Um guia de uso para as previsões econômicas
As previsões para o comportamento da economia são especialmente difíceis porque o sistema não é imune às próprias previsões
Da Redação
Publicado em 21 de dezembro de 2018 às 12h39.
Ninguém gosta de correr riscos e, na natureza, os exemplos abundam. Os antílopes evitam locais em que a chance de morte é elevada. Ao forragear, partem para o tudo ou nada apenas quando a oferta de alimentos torna-se muito escassa. O esperto camarão branchinecta sandiegonensis, por sua vez, leva em conta a influência das intempéries e não coloca “todos os ovos na mesma cesta” – como se tivesse cursado um bom MBA em finanças.
Quando nossos ancestrais ainda fritavam sob o sol da savana, o acaso premiou indivíduos particularmente sensíveis às incertezas. Emulando as zebras e as girafas, o homem-macaco esquivava-se de perigos desnecessários, mas, curiosamente, também titubeava diante de apostas que na média davam prêmios iguais aos das escolhas seguras. O homo sapiens prefere R$ 1 milhão no bolso a jogar uma moeda e morder R$ 2 milhões se der cara ou nada se der coroa.
É mais difícil explicar esse nível de prudência do ponto de vista evolutivo. Especula-se que ele tenha surgido do fato de que vivíamos em grupos pequenos e nessa situação decisões arriscadas poderiam ter consequências desastrosas.
Seja lá por qual motivo, externamos nossa aguçada aversão ao risco de diversas formas. Sentimos mais dor ao perder do que prazer ao ganhar. É comum superestimarmos as chances de ameaças bastante improváveis. Queremos quantidades maiores daquilo que gostamos, mas sabemos que o prazer aumenta cada vez menos e, por isso, valorizamos o passarinho que está na mão.
Desse repúdio atávico às apostas nasceu o desejo de prever o futuro. Poucos conseguem resistir à tentação de dar ouvidos, ainda que brevemente, a quem declara saber de antemão o porvir, seja para nos dizer o exército que vencerá a batalha, o valor das ações, o local do próximo desastre e até mesmo o nome do próximo amor.
No âmbito desses anseios surgiram os babalorixás, astrólogos, consultores e demais espécies do amplo gênero de indivíduos que pretendem ter a bola de cristal.
E, vejam vocês, estamos em dezembro, mês oficial das adivinhações.
O futuro é previsível?
Claro que não. Mesmo que fosse predeterminado seria uma tarefa hercúlea destrinchar o quebra-cabeça, pois o mundo é demasiadamente complexo. Considere um jogo de xadrez. Trata-se de um sistema simples em que apenas 32 peças se movimentam de acordo com seis padrões distintos em um tabuleiro com 64 lugares.
O matemático americano Claude Shannon, precursor da Teoria da Informação, calculou de forma conservadora que o número de jogos possíveis supera o que entendemos ser a quantidade de átomos existente em todo o universo. Ou seja, a complexidade de um jogo de tabuleiro desbanca com facilidade a capacidade computacional à nossa disposição.
Mesmo se tivessem tempo de sobra, os enxadristas não teriam como mapear de antemão a árvore de possibilidades antes de mover, digamos, um cavalo. Antecipam um punhado de lances, mas rapidamente o horizonte fica embaçado e eles são forçados a fazer escolhas com incerteza.
Na verdade, as previsões para o comportamento da economia são ainda mais difíceis porque o sistema não é imune às próprias previsões. Quando o meteorologista nos alerta para a onda de frio que virá amanhã, nada muda quando as pessoas reagem saindo de casa agasalhados. No dia seguinte é possível saber se homem do tempo acertou ou errou.
No entanto, quando se projeta que a inflação mudará de 2% para 4%, a resposta dos agentes econômicos muda as condições do prognóstico original. Os trabalhadores podem pedir aumentos de salários maiores do que os que tinham em mente. As empresas podem postergar investimentos temendo uma reação do Banco Central e assim por diante.
Não surpreende, portanto, o sucesso duvidoso das projeções econômicas. Segundo um estudo do FMI publicado em março passado, por exemplo, o consenso falhou na antecipação de 148 das 153 recessões registradas de 1992 a 2014 em 63 países com antecedência um pouco inferior a dois anos. Os analistas erraram 35 vezes mesmo faltando poucos meses para o desfecho.
Se elas são tão ruins por que usamos projeções?
As decisões precisam ser tomadas. Para tanto é necessário estabelecer hipóteses sobre o futuro, atribuir probabilidades aos cenários e definir os respectivos planos de contingência. A tarefa é inglória e fadada ao fracasso, mas as escolhas têm que ser feitas de qualquer forma.
Além disso, a incerteza é um dado para todos os participantes do jogo. Não é preciso correr mais do que o leão para vencer. Basta superar o cidadão ao lado, tarefa que também é difícil, mas não impossível. O prêmio para quem consegue pequenas vantagens é elevado diante do custo de tentar antecipar o que virá.
É verdade também que às vezes as pessoas consomem previsões porque acreditam ingenuamente na previsibilidade do futuro. Tome-se, por exemplo, a afirmação: “poucos investidores, se tanto, são capazes de fazer previsões consistentemente acuradas sobre os movimentos diários do preço de uma ação”. Você concorda ou discorda?
Uma pesquisa publicada em 2013 na American Economic Review fez esta e outras assertivas para comparar as visões do grande público com as de economistas das melhores universidades americanas. Os resultados revelaram a existência de um fosso separando os dois grupos.
Por exemplo, o enunciado acima foi chancelado por 100% dos economistas enquanto a concordância entre o grande público foi de apenas 55%. Ou seja, muita gente acredita ser possível prever com precisão movimentos aleatórios. O curioso é que o público não muda de opinião quando informado acerca do pensamento dos “experts”. O problema não é a falta de divulgação dos progressos da ciência econômica.
Pesquisas como essa servem para confirmar que a reputação dos discípulos de Adam Smith não é das mais lisonjeiras. Verdade, mas, sendo aqui piedoso, também revelam a inocência quase infinita do público. A mesma candura que estimulou o historiador italiano Carlo Cipolla a compilar as “Leis Fundamentais da Estupidez Humana”.
Há gente que ganha dinheiro vendendo livros e ministrando cursos para ensinar os segredos da Mega-Sena a partir de chamarizes espetaculares como “conheça o comportamento dos números”, “não jogue aleatoriamente” e “descubra as duplas que mais atrasam”. Juro que é verdade.
No jogo ingrato das projeções econômicas é preciso saber fazer as perguntas certas e, principalmente, ter meios para separar o joio do trigo. O maior problema não é a má qualidade do produto no tocante à precisão, mas o fato de que muitos não se dão ao trabalho de fazer uma avaliação independente antes do consumo – algo que não requereria muito esforço.
As projeções e cenários não substituem o uso de julgamentos subjetivos na tomada de decisões. No final do dia, qualquer escolha com incerteza equivale a fazer uma aposta. Projeções, mesmo que feitas com esmero, são complementos úteis ao uso da intuição. Se usados com sabedoria, ajudam a navegar os mares turbulentos. Mas não evitam os desastres.
Falta transparência, mas de quem é a culpa?
Imagine que um economista sério e experiente preocupado com a trajetória futura da inflação faz um exercício de projeção e redige o seguinte relatório: “se as regularidades observadas nos últimos 15 anos se mantiverem no futuro, a inflação nos próximos 12 meses tenderá a gravitar ao redor de 4%. Essa projeção central estará contida com 50% de probabilidade no intervalo entre 3,0% e 5,0% se as taxas de câmbio e de juro permanecerem inalteradas e se o conjunto de preços administrados subir 5,5%”.
É quase humilhante, mas esse é um retrato fiel da encrenca. No mundo real, mesmo após condicionar o palpite a diversas premissas, o economista diligente que crava um número para a inflação do próximo ano tem 50% de chance de errar mais do que um ponto percentual para cima ou para baixo, desvio maior do que 25% considerando uma inflação média de 4%. O Relatório de Inflação do Banco Central, elaborado por um time de craques, solta projeções com esse nível de precisão e, queiramos ou não, a instituição toma decisões que afetam o nosso bolso nessa penumbra.
Muito bem. Agora imagine a tarefa ingrata de um jornalista competente preocupado em informar o grande público. Ele deseja reportar a projeção do tal economista. No mundo de hoje, as mensagens têm que ser passadas com cada vez mais objetividade para serem “curtidas”. Desse modo, a missão do escrevinhador é zelar pela acurácia e, ao mesmo tempo, cuidar para que o texto seja lido por um número grande de leitores. Não é de se admirar, portanto, que a vasta maioria evite a redação de uma reportagem indigesta cheia de ressalvas e detalhes, preferindo emplacar frases diretas e elegantes como, por exemplo, “fulano projeta inflação de 4%”.
A versão light cumpre a missão de informar o coração do trabalho do economista, maximizando o número potencial de leitores. Trata-se, portanto, de uma boa reportagem. Ainda assim, o efeito colateral da simplificação é passar uma falsa sensação de certeza a um público que, como vimos no início, é viciado e propenso a acreditar nas profecias.
Passa-se um ano e a inflação crava os 4% só por milagre. Os jornais reportam os erros e, nesse diapasão, o prestígio de minha profissão junto a Seu João e Dona Maria vai para o ralo.
Se o público se dispusesse a ler ressalvas com letras miúdas, necessariamente enfadonhas, conheceria as fragilidades do ofício de prever a economia e usaria as conclusões com mais cautela. Além disso, teria instrumentos para monitorar o andamento da carruagem. Saberia, no nosso exemplo, que deveria esperar mais inflação se o dólar encarecesse.
Um aspecto de transparência fundamental que frequentemente está ausente é a indicação prévia dos desdobramentos que fariam com que o guru abandonasse o seu cenário principal em favor de uma hipótese alternativa. Isso é particularmente importante no caso de projeções de longo alcance apoiadas em narrativas vagas. Não dá para saber se a ausência é dada pelo quesito de objetividade das informações passadas ao grande público ou se faz parte de estratagemas usados pelos “experts” para criar a impressão de que sempre acertam. Provavelmente as duas coisas.
Ao contrário dos palpites intuídos do éter, as projeções bem feitas obedecem a uma lógica. Isso não garante acurácia, é claro, mas diferencia os trabalhos sérios dos bacorejos. O autor deve sustentar suas projeções de forma robusta. O consumidor, por sua vez, precisa entender o mecanismo para poder avaliar a qualidade do trabalho antes de usá-lo. Se não houver paciência para os detalhes, a qualidade das projeções será obrigatoriamente nivelada por baixo.
É difícil, portanto, saber se a falta de transparência deriva de problemas da oferta ou da demanda. O público não quer absorver uma quantidade grande e nuançada de informações e, pelas razões apontadas no início, prefere o conforto psicológico dos prognósticos precisos. Os babalorixás se ajustam a essas preferências. Torna-se difícil discriminar os trabalhos sérios dos pitacos irresponsáveis. Segundo a lei dos grandes números, eventualmente alguém acerta o gol. Enquanto o sortudo desfruta seus 15 minutos de fama, reforça-se o mito de que o futuro é previsível.
Ok, mas é preciso calçar a sandalinha
Falta humildade. A parafernália técnica evita subjetividades desnecessárias, tende a dar mais precisão às mensagens e ajuda a identificar impostores. Dito isso, é preciso levar em conta que o objeto de análise do economista é entender o comportamento de atores frequentemente irracionais interagindo uns com os outros em um teatro complexo. Ao escarafunchar a história, os economistas encontram padrões úteis para desenhar cenários e fazer previsões, mas nenhuma lição do passado pode ser cravada na pedra como lei imutável. Vide, por exemplo, o que ocorre hoje com a economia americana.
Os clarividentes que tendem a ser mais bem sucedidos conhecem bem os padrões históricos, mas estão atentos também aos detalhes dissonantes, pois essas são as peças que permitem antecipar as mudanças importantes de direção. Esses profissionais mais maleáveis são menos assertivos ao se expressarem e evitam fazer previsões impossíveis de serem verificadas. Por essa razão, mantém um histórico de erros e acertos que é usado para melhorar seu desempenho no futuro. Uma das causas da má fama dos economistas é o fato de que muitos – frequentemente os mais exibidos – fazem afirmações espalhafatosas sem admitir erros e sem serem cobrados por isso.
Iniciativas de premiar a acurácia de projeções econômicas são bem vindas e importantes para estimular a profissão a entregar produtos melhores. No entanto, esses guias devem ser também usados com cautela e não isentam os consumidores de buscar informações sobre o que está dentro das salsichas que cozinham. Afinal de contas, concursos de cara ou coroa também produzem vencedores. Sempre alguém enxergará a realidade com mais precisão, mas isso não significa que o erro seja aceitável e tampouco que esse mesmo alguém acertará mais no futuro. Há coisas que simplesmente são imprevisíveis e, no geral, todos estão sujeitos ao “retorno à média” que, como não poderia deixar de ser, é medíocre.
A coluna hiberna por algumas semanas. Boas festas e sucesso em 2019 😉
Ninguém gosta de correr riscos e, na natureza, os exemplos abundam. Os antílopes evitam locais em que a chance de morte é elevada. Ao forragear, partem para o tudo ou nada apenas quando a oferta de alimentos torna-se muito escassa. O esperto camarão branchinecta sandiegonensis, por sua vez, leva em conta a influência das intempéries e não coloca “todos os ovos na mesma cesta” – como se tivesse cursado um bom MBA em finanças.
Quando nossos ancestrais ainda fritavam sob o sol da savana, o acaso premiou indivíduos particularmente sensíveis às incertezas. Emulando as zebras e as girafas, o homem-macaco esquivava-se de perigos desnecessários, mas, curiosamente, também titubeava diante de apostas que na média davam prêmios iguais aos das escolhas seguras. O homo sapiens prefere R$ 1 milhão no bolso a jogar uma moeda e morder R$ 2 milhões se der cara ou nada se der coroa.
É mais difícil explicar esse nível de prudência do ponto de vista evolutivo. Especula-se que ele tenha surgido do fato de que vivíamos em grupos pequenos e nessa situação decisões arriscadas poderiam ter consequências desastrosas.
Seja lá por qual motivo, externamos nossa aguçada aversão ao risco de diversas formas. Sentimos mais dor ao perder do que prazer ao ganhar. É comum superestimarmos as chances de ameaças bastante improváveis. Queremos quantidades maiores daquilo que gostamos, mas sabemos que o prazer aumenta cada vez menos e, por isso, valorizamos o passarinho que está na mão.
Desse repúdio atávico às apostas nasceu o desejo de prever o futuro. Poucos conseguem resistir à tentação de dar ouvidos, ainda que brevemente, a quem declara saber de antemão o porvir, seja para nos dizer o exército que vencerá a batalha, o valor das ações, o local do próximo desastre e até mesmo o nome do próximo amor.
No âmbito desses anseios surgiram os babalorixás, astrólogos, consultores e demais espécies do amplo gênero de indivíduos que pretendem ter a bola de cristal.
E, vejam vocês, estamos em dezembro, mês oficial das adivinhações.
O futuro é previsível?
Claro que não. Mesmo que fosse predeterminado seria uma tarefa hercúlea destrinchar o quebra-cabeça, pois o mundo é demasiadamente complexo. Considere um jogo de xadrez. Trata-se de um sistema simples em que apenas 32 peças se movimentam de acordo com seis padrões distintos em um tabuleiro com 64 lugares.
O matemático americano Claude Shannon, precursor da Teoria da Informação, calculou de forma conservadora que o número de jogos possíveis supera o que entendemos ser a quantidade de átomos existente em todo o universo. Ou seja, a complexidade de um jogo de tabuleiro desbanca com facilidade a capacidade computacional à nossa disposição.
Mesmo se tivessem tempo de sobra, os enxadristas não teriam como mapear de antemão a árvore de possibilidades antes de mover, digamos, um cavalo. Antecipam um punhado de lances, mas rapidamente o horizonte fica embaçado e eles são forçados a fazer escolhas com incerteza.
Na verdade, as previsões para o comportamento da economia são ainda mais difíceis porque o sistema não é imune às próprias previsões. Quando o meteorologista nos alerta para a onda de frio que virá amanhã, nada muda quando as pessoas reagem saindo de casa agasalhados. No dia seguinte é possível saber se homem do tempo acertou ou errou.
No entanto, quando se projeta que a inflação mudará de 2% para 4%, a resposta dos agentes econômicos muda as condições do prognóstico original. Os trabalhadores podem pedir aumentos de salários maiores do que os que tinham em mente. As empresas podem postergar investimentos temendo uma reação do Banco Central e assim por diante.
Não surpreende, portanto, o sucesso duvidoso das projeções econômicas. Segundo um estudo do FMI publicado em março passado, por exemplo, o consenso falhou na antecipação de 148 das 153 recessões registradas de 1992 a 2014 em 63 países com antecedência um pouco inferior a dois anos. Os analistas erraram 35 vezes mesmo faltando poucos meses para o desfecho.
Se elas são tão ruins por que usamos projeções?
As decisões precisam ser tomadas. Para tanto é necessário estabelecer hipóteses sobre o futuro, atribuir probabilidades aos cenários e definir os respectivos planos de contingência. A tarefa é inglória e fadada ao fracasso, mas as escolhas têm que ser feitas de qualquer forma.
Além disso, a incerteza é um dado para todos os participantes do jogo. Não é preciso correr mais do que o leão para vencer. Basta superar o cidadão ao lado, tarefa que também é difícil, mas não impossível. O prêmio para quem consegue pequenas vantagens é elevado diante do custo de tentar antecipar o que virá.
É verdade também que às vezes as pessoas consomem previsões porque acreditam ingenuamente na previsibilidade do futuro. Tome-se, por exemplo, a afirmação: “poucos investidores, se tanto, são capazes de fazer previsões consistentemente acuradas sobre os movimentos diários do preço de uma ação”. Você concorda ou discorda?
Uma pesquisa publicada em 2013 na American Economic Review fez esta e outras assertivas para comparar as visões do grande público com as de economistas das melhores universidades americanas. Os resultados revelaram a existência de um fosso separando os dois grupos.
Por exemplo, o enunciado acima foi chancelado por 100% dos economistas enquanto a concordância entre o grande público foi de apenas 55%. Ou seja, muita gente acredita ser possível prever com precisão movimentos aleatórios. O curioso é que o público não muda de opinião quando informado acerca do pensamento dos “experts”. O problema não é a falta de divulgação dos progressos da ciência econômica.
Pesquisas como essa servem para confirmar que a reputação dos discípulos de Adam Smith não é das mais lisonjeiras. Verdade, mas, sendo aqui piedoso, também revelam a inocência quase infinita do público. A mesma candura que estimulou o historiador italiano Carlo Cipolla a compilar as “Leis Fundamentais da Estupidez Humana”.
Há gente que ganha dinheiro vendendo livros e ministrando cursos para ensinar os segredos da Mega-Sena a partir de chamarizes espetaculares como “conheça o comportamento dos números”, “não jogue aleatoriamente” e “descubra as duplas que mais atrasam”. Juro que é verdade.
No jogo ingrato das projeções econômicas é preciso saber fazer as perguntas certas e, principalmente, ter meios para separar o joio do trigo. O maior problema não é a má qualidade do produto no tocante à precisão, mas o fato de que muitos não se dão ao trabalho de fazer uma avaliação independente antes do consumo – algo que não requereria muito esforço.
As projeções e cenários não substituem o uso de julgamentos subjetivos na tomada de decisões. No final do dia, qualquer escolha com incerteza equivale a fazer uma aposta. Projeções, mesmo que feitas com esmero, são complementos úteis ao uso da intuição. Se usados com sabedoria, ajudam a navegar os mares turbulentos. Mas não evitam os desastres.
Falta transparência, mas de quem é a culpa?
Imagine que um economista sério e experiente preocupado com a trajetória futura da inflação faz um exercício de projeção e redige o seguinte relatório: “se as regularidades observadas nos últimos 15 anos se mantiverem no futuro, a inflação nos próximos 12 meses tenderá a gravitar ao redor de 4%. Essa projeção central estará contida com 50% de probabilidade no intervalo entre 3,0% e 5,0% se as taxas de câmbio e de juro permanecerem inalteradas e se o conjunto de preços administrados subir 5,5%”.
É quase humilhante, mas esse é um retrato fiel da encrenca. No mundo real, mesmo após condicionar o palpite a diversas premissas, o economista diligente que crava um número para a inflação do próximo ano tem 50% de chance de errar mais do que um ponto percentual para cima ou para baixo, desvio maior do que 25% considerando uma inflação média de 4%. O Relatório de Inflação do Banco Central, elaborado por um time de craques, solta projeções com esse nível de precisão e, queiramos ou não, a instituição toma decisões que afetam o nosso bolso nessa penumbra.
Muito bem. Agora imagine a tarefa ingrata de um jornalista competente preocupado em informar o grande público. Ele deseja reportar a projeção do tal economista. No mundo de hoje, as mensagens têm que ser passadas com cada vez mais objetividade para serem “curtidas”. Desse modo, a missão do escrevinhador é zelar pela acurácia e, ao mesmo tempo, cuidar para que o texto seja lido por um número grande de leitores. Não é de se admirar, portanto, que a vasta maioria evite a redação de uma reportagem indigesta cheia de ressalvas e detalhes, preferindo emplacar frases diretas e elegantes como, por exemplo, “fulano projeta inflação de 4%”.
A versão light cumpre a missão de informar o coração do trabalho do economista, maximizando o número potencial de leitores. Trata-se, portanto, de uma boa reportagem. Ainda assim, o efeito colateral da simplificação é passar uma falsa sensação de certeza a um público que, como vimos no início, é viciado e propenso a acreditar nas profecias.
Passa-se um ano e a inflação crava os 4% só por milagre. Os jornais reportam os erros e, nesse diapasão, o prestígio de minha profissão junto a Seu João e Dona Maria vai para o ralo.
Se o público se dispusesse a ler ressalvas com letras miúdas, necessariamente enfadonhas, conheceria as fragilidades do ofício de prever a economia e usaria as conclusões com mais cautela. Além disso, teria instrumentos para monitorar o andamento da carruagem. Saberia, no nosso exemplo, que deveria esperar mais inflação se o dólar encarecesse.
Um aspecto de transparência fundamental que frequentemente está ausente é a indicação prévia dos desdobramentos que fariam com que o guru abandonasse o seu cenário principal em favor de uma hipótese alternativa. Isso é particularmente importante no caso de projeções de longo alcance apoiadas em narrativas vagas. Não dá para saber se a ausência é dada pelo quesito de objetividade das informações passadas ao grande público ou se faz parte de estratagemas usados pelos “experts” para criar a impressão de que sempre acertam. Provavelmente as duas coisas.
Ao contrário dos palpites intuídos do éter, as projeções bem feitas obedecem a uma lógica. Isso não garante acurácia, é claro, mas diferencia os trabalhos sérios dos bacorejos. O autor deve sustentar suas projeções de forma robusta. O consumidor, por sua vez, precisa entender o mecanismo para poder avaliar a qualidade do trabalho antes de usá-lo. Se não houver paciência para os detalhes, a qualidade das projeções será obrigatoriamente nivelada por baixo.
É difícil, portanto, saber se a falta de transparência deriva de problemas da oferta ou da demanda. O público não quer absorver uma quantidade grande e nuançada de informações e, pelas razões apontadas no início, prefere o conforto psicológico dos prognósticos precisos. Os babalorixás se ajustam a essas preferências. Torna-se difícil discriminar os trabalhos sérios dos pitacos irresponsáveis. Segundo a lei dos grandes números, eventualmente alguém acerta o gol. Enquanto o sortudo desfruta seus 15 minutos de fama, reforça-se o mito de que o futuro é previsível.
Ok, mas é preciso calçar a sandalinha
Falta humildade. A parafernália técnica evita subjetividades desnecessárias, tende a dar mais precisão às mensagens e ajuda a identificar impostores. Dito isso, é preciso levar em conta que o objeto de análise do economista é entender o comportamento de atores frequentemente irracionais interagindo uns com os outros em um teatro complexo. Ao escarafunchar a história, os economistas encontram padrões úteis para desenhar cenários e fazer previsões, mas nenhuma lição do passado pode ser cravada na pedra como lei imutável. Vide, por exemplo, o que ocorre hoje com a economia americana.
Os clarividentes que tendem a ser mais bem sucedidos conhecem bem os padrões históricos, mas estão atentos também aos detalhes dissonantes, pois essas são as peças que permitem antecipar as mudanças importantes de direção. Esses profissionais mais maleáveis são menos assertivos ao se expressarem e evitam fazer previsões impossíveis de serem verificadas. Por essa razão, mantém um histórico de erros e acertos que é usado para melhorar seu desempenho no futuro. Uma das causas da má fama dos economistas é o fato de que muitos – frequentemente os mais exibidos – fazem afirmações espalhafatosas sem admitir erros e sem serem cobrados por isso.
Iniciativas de premiar a acurácia de projeções econômicas são bem vindas e importantes para estimular a profissão a entregar produtos melhores. No entanto, esses guias devem ser também usados com cautela e não isentam os consumidores de buscar informações sobre o que está dentro das salsichas que cozinham. Afinal de contas, concursos de cara ou coroa também produzem vencedores. Sempre alguém enxergará a realidade com mais precisão, mas isso não significa que o erro seja aceitável e tampouco que esse mesmo alguém acertará mais no futuro. Há coisas que simplesmente são imprevisíveis e, no geral, todos estão sujeitos ao “retorno à média” que, como não poderia deixar de ser, é medíocre.
A coluna hiberna por algumas semanas. Boas festas e sucesso em 2019 😉