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Revisitando o BOZO: o Brasil na pandemia

Métrica compara o desempenho relativo dos países durante a crise, levando em conta duas dimensões principais: a sanitária e a econômica

Leito de UTI durante a pandemia (Michael Dantas/Getty Images)
Leito de UTI durante a pandemia (Michael Dantas/Getty Images)
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Celso Toledo

Publicado em 18 de abril de 2021 às, 11h41.

Última atualização em 18 de abril de 2021 às, 11h42.

Introduzi o Barômetro Objetivo do Zelo Oficial (BOZO) na última coluna. O BOZO é uma métrica simples que permite comparar objetivamente o desempenho relativo dos países durante a crise, levando em conta suas duas dimensões principais, a sanitária e a econômica.

O BOZO combina dois indicadores. A pandemia é descrita pelo número acumulado de mortes atribuídas à COVID-19 e a perspectiva econômica é medida pelo desvio acumulado da mobilidade dos agentes em relação ao período imediatamente anterior à doença.

Chamei atenção para possíveis fragilidades da formulação, que tem as vantagens e desvantagens da simplicidade. Apontei resultados que me pareceram pouco intuitivos, mas talvez não tenha dado o devido destaque. Recebi críticas pelo conjunto da obra.

Tome-se, por exemplo, o caso da Tanzânia. O país registrou um dos dez melhores escores na métrica BOZO, superando Taiwan – que, sabidamente, conduziu a crise com competência. Basta uma inspeção superficial do caso tanzaniano para constatar que o BOZO errou feio.

Para começo de conversa, a COVID-19 ceifou a vida do presidente John Magufuli, de 61 anos. Político de veia populista e carreira parlamentar, Magufuli foi eleito em 2015 com plataforma de combate à corrupção e teve a gestão marcada por ataques às instituições democráticas, violação de direitos humanos e deterioração do ambiente de negócios.

Fez barba, cabelo e bigode durante a pandemia. Condenou o distanciamento social, promoveu procedimentos e remédios de eficácia não comprovada (como infusões herbáceas), fez campanha contra o uso de máscaras e desencorajou o Ministério da Saúde a comprar vacinas. A cereja veio com a afirmação de que Deus teria ajudado a Tanzânia a se livrar do vírus. Tal enredo, infelizmente familiar aos brasileiros, não poderia acabar bem.

O BOZO tanzaniano inflado não derivou de problema de concepção do indicador, mas da baixa qualidade dos dados. Quem mexe com estatísticas conhece bem a expressão inglesa “garbage in, garbage out”. Modelos teóricos sólidos produzem porcaria se alimentados com porcaria.

Há relatos recentes dando conta da difusão acelerada da COVID-19 e do enorme estresse do sistema de saúde na Tanzânia. No entanto, o país deixou de compartilhar informações sobre a evolução da pandemia em abril de 2020, tornando pouco crível o registro de apenas 0,4 mortes por milhão de habitantes, número que turbinou o BOZO do país.

Além da Tanzânia, há diversas nações que subestimam grosseiramente a mortalidade em geral, que dirá os óbitos causados pela COVID-19. Na esfera econômica, a mobilidade é medida com precisão, mas a ligação dessa variável com o desempenho efetivo das economias, apesar de muito relevante no segundo e terceiro trimestres de 2020, não é a mesma entre os países e, provavelmente, diminuiu recentemente. Tudo isso justifica certo ceticismo em relação à capacidade efetiva do BOZO de produzir uma métrica de sucesso na gestão da pandemia.

Na tentativa de defender a reputação do índice, realizei testes de robustez usando outras informações. Para a dimensão sanitária, incorporei os dados de “mortes em excesso”, ou seja, o desvio dos óbitos registrados a partir de 2020 em relação às médias observadas entre 2015 e 2019. Desvios expressivos são provavelmente devidos à pandemia.

Além de fazer um contraponto às mortes oficialmente atribuídas à COVID-19, essas estatísticas são disponíveis apenas para países que produzem dados mais confiáveis. A desvantagem é trabalhar com uma amostra reduzida, mas não há almoço grátis. O BOZO compara 114 países. O novo índice, doravante chamado de BOZO*, permite olhar para 76. Praticamente todos os africanos deixaram de ser considerados.

Para a dimensão econômica, aproveitei a divulgação pelo FMI da nova edição do World Economic Outlook (WEO). Como se sabe, o Fundo divulga sistematicamente projeções para as principais variáveis macroeconômicas de quase todos os países, combinando os melhores modelos e consensos qualificados. Para compor o BOZO*, usei as estimativas e cenários referentes ao crescimento, inflação e endividamento público.

A história é a seguinte. Os países bem-sucedidos na frente econômica lograram minimizar o impacto negativo da pandemia sobre o crescimento econômico, sem perder o controle da inflação e, para tanto, usaram eficientemente os recursos disponíveis, evitando crescimento excessivo da dívida (que onera as gerações futuras). O BOZO* compara as projeções do FMI do relatório atual com as do WEO de outubro de 2019 para as três variáveis.

Sem aborrecer o leitor com detalhes metodológicas, o BOZO* combina informações de “mortes em excesso”, mortes totais atribuídas à COVID-19, revisão do cenário de crescimento econômico da renda por habitante para o período entre 2020 e 2024 (horizonte do WEO de outubro de 2019), revisão do cenário de inflação para o mesmo período e estoque projetado para a relação dívida bruta sobre PIB em 2024, descontando-se o efeito da revisão do cenário de crescimento.

O BOZO* combina a informação de dados observados e expectativas. Permite, portanto, capturar de forma consistente os impactos imediatos da crise e percepções consensuais sobre o arrasto para os próximos anos. Afinal, as projeções do WEO são compiladas segundo os critérios de uma única instituição com base em informações qualificadas coletadas no mundo inteiro. As estatísticas de mortes representam a melhor forma de aquilatar o dano da pandemia.

Os resultados são agora mais intuitivos. Os dez melhores BOZO*s vão para, respectivamente, Macau, Noruega, Taiwan, Oman, Hong Kong, Dinamarca, Finlândia, Japão, Tailândia e Coréia do Sul, retratando o bom desempenho relativo dos países asiáticos. Os piores são: Equador, República Tcheca, México, Bolívia, São Marino, Tunísia, Armênia, Brasil, Macedônia e Panamá.

O BOZO e o BOZO* são disponíveis para 62 países. Para conforto dos que, apesar de tudo, acreditaram no potencial do indicador original, o coeficiente de correlação entre os dois barômetros é igual a 64% e estatisticamente diferente de zero. O laço entre os respectivos componentes econômicos é menos forte, mas também positivo e estatisticamente diferente de zero. Ou seja, o BOZO e o BOZO* medem coisas parecidas, mas, é claro, devemos descartar o BOZO para países para os quais não temos o BOZO*.

Um resultado interessante do BOZO* é a aparente independência estatística entre as dimensões econômica e sanitária da crise. Há países que foram bem nas duas frentes, países que se destacaram em apenas uma e países que fracassaram de modo geral. A Nova Zelândia é um exemplo de quem foi muito bem na gestão da pandemia a um custo econômico expressivo.

Enquanto o número total de mortes associadas à COVID-19 foi de apenas 5,4 por milhão de habitantes (com “mortes em excesso” negativas, ou seja, menores do que as do período de comparação), o cenário econômico neozelandês se deteriorou significativamente após a crise. No final de 2019, o FMI projetava para o período entre 2020 e 2024 crescimento de 4,2% para a renda de cada habitante e inflação acumulada de 8,6%, além de dívida bruta de 28,5% do PIB em 2024.

Hoje, o cenário é, respectivamente, 2,4%, 11,0% e 53,7%. De qualquer forma, a experiência dos Kiwis mostra como é importante ter um endividamento pequeno para ter folga em época de vacas magras. Apesar do aumento expressivo, a dívida esperada para daqui três anos é ainda baixa para o nível de desenvolvimento da Nova Zelândia.

A Noruega é o melhor exemplo de quem mandou bem nas duas frentes. O país nórdico registrou apenas 126 óbitos por milhão de habitantes devido à COVID-19 e “mortes em excesso” bem menores que as da base de comparação. Apesar disso, as perspectivas econômicas para 2020-24 melhoraram tanto para o crescimento quanto para a inflação. O endividamento esperado para 2024 cresceu um tiquinho e seguirá muito abaixo do padrão de países desenvolvidos.

A República Tcheca foi mal nas duas frentes. Registrou mortes 17% acima da média entre 2015 e 2019 e quase 2300 mortes por milhão de habitantes devidas à COVID-19. O cenário econômico se deteriorou bastante, com expectativa de crescimento bastante reduzida, inflação um tanto maior e dívida muito maior. Apesar da piora, no entanto, o cenário seguiu favorável, aliviando a barra dos tchecos. A economia estava e continua indo bem e a dívida inicial era pequena.

O melhor exemplo de país que realmente meteu os pés pelas mãos é, para nossa tristeza, o Brasil. Registramos um número excessivo de mortes de 27% e um total de 1600 óbitos por milhão de habitantes atribuídos à pandemia. Além disso, a perspectiva de crescimento da renda por habitante caiu de 8,6% para 3,2% até 2024 (o que, para um país emergente, é vergonhoso). O cenário de inflação se deteriorou e, para piorar, a dívida bruta, que antes deveria bater 95% do PIB, agora caminha para 101% do PIB em 2024, muito superior à de países de nossa liga. A julgar pelas lambanças recentes de Brasília, será uma vitória se o FMI acertar.

Para completar a taxonomia, a Polônia é um país que foi mal no controle da pandemia, mas que teve o cenário econômico relativamente melhorado (ou piorado pouco). Registrou 13% de mortes excessivas e cerca de 1500 óbitos por milhão de habitantes por conta da COVID-19, mas deverá crescer razoavelmente até 2024 (pouco abaixo do esperado antes da crise), com inflação significativamente menor e dívida praticamente igual (não distante do típico).

Uma ressalva. O cenário econômico de países ricos tende a variar menos e isso pode favorecer seus BOZO*s. Fazendo as contas, o efeito existe de fato e é significativo estatisticamente. No entanto, é desprezível quantitativamente. Em particular, a posição do Brasil no ranking BOZO* não se altera após o ajuste pelo nosso nível de renda. O país mais afetado é Luxemburgo, que passa de 32º na métrica BOZO* para 23º após ajuste pela renda.

Não resta dúvida que a opção do governo brasileiro de estimular na prática a proliferação do vírus com o intuito de preservar a economia mostrou-se equivocada. Registramos mais mortes que as inevitáveis e as perspectivas econômicas se deterioraram bastante, apesar de um dos programas de auxílio mais generosos do mundo. A comparação com outros países sugere que o mal resultado foi produzido por incompetência, pois todos enfrentaram os mesmos dilemas. O veredito virá em 2022, quando a população revelará sua satisfação em relação ao BOZO (ou BOZO*).

(*) Economista