos governos petistas, o número estava no pico máximo. Vamos aos problemas: ano passado, o governo federal e, mais recentemente, os governos estaduais despejaram centenas de bilhões de reais para os mais pobres.
É evidente que parte desse dinheiro − que na soma total pode ter alcançado R$ 500 bilhões − foi para comprar alimentos. É igualmente correto dizer que a alta das commodities, em todo o mundo, fez explodir todos os produtos relacionados à cadeia de proteína animal.
Voltemos à praticidade de Summers: uma lata de óleo de soja custa o mesmo preço de uma de azeite extravirgem em uma rede de supermercados na Zona Sul carioca. Para os economistas refinados, o mapa da fome e o grau de concentração de renda podem servir como indicadores de melhoria ou piora da economia, assim como o Índice Gini.
A ONU aponta, por exemplo, que 23,5% da população brasileira passou por insegurança alimentar moderada ou severa entre 2018 e 2020, um aumento de 5,2% em relação a 2014 e 2016. É um dado curioso, pois no biênio 2015-2016 a economia encolheu quase o dobro de 2020, quando o mundo desabou com a pandemia.
É preciso usar os números com inteligência e independência, diria o insuspeito Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz, famoso por representar a mediocridade dos políticos. É fato que o conflito distributivo, ensinava o velho mestre Paul Singer, é um nó górdio no desenvolvimento da economia. E há instrumentos poderosos para mitigá-los. David Card, um dos laureados com o Nobel de Economia neste ano, comprovou, ao lado de Alan Krueger, que não houve queda no emprego onde ocorreu aumento do salário mínimo, em duas cidades americanas.
É correto também afirmar que há números que escapam da obviedade. O economista Arthur Candal, um dos grandes pensadores da indústria petroquímica, ousou desafiar os deuses que achavam que o Brasil era um país sem futuro, uma completa anarquia política e econômica. Candal, em um memorável depoimento (“No Calor das Ideias”, Insight Comunicação, disponível gratuitamente na web), em 2004, dá uma aula de microeconomia, que merecia ser repetida para todas as gerações:
− Os dados e estatísticas revelam que, nos sete anos que correm entre 1989 e 1996, a altura média do brasileiro adulto aumentou três centímetros, o que se traduz em forte melhoria nutricional, dado o pequeno espaço de tempo decorrente. Ele aumentou de 1,69 m para 1,72 m. O brasileiro de hoje tem a altura de um soldado americano da Segunda Guerra Mundial. Esse indicador – que é um dado duro, ao contrário dos dados econômicos, que são dados moles – aponta que, mesmo num processo de estagnação, as condições sociais brasileiras melhoraram nos últimos 22 anos. Isso se deve fundamentalmente à evolução tecnológica, que se reflete na produção de alimentos.
A oferta de alimentos no Brasil nos últimos 20 anos cresceu muito acima do crescimento da população. O impacto da tecnologia se dá também na área médica e em proteção ambiental, além, é claro, do tratamento da água. Os resultados são o aumento da expectativa de vida, que passa de 56 anos, em 1960, para 68,5 anos, em 2000; e redução da mortalidade infantil, que cai de 116 mortes por 1.000, em 1960/70, para 34 mortes por 1.000, em 2000.
O dado bruto é alentador, mas, se compararmos com a expectativa de vida e o nível de mortalidade infantil do europeu, nossos índices são equivalentes aos deles na década de 50, no período pré-informática e microeletrônica. Como disse, com toda a propriedade, Robert William Fogel, Prêmio Nobel de Economia em 1993, quando os dados antropomórficos e de condições de vida da população contradizem os dados econômicos, estes últimos estarão sempre errados, não só por sua fragilidade intrínseca, como pelo uso ideológico a que eles se prestam.
Candal alerta para olhar os indicadores com frieza e espírito intelectual aberto. A coluna não vai repetir as conhecidas críticas justas e oportunas ao chefe de Estado. Mas não é correto anular os avanços obtidos com marcos regulatórios, que atrairão centenas de bilhões de reais nos próximos anos, como o da nova lei do gás, a moderna legislação de licitações e de falências, a da ferrovia e outros modais, a reforma da Previdência, o Banco Central independente, apenas para citar alguns. Nem vou mencionar o programa de concessões e a lei da liberdade econômica.
O executivo Lee Iacocca, que comandou a reestruturação em montadoras americanas, costumava dizer que, à época da depressão americana, a sua família votava em candidatos do Partido Democrata. Quando voltava a prosperidade, a opção era pelo Partido Republicano.
Com a antecipação da disputa eleitoral, o que se espera é que os brasileiros fiquem atentos a armadilhas de um lado e de outro − não preciso citar os nomes − e pensar naquilo que é o mais relevante, como dizia o icônico executivo americano, morto em 2019: “quem vai contribuir para construir uma sociedade capitalista moderna com vistas a aumentar o mercado consumidor e distribuir a renda para que todos ganhem o jogo?”.
O país não suporta mais o tal do Fla-Flu, até mesmo porque os grandes perdedores são os pequeninos, nas palavras singelas do santo Hélder Câmara, meu mentor desde a militância na juventude católica: “Eu apenas quero contribuir para melhorar a vida dos pobres”, me disse em uma celebração eucarística com as pernas cruzadas, em uma casa em Olinda, no longínquo ano de 1984.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME