Uma proposta de Refis que interessa à sociedade
Os sucessivos perdões de dívidas tributárias em condições extremamente generosas, os Refis, reproduzem o enredo do alcoólatra que jura que tomou o último copo de pinga. O governo está novamente negociando com o Congresso um programa para perdoar 99% dos juros e das multas de dívidas pendentes de contribuintes. A cereja do bolo fica por […]
Publicado em 28 de agosto de 2017 às, 19h05.
Os sucessivos perdões de dívidas tributárias em condições extremamente generosas, os Refis, reproduzem o enredo do alcoólatra que jura que tomou o último copo de pinga. O governo está novamente negociando com o Congresso um programa para perdoar 99% dos juros e das multas de dívidas pendentes de contribuintes. A cereja do bolo fica por conta do caráter brincalhão do Congresso: o relator deve 51 milhões de reais ao fisco – muito mais do que uma boa ideia (para ele).
Há algumas semanas, uma medida provisória foi editada para presentear contribuintes do setor rural, parcelando dívidas por 15 anos, com descontos de 100% nos juros e de 25% nas multas – forcinha de 5,4 bilhões de reais até 2020. Nesse caso, é preciso dizer que a dívida surgiu de uma decisão do STF, mas, de qualquer forma, chama atenção a facilidade com que acordos açucarados como esse são firmados em uma época em que o governo espreme os demais contribuintes. Adivinha de que bolsos sairão os recursos para compensar esses bilhões?
A concessão de anistias fiscais é comum no mundo. Países emergentes como Colômbia, Índia e Turquia e nações avançadas como Itália, Irlanda e Espanha recorreram ao expediente no passado recente. Além do evidente benefício de elevar a receita tributária, os perdões têm algumas motivações econômicas. Uma delas é inspirada no ensinamento de Confúcio segundo o qual é importante não ter vergonha dos erros para eles não se transformarem em crimes.
Contribuintes que não cumpriram obrigações por qualquer motivo (legislação pouco clara, instabilidade econômica, governo rapace, etc.) podem querer regularizar a situação. Anistias abrem um caminho ao relaxar punições que são tipicamente pesadas para evasão de tributos. Outra motivação econômica para os perdões é sinalizar a pretensão de “jogar pesado” no futuro, como no caso recente da repatriação de recursos mantidos irregularmente no exterior.
No entanto, o incentivo ao cumprimento da lei diminui sempre que aumenta a probabilidade de uma anistia no futuro, deteriorando-se inclusive o comportamento dos contribuintes normalmente honestos. Sendo assim, a arte é encontrar um equilíbrio entre os ganhos auferidos pela anistia e a possibilidade de perder receitas no longo prazo pela desmoralização do sistema.
Para tanto, o governo precisa fazer uma promessa crível de que perdoará deslizes agora, mas não no futuro. É possível fazer essa promessa? Infelizmente, não. Políticas públicas discricionárias que fazem sentido em um dado momento não necessariamente param de pé quando analisadas dinamicamente – na literatura, diz-se que elas são “inconsistentes temporalmente”.
Por exemplo, aplicar um calote na dívida pública pode parecer um excelente negócio no curto prazo, tão bom a ponto de ser uma proposta frequentemente defendida por nossa intelligentsia. O problema é que o agente que renega uma dívida perde acesso ao crédito por muito tempo porque vítimas de calotes costumam esperar novas surpresas desagradáveis no futuro. O brasileiro aprendeu que o esforço de reconstruir a reputação depois de uma derrapada sai bem mais caro que os benefícios momentâneos – deveria ter aprendido pelo menos.
A experiência internacional mostra que os aspectos relativos ao timing são, de fato, cruciais na determinação do desempenho das anistias tributárias. Os resultados dos programas são claramente afetados pela duração, pela possibilidade ou não de extensão e, principalmente, pela frequência com que são oferecidos.
No Brasil, houve nada menos do que trinta perdões entre 2000 e 2016. A banalização propriamente dita se deu após 2008, com o lançamento do chamado “Refis da Crise”. O programa envolveu renúncias de 60% a 100% para multas e de 25% a 45% para os juros, com a possibilidade de uso de prejuízos para pagamentos, critérios frouxos para enquadramento e nenhuma exigência de garantias. A partir de 2013, houve quatro reaberturas do programa, sem falar de presentões para instituições financeiras, instituições de ensino superior e, naturalmente, clubes de futebol.
Apesar dos benefícios generosos, muitos optam por não cumprir os termos acordados, contando com a existência de novos Refis. Mais de 20% dos contribuintes grandes – que faturam mais de 150 milhões de reais e que, no final de 2016, deviam mais de 100 bilhões de reais aos cofres públicos – participaram de pelo menos três parcelamentos. Parece mentira, mas não é. Estudo divulgado pela Receita Federal sugere que o governo deixou de arrecadar 18,6 bilhões de reais por ano em decorrência dos programas. Isso não é surpreendente. A teoria econômica explica porque o governo insiste em abrir novos Refis e porque a turma continua dando o beiço.
Há apenas uma forma de encerrar definitivamente esse festival injusto e ineficiente. A mágica foi proposta pelo economista Robert Barro em um artigo publicado no Wall Street Journal de 1986 e republicada na coletânea imperdível Getting it Right. Barro ficou famoso estudando o problema da inconsistência temporal de políticas feitas com as melhores intenções. Um artigo seu com o economista Robert Gordon aplica o conceito no contexto da política monetária e é pré-requisito para compreender o vício inflacionário brasileiro.
O “Refis de Barro” começa com o anúncio de uma anistia ampla e generosa. Após o término do período de adesão, o governo revela que tudo não passou de brincadeira e que os inscritos serão punidos rigorosamente, especialmente os devedores recorrentes. Simples assim, o plano faz o milagre de acabar de vez com as anistias. Para o governo, o Refis acompanhado de calote é mais lucrativo que o Refis usual.
Sendo assim, uma vez aplicado, ninguém acreditará que será diferente quando o governo tentar repetir a dose. Portanto, não haverá adesões aos futuros Refis e, para a felicidade geral, não haverá mais Refis. Apesar de heterodoxo, este é o plano que produz o resultado mais justo do ponto de vista social: pune, para variar, os picaretas e cria um incentivo ao pagamento de impostos. Pena que ele nunca será efetivado.
A ideia pode soar absurda, mas a alternativa é observar a continuidade dessa orgia que está para fazer o vigésimo aniversário – tão ou mais absurda. Sem uma medida radical para amarrar as mãos do governo, os políticos continuarão imaginando anistias de tempos em tempos e a opção racional dos sonegadores será continuar descumprindo a lei, obtendo vantagens competitivas sobre os contribuintes honestos.
O ministro Meirelles reforçou recentemente que as empresas precisam entender que “não é um bom negócio deixar de pagar imposto e esperar um possível próximo Refis”. Que bom que ele avisou, mas o recado obviamente encontrará ouvidos moucos. Não tem como ser diferente. Se houvesse ingênuos no Brasil não estaríamos tão mal, conforme demonstração na coluna que trata das Leis Fundamentais da Estupidez.
O tamanho do Estado passou muito do ponto e o país não deixará de ser medíocre sem fazer um ajuste que abra espaço para reformar o sistema tributário, tornando-o mais simples, eficiente e justo. É fácil entender a angústia da equipe econômica no esforço de controlar o déficit em meio a uma das recessões mais severas da história – que, diga-se, foi criada pela irresponsabilidade fiscal do governo anterior, inclusive pelas desonerações. Isso não deveria ser razão para mimosear regiamente infratores em detrimento dos que cumprem a lei.