A loucura, as baratas e as armadilhas em 2021
"Retorno das baratas acontece em um momento, em que pese o aumento da taxa de desemprego, a economia dá sinais de recuperação neste 2º semestre"
Publicado em 22 de setembro de 2020 às, 14h11.
Se um bom economista for provocado sobre a taxa de câmbio no início de 2021, responderá de forma clássica: só é possível prever a taxa de hoje, no máximo uma semana, dada a instabilidade da economia. Se a mesma interrogação estiver relacionada a juros ou à inflação, o mesmo profissional talentoso não titubeará em responder que as taxas de inflação e de juros serão previsíveis até meados de 2022, noves fora algumas oscilações. São níveis jamais registrados na história.
As piadas sobre economistas perdem apenas para o rol interminável das pilhérias acerca dos advogados. Herman Kahn (1922-1983) e Ravi Batra (1943 – ), dois campões de erros, entraram para o folclore. Certa vez, segundo Paul Krugman, um economista do governo explicou como encarava o seu cargo: “É simplesmente uma questão de se livrar das más ideias, jogando baratas no vaso sanitário e apertar a descarga – mais cedo ou mais tarde elas estão de volta”.
Ao ser pressionado a demitir o seu eficiente secretário de Fazenda, Waldery Rodrigues, o ministro Paulo Guedes está convencido de que as baratas voltarão e poderão ser maiores, dado o contato com a água da descarga e à própria natureza. E o retorno das baratas acontece em um momento, em que pese o aumento da taxa de desemprego, a economia dá sinais de recuperação neste segundo semestre, por meio de inúmeros indicadores microeconômicos – de materiais de construção à produção de resinas.
Ainda que muito ruim, o PIB – o conjunto de riquezas do país – poderá ter uma contração abaixo de 5%. Há quem fale de 4% ou um número próximo da grande recessão de 1983, com a diferença de que o equipamento do Estado àquela época era muito pior. É verdade que não havia tanta distorção na carreira do servidor público como nos dias de hoje.
Guedes enfrenta o seu momento de Gogol (1809-1852), o brilhante escritor russo, que produziu o magistral conto “O Diário de um Louco”. Peço paciência à cara leitora e ao caro leitor para descrever um trecho emblemático:
“Não vejo qualquer motivo para se trabalhar num ministério. Isso não leva a nada (relata Axenty Ivanovitch Propritchine, protagonista do conto). À regência da província, à câmara cível ou câmara de finanças, mas isso já é outra história: vemos aí quem se escamoteia pelos cantos a rabiscar. Usam paletós imundos, têm uma tal carranca que nos dá vontade de vomitar, mas é preciso ver as casas de campo nas quais eles moram! Nem pensar em lhes oferecer taças de porcelana como presente. Eles dirão: ‘Este é um presente para um doutor’, mas uma parelha de cavalos trotadores, um manto de castor de trezentos rublos, isso sim, pode ir fundo!”.
Há uma boa pitada de Gogol em Machado de Assis (1839-1908) e seu "O Alienista", ao contar como Simão Bacamarte consegue soerguer a sua Casa Verde (nome do manicômio fictício e onde são depositados os internos). Gogol influenciou gerações brilhantes de escritores russos.
De fato, existe muita dose de loucura em Gogol e em Machado da mesma forma que falta racionalidade em parte do governo para encarar os riscos – ainda que administrados – de uma insolvência fiscal. Os recentes indicadores de juros futuros apontam para um preço mais elevado que o mercado financeiro quer pagar pelos títulos do Tesouro.
A vizinha Argentina, que se viu diante de um enfrentamento com o mercado, suspendendo o pagamento da dívida externa, está à beira de uma crise cambial. O Brasil conhece bem o resultado desde os anos 1970: redução de emprego, de renda e risco de colapso político, abrindo caminho para soluções populistas – como a famosa moratória da dívida externa em fevereiro de 1987 –, que apenas agravaram a situação dos mais pobres. Os ricos, como sempre, ficaram protegidos por taxas estratosféricas do Banco Central e de mecanismos de evasão de recursos para o exterior.
É evidente que há riscos na área fiscal. Ignorar essas enormes dificuldades é como viver na loucura do conto de Gogol ou acreditar na chegada antecipada de Papai Noel, como diria um bem-humorado ex-ministro da Fazenda.
Os economistas são campeões em errar previsões, como atestaram Kahn e Batra, mas acreditam que talvez haja método na loucura do governo. É possível prever por um longo período alguns preços importantes na economia, como juros a 2% e inflação a 3% em 2021, como disse em uma live recente o competente Nilson Teixeira. A previsibilidade é um passaporte para a segurança dos chamados agentes econômicos.
Para isso, o lado racional do governo espera que os programas de estímulo às pequenas empresas sejam cada vez mais robustos em contrapartida ao auxílio emergencial, que cumpriu um papel fundamental na pandemia ao despejar R$ 240 bilhões para os mais pobres e paupérrimos, como diz o presidente. Todos já sabem de antemão do déficit primário elevado e dos seus riscos. Não custa lembrar que uma Selic a 4% trouxe uma economia de R$ 100 bilhões por ano ou três programas Bolsa Família.
Agora, é a hora de mostrar que os personagens de Gogol e de Machado de Assis estão na ficção. Sem isso, com as reformas estruturantes, a criação do imposto sobre transações digitais, vis-à-vis a desoneração da folha de pagamentos e revisão de benefícios a funcionários públicos, o Brasil voltará a uma longa pandemia, com a força de destruir milhões de empregos: os fatídicos anos 1980. No fundo, tudo é uma questão de escolha, como dirá o insignificante Axenty, personagem de Gogol, que representa as deformações e caricaturas da chamada literatura de acusação.
O Brasil, que a duras penas criou inovações entre as empresas, com a criação de milhares de startups e abrindo espaços para negros e para a comunidade LGBTQIA+, não pode ficar atrás. Como ensina o rabino Nilton Bonder, transgressão, continuidade e mutação, assim como religião e biologia, não estão em campos opostos. Certamente Milton Friedman, da Universidade de Chicago e ganhador do Nobel de Economia em 1976, como um verdadeiro liberal, asseveraria tal tese.
*Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME.