Exame.com
Continua após a publicidade

A âncora fiscal de Haddad e o mar sem bússola de Leon Tolstói

Ministro da Fazenda mais se assemelha a um assessor especial de Lula

Lula e Haddad em 2018: nem os maiores especialistas conseguiram decifrar como o ministro aumentará as receitas de forma pragmática (Ricardo Stuckert/Divulgação)
Lula e Haddad em 2018: nem os maiores especialistas conseguiram decifrar como o ministro aumentará as receitas de forma pragmática (Ricardo Stuckert/Divulgação)
C
Coriolano Gatto

Publicado em 1 de fevereiro de 2023 às, 10h46.

Há algo intransponível no novo governo que pode levar a conclusões apressadas por parte da oposição ou a falsas ilações das chamadas forças vivas da sociedade, que, por definição, ultrapassam ideologias e preferem fincar o pé na realidade.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que no passado prestou bons serviços à pasta da Educação na era petista, parece navegar em um mar sem instrumentos, apesar de todos os esforços de manter uma coerência em seu discurso de policy maker. Haddad lembra uma passagem do fabuloso escritor russo Leon Tolstói.

É como um navegador dizer a si mesmo que não consegue seguir a linha indicada pela bússola nem parar de olhar para ela. Com isso, a trajetória da embarcação, na visão do escritor, segue um rumo temerário, ou seja, “rebaixar o ideal à sua fraqueza”.

Até agora, nem os maiores especialistas conseguiram decifrar como o ministro aumentará as receitas de forma pragmática e cortará despesas para alcançar o número mágico de R$ 242,7 bilhões, que projetaria um superávit de R$ 11,3 bilhões em vez de um provável déficit nas contas públicas neste ano. Nada como um sonho de verão seguido pelas brumas do nascente.

As previsões podem vir a ter a mesma credibilidade dos cenários de um notório economista do BNDES, no governo Sarney (1985-1990), que traçava um horizonte otimista para o país sem bases sustentáveis, o que foi descoberto, em abril de 1990, a partir de uma simples evidência: os modelos preditivos eram tão sólidos quanto o título do livro do consagrado escritor Milan Kundera, A Insustentável Leveza do Ser.

Haddad é um experiente servidor público em uma máquina cujo chefe ataca instituições, como o Banco Central, e trata o mercado financeiro — aquele que compra os títulos públicos federais — como uma marmota, roedor que vive na América do Norte, Europa e Ásia, conhecido por sua lassidão.

O presidente Lula, nos seus arroubos contra a lógica de um BC, que é obrigado, por meio da taxa de juro, a sancionar a política fiscal e ter responsabilidade para buscar o equilíbrio necessário diante da alta da inflação, esqueceu de seus velhos tempos de sindicalista combativo e opositor ao regime militar. Nesse período, no início dos anos 1980, quando a indústria começa a ser atingida por um rolo compressor e a inflação chega a níveis alarmantes, Lula vai para o bom combate.

Por definição, a inflação é o mais perverso imposto para os pobres. No regime democrático, já no fim do governo Sarney e em meio a um processo de deterioração das contas públicas e queda da taxa de investimento, a economia cai no desfiladeiro. A tão esperada quebra de contratos ocorreria no governo Collor de Mello, em 1990, com o confisco da poupança diante de uma herança maldita — e põe maligna nisso — de uma inflação projetada de 80% em março, o equivalente a mais de 100.000% em 12 meses.

Essa espiral inflacionária na era Sarney concentrou a renda, aumentou a pobreza e inibiu investimentos nacionais e estrangeiros. O Brasil era um país de altíssimo risco para o capital, que buscava oportunidades para a remuneração em um porto seguro. Não estamos falando aqui de brasileiros que têm recursos em paraísos tributários e buscam otimizar ganhos na arbitragem da taxa de juro. A referência é o capital produtivo em serviços, no comércio, na indústria de transformação e na agricultura.

A percepção é a de que Haddad, com toda a sua habilidade política e fluência no discurso, é um refém de um ideário ultrapassado do presidente Lula, que maltrata até mesmo as forças produtivas que o apoiaram contra a insensatez do governo anterior, refém de pautas que se chocam ao cosmopolitismo, à modernidade intrínseca de uma sociedade democrática.

Enquanto Haddad prepara a tão prometida âncora fiscal, o seu chefe insiste em medidas rasas diante da complexa situação fiscal e a um baixo crescimento para 2023, a ponto de irritar até o progressista economista Paul Krugman, que qualificou como uma “ideia terrível” a proposta de criar uma moeda — ainda que virtual — entre o Brasil e a Argentina, no momento em que os “hermanos” caminham com celeridade para uma inflação de 100% ao ano em uma economia que não tem mecanismos de indexação, como havia no Brasil, quando se retroalimentou a alta dos preços, mas foi mantido o funcionamento da engrenagem até a chegada do Plano Real, que completará 30 anos em 2024.

Como em um passe de mágica, o presidente anuncia que resolverá todos os dilemas e gravíssimos problemas do chamado conflito distributivo no seu mandato e, não satisfeito com isso, é o candidato a ser o timoneiro da América Latina; quiçá do mundo, para trazer a paz e a prosperidade. É de tamanha parvalhice, que mais se assemelha ao Teatro do Absurdo de Eugène Ionesco (1909-1994).

Lula, um político habilidoso e calejado, busca alianças a qualquer custo, o que pode comprometer a agenda econômica, por melhor e mais competente que seja a benvinda reforma tributária, e fazer um governo que será um misto de Sarney com Dilma 2, com juros altos e inflação de dois dígitos. E assim o Brasil voltará a ser o paraíso dos rentistas. Nem o melhor programa social será capaz de reduzir o trágico mapa da fome. Haddad precisa agir com a firmeza necessária, à altura do cargo que ocupa, e buscar de forma permanente o caminho do desenvolvimento sustentável, que exige contrariar interesses políticos e os eternos lobbies do setor privado. Ainda há tempo para corrigir a rota.