A crise bate às portas. Há como escapar do Katrina financeiro?
Os juros altos, que corroem a economia, serão ainda os vizinhos indesejáveis
Da Redação
Publicado em 12 de março de 2023 às 10h51.
Última atualização em 12 de março de 2023 às 16h08.
Crises bancárias e de liquidez são tão imprevisíveis quanto uma gravidez indesejada. Causam pânico e levam o ser humano a um estresse descontrolado. A teoria econômica comportamental explica o que empurra um cidadão comum a cometer o suicídio ou a agir de forma irracional no processo de um divórcio oneroso. Há inúmeros estudos sobre o tema, e o mais famoso, pelo pioneirismo e por ter conquistado o Nobel de Economia, é o de Robert Lucas, laureado em 1995. Há uma tempestade à vista causada pela quebra de dois bancos americanos. O ponto de atenção se concentra no Silicon Valley Bank, o banco das startups.
O Katrina financeiro começa a se alastrar, como o famoso furacão em 2005, que submergiu boa parte de Nova Orleans. “Haverá consequências graves para o Vale do Silício”, alertou o ex-secretário do Tesouro americano Larry Summers, em entrevista à TV Bloomberg, neste fim de semana. B Summers é um especialista em crises bancárias de grande magnitude.
O SVB começou a operar no Reino Unido, tendo filiais na China, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Canadá, Índia e Israel. Na China, as startups tentavam, na sexta-feira, acalmar os investidores, alegando que suas operações têm independência do banco americano.
Os analistas e os órgãos reguladores têm o comportamento de uma manada de elefantes: nada vai acontecer e todos caminharão de forma organizada pela savana africana. E pregam algo na linha: continuem apostando em suas aplicações − renda fixa, variável ou derivativos − porque as autoridades corrigirão o rumo, seus idiotas. Os bancos centrais têm o poder para debelar qualquer início de uma crise sistêmica, insistem.
“Há dezenas, se não centenas, de startups que planejavam usar esse dinheiro para pagar a folha de pagamento nesta semana”, alertou Summers, professor da Universidade de Harvard. Ele eliminou a hipótese de um efeito dominó no sistema financeiro. Dentro da idiotia que tomou conta do Brasil varonil, outros minimizam o efeito do furacão e vão além: o sistema bancário é sólido e, portanto, estamos intactos a qualquer crise. A poupança está garantida − o FGC, Fundo Garantidor de Créditos, assegura até R$ 250 mil para uma eventual liquidação de um banco. Nem é preciso falar da crise de crédito desencadeada pelo efeito da Americanas. Para ser honesto, havia uma crise de confiança em empresas novatas na bolsa e na expansão ilógica de algumas companhias do varejo. Nenhum empresário bem-intencionado suporta o custo do dinheiro tão elevado, como no Brasil.
Era necessário apenas o estopim, que ocorreu no início de janeiro. Sergio Rial, CEO que descobriu a inconsistência contábil na Americanas em alguns dias e acumulava o cargo de chairman do Santander, um dos grandes credores da varejista, conhece de perto a crise de confiança a partir da sua postura como executivo, o mais bem pago do ano de 2021. Daqui a pouco, Rial será mais um candidato a “coach”. E o mesmo pode acontecer com Jean-Charles Naouri, sócio majoritário e CEO da rede francesa Casino, investigada por uma suposta manipulação no preço de suas ações, no exterior.
O problema das previsões e dos analistas de plantão é o de que, no fundo, eles vendem algo que não pode ser entregue por razões que desafiam qualquer teoria do risco: o erro e o imprevisto. Oito meses antes da crise financeira global, em setembro de 2008, um conhecido gestor de recursos, cujo fundo coleciona muitos prêmios, disse, na então residência de Jorge Paulo Lemann, nos Jardins, em São Paulo, que a derrocada do Bear Stearns, vendido para o JPMorgan Chase por US$ 236 milhões, não era relevante, dada a solidez do sistema financeiro americano. A tão propalada crise das hipotecas não passaria de US$ 400 bilhões, o que seria uma pechincha pelas medidas inéditas e surpreendentes do Fed (banco central americano), comandado por Alan Greenspan, que fez algo inacreditável para um monetarista: desregulamentou os mercados, baixou as taxas de juros e, como se não bastasse isso, estimulou as aplicações em grandes volumes em títulos de elevado risco, além do incentivo às hipotecas. Era um dinheiro falso que produzia montanhas e montanhas de dólares sem lastro real na economia. Era uma festa. Enquanto o mundo rodava a mil por hora, deu tudo certo. Greenspan, que se considerava um gênio das finanças, queria, no fundo, consertar a bolha da internet, que estourou em 2000, e derrubou os mercados. Deu no que deu, diria o filósofo do botequim da esquina da Mooca, um dos mais tradicionais bairros de São Paulo.
O premiado gestor na residência de Lemann cometeu o mesmo erro de Greenspan: acreditar que os mercados corrigiriam os seus erros e a economia global seguiria o seu rumo. Ao estourar a crise, o governo americano, com muita propriedade, estatizou, temporariamente, o sistema financeiro, ao injetar algo como US$ 2 trilhões de dólares (o atual PIB do Brasil) para evitar um colapso pior do que o ocorrido em 1929, quando não havia regulamentação nos mercados, nem mesmo a SEC (Securities and Exchange Commission, equivalente à nossa CVM). É aquela máxima: o faroeste antecede o xerife, que sempre chega atrasado montado em um pangaré com pulgas.
A quebra dos bancos americanos indica que há uma enorme poça de liquidez no mercado, causada, em parte, pelos pacotes trilionários do presidente Joe Biden, que injeta moeda na economia sem a contrapartida de uma poupança de empresas e das famílias. Emissão de moeda na veia, o que vai obrigar o Fed a ser mais conservador. E põe conservador nisso.
Os analistas minimizam qualquer crise de liquidez, como o grande gestor na residência de Lemann. O fato é que coube a Ben Bernanke, Nobel da Economia em 2022, consertar a bagunça deixada pelo outrora respeitado e festejado na grande mídia Alan Greenspan, que conseguiu cometer todos os erros de um banqueiro central, menos o de palestrar para pequenos grupos, como costuma fazer Roberto Campos Neto.
Em momentos de crise − e ela caminha com velocidade − nunca é demais pensar no aconselhamento de velhos mestres: não acredite em vestais. Pense sempre no seu bolso. Ou lembre-se do receituário de um ex-ministro da Itália, após a Segunda Guerra Mundial: o poupador tem memória de elefante, pernas de lebre e coração de carneiro. Não à toa os investidores correm para o Tesouro Direto e outras aplicações financeiras conservadoras. Sabem que os juros altos, os vizinhos indesejáveis, a despeito dos justos arroubos do governo e de analistas, vieram para ficar diante da tempestade que vem da América. Com ela, o Brasil caminha para uma recessão técnica (dois trimestres de queda do PIB) e uma inflação ainda resiliente. Nem mesmo a âncora fiscal dos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Simone Tebet, do Planejamento, será capaz de mudar o clima de pessimismo dos mercados diante dos recentes acontecimentos na economia americana. E por onde anda Alan Greenspan, hoje, aos 97 anos?
Observação: para quem quer entender o passado, são recomendáveis os filmes “A Grande Aposta” e “Grande Demais para Quebrar”. O documentário “Inside Job” mostra como os investidores comuns foram manipulados pelas instituições americanas.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME
Crises bancárias e de liquidez são tão imprevisíveis quanto uma gravidez indesejada. Causam pânico e levam o ser humano a um estresse descontrolado. A teoria econômica comportamental explica o que empurra um cidadão comum a cometer o suicídio ou a agir de forma irracional no processo de um divórcio oneroso. Há inúmeros estudos sobre o tema, e o mais famoso, pelo pioneirismo e por ter conquistado o Nobel de Economia, é o de Robert Lucas, laureado em 1995. Há uma tempestade à vista causada pela quebra de dois bancos americanos. O ponto de atenção se concentra no Silicon Valley Bank, o banco das startups.
O Katrina financeiro começa a se alastrar, como o famoso furacão em 2005, que submergiu boa parte de Nova Orleans. “Haverá consequências graves para o Vale do Silício”, alertou o ex-secretário do Tesouro americano Larry Summers, em entrevista à TV Bloomberg, neste fim de semana. B Summers é um especialista em crises bancárias de grande magnitude.
O SVB começou a operar no Reino Unido, tendo filiais na China, Alemanha, Dinamarca, Suécia, Canadá, Índia e Israel. Na China, as startups tentavam, na sexta-feira, acalmar os investidores, alegando que suas operações têm independência do banco americano.
Os analistas e os órgãos reguladores têm o comportamento de uma manada de elefantes: nada vai acontecer e todos caminharão de forma organizada pela savana africana. E pregam algo na linha: continuem apostando em suas aplicações − renda fixa, variável ou derivativos − porque as autoridades corrigirão o rumo, seus idiotas. Os bancos centrais têm o poder para debelar qualquer início de uma crise sistêmica, insistem.
“Há dezenas, se não centenas, de startups que planejavam usar esse dinheiro para pagar a folha de pagamento nesta semana”, alertou Summers, professor da Universidade de Harvard. Ele eliminou a hipótese de um efeito dominó no sistema financeiro. Dentro da idiotia que tomou conta do Brasil varonil, outros minimizam o efeito do furacão e vão além: o sistema bancário é sólido e, portanto, estamos intactos a qualquer crise. A poupança está garantida − o FGC, Fundo Garantidor de Créditos, assegura até R$ 250 mil para uma eventual liquidação de um banco. Nem é preciso falar da crise de crédito desencadeada pelo efeito da Americanas. Para ser honesto, havia uma crise de confiança em empresas novatas na bolsa e na expansão ilógica de algumas companhias do varejo. Nenhum empresário bem-intencionado suporta o custo do dinheiro tão elevado, como no Brasil.
Era necessário apenas o estopim, que ocorreu no início de janeiro. Sergio Rial, CEO que descobriu a inconsistência contábil na Americanas em alguns dias e acumulava o cargo de chairman do Santander, um dos grandes credores da varejista, conhece de perto a crise de confiança a partir da sua postura como executivo, o mais bem pago do ano de 2021. Daqui a pouco, Rial será mais um candidato a “coach”. E o mesmo pode acontecer com Jean-Charles Naouri, sócio majoritário e CEO da rede francesa Casino, investigada por uma suposta manipulação no preço de suas ações, no exterior.
O problema das previsões e dos analistas de plantão é o de que, no fundo, eles vendem algo que não pode ser entregue por razões que desafiam qualquer teoria do risco: o erro e o imprevisto. Oito meses antes da crise financeira global, em setembro de 2008, um conhecido gestor de recursos, cujo fundo coleciona muitos prêmios, disse, na então residência de Jorge Paulo Lemann, nos Jardins, em São Paulo, que a derrocada do Bear Stearns, vendido para o JPMorgan Chase por US$ 236 milhões, não era relevante, dada a solidez do sistema financeiro americano. A tão propalada crise das hipotecas não passaria de US$ 400 bilhões, o que seria uma pechincha pelas medidas inéditas e surpreendentes do Fed (banco central americano), comandado por Alan Greenspan, que fez algo inacreditável para um monetarista: desregulamentou os mercados, baixou as taxas de juros e, como se não bastasse isso, estimulou as aplicações em grandes volumes em títulos de elevado risco, além do incentivo às hipotecas. Era um dinheiro falso que produzia montanhas e montanhas de dólares sem lastro real na economia. Era uma festa. Enquanto o mundo rodava a mil por hora, deu tudo certo. Greenspan, que se considerava um gênio das finanças, queria, no fundo, consertar a bolha da internet, que estourou em 2000, e derrubou os mercados. Deu no que deu, diria o filósofo do botequim da esquina da Mooca, um dos mais tradicionais bairros de São Paulo.
O premiado gestor na residência de Lemann cometeu o mesmo erro de Greenspan: acreditar que os mercados corrigiriam os seus erros e a economia global seguiria o seu rumo. Ao estourar a crise, o governo americano, com muita propriedade, estatizou, temporariamente, o sistema financeiro, ao injetar algo como US$ 2 trilhões de dólares (o atual PIB do Brasil) para evitar um colapso pior do que o ocorrido em 1929, quando não havia regulamentação nos mercados, nem mesmo a SEC (Securities and Exchange Commission, equivalente à nossa CVM). É aquela máxima: o faroeste antecede o xerife, que sempre chega atrasado montado em um pangaré com pulgas.
A quebra dos bancos americanos indica que há uma enorme poça de liquidez no mercado, causada, em parte, pelos pacotes trilionários do presidente Joe Biden, que injeta moeda na economia sem a contrapartida de uma poupança de empresas e das famílias. Emissão de moeda na veia, o que vai obrigar o Fed a ser mais conservador. E põe conservador nisso.
Os analistas minimizam qualquer crise de liquidez, como o grande gestor na residência de Lemann. O fato é que coube a Ben Bernanke, Nobel da Economia em 2022, consertar a bagunça deixada pelo outrora respeitado e festejado na grande mídia Alan Greenspan, que conseguiu cometer todos os erros de um banqueiro central, menos o de palestrar para pequenos grupos, como costuma fazer Roberto Campos Neto.
Em momentos de crise − e ela caminha com velocidade − nunca é demais pensar no aconselhamento de velhos mestres: não acredite em vestais. Pense sempre no seu bolso. Ou lembre-se do receituário de um ex-ministro da Itália, após a Segunda Guerra Mundial: o poupador tem memória de elefante, pernas de lebre e coração de carneiro. Não à toa os investidores correm para o Tesouro Direto e outras aplicações financeiras conservadoras. Sabem que os juros altos, os vizinhos indesejáveis, a despeito dos justos arroubos do governo e de analistas, vieram para ficar diante da tempestade que vem da América. Com ela, o Brasil caminha para uma recessão técnica (dois trimestres de queda do PIB) e uma inflação ainda resiliente. Nem mesmo a âncora fiscal dos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Simone Tebet, do Planejamento, será capaz de mudar o clima de pessimismo dos mercados diante dos recentes acontecimentos na economia americana. E por onde anda Alan Greenspan, hoje, aos 97 anos?
Observação: para quem quer entender o passado, são recomendáveis os filmes “A Grande Aposta” e “Grande Demais para Quebrar”. O documentário “Inside Job” mostra como os investidores comuns foram manipulados pelas instituições americanas.
Coriolano Gatto é jornalista e colunista da EXAME