Será que o endividamento no mundo passou do ponto?
A máquina milagrosa de criação de riqueza pela injeção de liquidez tem funcionado bem e pode ser que continue assim por mais um tempo
Da Redação
Publicado em 15 de março de 2019 às 19h25.
Vera Cruz é uma ilha tropical famosa pela malandragem e pela paixão pelo futebol. A cada mil habitantes, um é ladrão. Sabe-se que 95% dos ladrões são fieis torcedores de uma equipe e que 95% das pessoas honestas torcem pelos outros times. Você encontra casualmente um nativo no aeroporto e, após uma conversa casual, descobre que ele torce pela equipe favorita dos marginais. Sem informações adicionais, qual a chance desse indivíduo ser um deles?
Se você pensou em um número elevado, agiu como a maioria dos terráqueos. Afinal, se o cidadão torce pelo time favorito da bandidagem ele deve ser bandido, certo? Por mais que dê vontade de espernear, esse raciocínio está (muito) errado. A probabilidade real não chega a 2%. A dica é considerar que a vasta maioria da população é honesta, ou seja, o número absoluto de cidadãos de bem que preferem o time em questão supera em larga margem o número de gatunos.
É sempre divertido constatar a irracionalidade humana, mas vieses cognitivos como esse são mais do que apenas curiosidades, pois eles comandam a forma como tomamos decisões importantes. No final dos anos 70, uma pesquisa junto a médicos com pergunta equivalente à da fábula de Vera Cruz foi respondida corretamente por apenas 12% dos profissionais. A resposta mais frequente foi 95% – o mesmo que chutar um pênalti para a lateral do campo.
O lado preocupante é que, ao invés de avaliar a honestidade de fãs do futebol, a pesquisa indagava sobre a chance de um paciente ter uma doença rara quando o resultado de um teste confiável, mas imperfeito, dava positivo. Respostas com apelo intuitivo elevado, mas grosseiramente erradas, podem, no limite, levar à recomendação de tratamentos caros, arriscados e desnecessários – resumindo, uma tragédia. Curiosamente, a matemática requerida para evitar o deslize deveria ser trivial para um aluno do ensino médio.
O que essa história tem a ver com o tema proposto no título? Como escrevi há duas semanas, o volume de dívidas global tem crescido de forma vertiginosa depois da crise financeira, a um ritmo médio de USD 7,2 trilhões por ano. Nos 12 meses encerrados no terceiro trimestre de 2018, o aumento das obrigações atingiu R$ 9,1 trilhões, quase duas vezes mais do que o crescimento da economia mundial. O bando de papagaios voando pelo planeta supera com folga o triplo de tudo que os países produzem em bens e serviços, um pouco mais do que no final de 2007.
Tudo é possível nesse mundo que parece ser novo para os economistas, mas, ainda assim, vale perguntar se a corda não estaria esticada demais. Até porque a economia mundial não bate o mesmo bolão que parecia bater na véspera da grande recessão.
O interesse pelos “ciclos de crédito” cresceu após o colapso do Lehman Brothers. Sabe-se hoje que os episódios de expansão acelerada de empréstimos antecipam recessões. Além disso, quão mais intensivo em dívidas é o “boom”, mais profunda é a queda. Crises bancárias são eventos relativamente incomuns, mas periódicos. Os países enfrentam, em média, uma crise a cada doze anos mais ou menos. Desde meados dos anos 70, houve pelo menos uma nação em crise em todos os anos. Naturalmente, os episódios em países sistemicamente importantes, como os EUA, acabam afetando os demais.
A fábula do início exemplifica o tipo de armadilha psicológica que ajuda a explicar a recorrência das crises e o motivo pelo qual o mercado de crédito amplifica os ciclos econômicos. Os doadores e tomadores de empréstimos esquecem-se facilmente da última quebradeira, tendem a extrapolar indevidamente a situação presente e erram sistematicamente no cômputo dos riscos envolvidos. Como nós e os médicos, os banqueiros também não calculam probabilidades com o devido rigor.
A evidência mostra que nos períodos de liquidez abundante os agentes exageram no otimismo com relação às condições futuras do crédito (taxas de juros, inadimplência, etc.) ocorrendo o inverso nos momentos de aperto. Sobra dinheiro quando tudo vai bem e falta de repente quando ele é mais necessário. Ao superestimarem a chance de o futuro ser favorável quando tudo dá certo no presente, os investidores semeiam irracionalmente decepções que cedo ou tarde se materializam – afinal, as coisas retornam à média. A surpresa é geral quando a vaca vai para o brejo, mas, em retrospecto, a maior dificuldade é entender a cegueira antes do tombo.
Diante de uma onda de surpresas positivas, os interessados revisam corretamente suas expectativas para melhor, porém excessivamente. Quando o fluxo de novidades se desacelera, passando de positivo para neutro, ao invés de uma acomodação natural ocorre uma deterioração súbita do humor. As coisas funcionam como se a visão consensual dependesse de um noticiário que surpreendesse positivamente ad infinitum – o que não faz sentido. Desse modo, as crises têm início não porque os fundamentos econômicos pioram, mas simplesmente porque deixam de melhorar e, com isso, a turma migra da noite para o dia do otimismo para o pessimismo.
Saiu há alguns meses no prestigioso Journal of Finance um artigo formalizando essas ideias que, na verdade, têm mais de quarenta anos de idade. Os economistas Pedro Bordalo, Nicola Gennaioli e Andrei Schleifer explicam satisfatoriamente as regularidades dos ciclos do crédito por meio de um modelo analítico relativamente convencional, mas que explicita nossas limitações de cunho psicológico, particularmente na hora de calcular probabilidades e riscos futuros. O assunto é pertinente nesse momento em que o mundo está mergulhado em um oceano de dívidas tão vasto quanto ao que precedeu a última crise, ao mesmo tempo em que as duas economias líderes estão se engalfinhando em um jogo de soma negativa.
Chama atenção que aproximadamente metade do fluxo de crédito corporativo nos EUA seja canalizada para empresas cujo endividamento supera cinco vezes o lucro. É verdade que essas são as empresas que mais crescem e que a popularidade dos empréstimos é devida em parte ao fato de que eles têm prioridade sobre as demais modalidades de créditos de alto retorno. Também é verdade que boa parte dos fundos vem de investidores institucionais, que têm horizontes de mais longo prazo e, supostamente, uma capacidade melhor para avaliar as chances de haver problemas. No entanto, a qualidade das garantias oferecidas está piorando bastante porque há fila do lado da demanda – isso produz complacência e elevação do risco sistêmico. Cansei de ler (e de fazer) análises sobre a sofisticação dos mercados financeiros, sua enorme capacidade de distribuir eficientemente os riscos e a parcela diminuta representada pelos segmentos “subprime” em 2007. Deu no que deu. Hoje não é tão ruim, mas a pergunta é: precisa ser tão ruim?
Os preços dos “empréstimos alavancados” despencaram em meados de outubro passado quando o FED reforçou o que vinha dizendo há mais de um ano – essa foi a “novidade” que precipitou o movimento. As medidas de afrouxamento das condições financeiras adotadas pelo próprio FED e autoridades dos principais governos conteve a crise e os preços recuperaram parte do tombo. O soluço assustou, mas não chegou a ser trágico – houve outros em 2011 e em 2015. A diferença agora é que os sinais vitais da economia real têm piorado de forma perigosa. A produtividade não decola; o risco atribuído pelos americanos à ocorrência de uma recessão no curto prazo está relativamente elevado; a confiança anda baixa e o volume de comércio global cresce pouco, com perigo concreto de encolhimento se as disputas entre EUA e China não evoluírem favoravelmente.
A máquina milagrosa de criação de riqueza pela injeção de liquidez tem funcionado bem e pode ser que continue assim por mais um tempo – há quem diga que estamos operando em um mundo novo que requer também uma nova teoria econômica. Sem ir tão longe, dá para dizer que se a economia mundial continuar crescendo uns 3,5% ao ano tudo deverá dar certo no curto prazo. Não sei quanto refresca, mas esse é ainda o consenso entre os analistas. Ok, mas os sinais ubíquos de esfriamento estão aí e é bom prestar atenção. Quando a próxima recessão vier, oxalá daqui uns anos, muita gente descobrirá que tem em suas carteiras papeis que não servem nem para satisfazer as mais vis necessidades humanas. Se a história servir de exemplo, a ressaca será brava.
Vera Cruz é uma ilha tropical famosa pela malandragem e pela paixão pelo futebol. A cada mil habitantes, um é ladrão. Sabe-se que 95% dos ladrões são fieis torcedores de uma equipe e que 95% das pessoas honestas torcem pelos outros times. Você encontra casualmente um nativo no aeroporto e, após uma conversa casual, descobre que ele torce pela equipe favorita dos marginais. Sem informações adicionais, qual a chance desse indivíduo ser um deles?
Se você pensou em um número elevado, agiu como a maioria dos terráqueos. Afinal, se o cidadão torce pelo time favorito da bandidagem ele deve ser bandido, certo? Por mais que dê vontade de espernear, esse raciocínio está (muito) errado. A probabilidade real não chega a 2%. A dica é considerar que a vasta maioria da população é honesta, ou seja, o número absoluto de cidadãos de bem que preferem o time em questão supera em larga margem o número de gatunos.
É sempre divertido constatar a irracionalidade humana, mas vieses cognitivos como esse são mais do que apenas curiosidades, pois eles comandam a forma como tomamos decisões importantes. No final dos anos 70, uma pesquisa junto a médicos com pergunta equivalente à da fábula de Vera Cruz foi respondida corretamente por apenas 12% dos profissionais. A resposta mais frequente foi 95% – o mesmo que chutar um pênalti para a lateral do campo.
O lado preocupante é que, ao invés de avaliar a honestidade de fãs do futebol, a pesquisa indagava sobre a chance de um paciente ter uma doença rara quando o resultado de um teste confiável, mas imperfeito, dava positivo. Respostas com apelo intuitivo elevado, mas grosseiramente erradas, podem, no limite, levar à recomendação de tratamentos caros, arriscados e desnecessários – resumindo, uma tragédia. Curiosamente, a matemática requerida para evitar o deslize deveria ser trivial para um aluno do ensino médio.
O que essa história tem a ver com o tema proposto no título? Como escrevi há duas semanas, o volume de dívidas global tem crescido de forma vertiginosa depois da crise financeira, a um ritmo médio de USD 7,2 trilhões por ano. Nos 12 meses encerrados no terceiro trimestre de 2018, o aumento das obrigações atingiu R$ 9,1 trilhões, quase duas vezes mais do que o crescimento da economia mundial. O bando de papagaios voando pelo planeta supera com folga o triplo de tudo que os países produzem em bens e serviços, um pouco mais do que no final de 2007.
Tudo é possível nesse mundo que parece ser novo para os economistas, mas, ainda assim, vale perguntar se a corda não estaria esticada demais. Até porque a economia mundial não bate o mesmo bolão que parecia bater na véspera da grande recessão.
O interesse pelos “ciclos de crédito” cresceu após o colapso do Lehman Brothers. Sabe-se hoje que os episódios de expansão acelerada de empréstimos antecipam recessões. Além disso, quão mais intensivo em dívidas é o “boom”, mais profunda é a queda. Crises bancárias são eventos relativamente incomuns, mas periódicos. Os países enfrentam, em média, uma crise a cada doze anos mais ou menos. Desde meados dos anos 70, houve pelo menos uma nação em crise em todos os anos. Naturalmente, os episódios em países sistemicamente importantes, como os EUA, acabam afetando os demais.
A fábula do início exemplifica o tipo de armadilha psicológica que ajuda a explicar a recorrência das crises e o motivo pelo qual o mercado de crédito amplifica os ciclos econômicos. Os doadores e tomadores de empréstimos esquecem-se facilmente da última quebradeira, tendem a extrapolar indevidamente a situação presente e erram sistematicamente no cômputo dos riscos envolvidos. Como nós e os médicos, os banqueiros também não calculam probabilidades com o devido rigor.
A evidência mostra que nos períodos de liquidez abundante os agentes exageram no otimismo com relação às condições futuras do crédito (taxas de juros, inadimplência, etc.) ocorrendo o inverso nos momentos de aperto. Sobra dinheiro quando tudo vai bem e falta de repente quando ele é mais necessário. Ao superestimarem a chance de o futuro ser favorável quando tudo dá certo no presente, os investidores semeiam irracionalmente decepções que cedo ou tarde se materializam – afinal, as coisas retornam à média. A surpresa é geral quando a vaca vai para o brejo, mas, em retrospecto, a maior dificuldade é entender a cegueira antes do tombo.
Diante de uma onda de surpresas positivas, os interessados revisam corretamente suas expectativas para melhor, porém excessivamente. Quando o fluxo de novidades se desacelera, passando de positivo para neutro, ao invés de uma acomodação natural ocorre uma deterioração súbita do humor. As coisas funcionam como se a visão consensual dependesse de um noticiário que surpreendesse positivamente ad infinitum – o que não faz sentido. Desse modo, as crises têm início não porque os fundamentos econômicos pioram, mas simplesmente porque deixam de melhorar e, com isso, a turma migra da noite para o dia do otimismo para o pessimismo.
Saiu há alguns meses no prestigioso Journal of Finance um artigo formalizando essas ideias que, na verdade, têm mais de quarenta anos de idade. Os economistas Pedro Bordalo, Nicola Gennaioli e Andrei Schleifer explicam satisfatoriamente as regularidades dos ciclos do crédito por meio de um modelo analítico relativamente convencional, mas que explicita nossas limitações de cunho psicológico, particularmente na hora de calcular probabilidades e riscos futuros. O assunto é pertinente nesse momento em que o mundo está mergulhado em um oceano de dívidas tão vasto quanto ao que precedeu a última crise, ao mesmo tempo em que as duas economias líderes estão se engalfinhando em um jogo de soma negativa.
Chama atenção que aproximadamente metade do fluxo de crédito corporativo nos EUA seja canalizada para empresas cujo endividamento supera cinco vezes o lucro. É verdade que essas são as empresas que mais crescem e que a popularidade dos empréstimos é devida em parte ao fato de que eles têm prioridade sobre as demais modalidades de créditos de alto retorno. Também é verdade que boa parte dos fundos vem de investidores institucionais, que têm horizontes de mais longo prazo e, supostamente, uma capacidade melhor para avaliar as chances de haver problemas. No entanto, a qualidade das garantias oferecidas está piorando bastante porque há fila do lado da demanda – isso produz complacência e elevação do risco sistêmico. Cansei de ler (e de fazer) análises sobre a sofisticação dos mercados financeiros, sua enorme capacidade de distribuir eficientemente os riscos e a parcela diminuta representada pelos segmentos “subprime” em 2007. Deu no que deu. Hoje não é tão ruim, mas a pergunta é: precisa ser tão ruim?
Os preços dos “empréstimos alavancados” despencaram em meados de outubro passado quando o FED reforçou o que vinha dizendo há mais de um ano – essa foi a “novidade” que precipitou o movimento. As medidas de afrouxamento das condições financeiras adotadas pelo próprio FED e autoridades dos principais governos conteve a crise e os preços recuperaram parte do tombo. O soluço assustou, mas não chegou a ser trágico – houve outros em 2011 e em 2015. A diferença agora é que os sinais vitais da economia real têm piorado de forma perigosa. A produtividade não decola; o risco atribuído pelos americanos à ocorrência de uma recessão no curto prazo está relativamente elevado; a confiança anda baixa e o volume de comércio global cresce pouco, com perigo concreto de encolhimento se as disputas entre EUA e China não evoluírem favoravelmente.
A máquina milagrosa de criação de riqueza pela injeção de liquidez tem funcionado bem e pode ser que continue assim por mais um tempo – há quem diga que estamos operando em um mundo novo que requer também uma nova teoria econômica. Sem ir tão longe, dá para dizer que se a economia mundial continuar crescendo uns 3,5% ao ano tudo deverá dar certo no curto prazo. Não sei quanto refresca, mas esse é ainda o consenso entre os analistas. Ok, mas os sinais ubíquos de esfriamento estão aí e é bom prestar atenção. Quando a próxima recessão vier, oxalá daqui uns anos, muita gente descobrirá que tem em suas carteiras papeis que não servem nem para satisfazer as mais vis necessidades humanas. Se a história servir de exemplo, a ressaca será brava.