Relembrar é viver: a loucura do mercado nos anos 90
Existe uma bolha no mercado de ações americano? Nas últimas semanas mostrei que não basta olhar os juros baixos para justificar os preços das ações. É preciso admitir mudanças na associação histórica entre crescimento econômico, lucros das empresas e juro real e, principalmente, na preferência pelo risco dos investidores. É possível que isso tenha ocorrido, […]
Publicado em 10 de outubro de 2017 às, 09h57.
Existe uma bolha no mercado de ações americano?
Nas últimas semanas mostrei que não basta olhar os juros baixos para justificar os preços das ações. É preciso admitir mudanças na associação histórica entre crescimento econômico, lucros das empresas e juro real e, principalmente, na preferência pelo risco dos investidores. É possível que isso tenha ocorrido, mas, sem essas hipóteses, a bolsa está cara.
É recomendável, portanto, que os interessados em ações exerçam um pouco de cautela. Daí para concluir que uma correção seja iminente envolve dar um passo tão arriscado quanto partir do pressuposto que “agora será diferente”. Além das evidências de que as bolhas às vezes demoram a estourar, não é fácil encontrar histórias semelhantes às que surgiam aos borbotões durante o “boom” da internet na segunda metade dos anos 90.
Para refrescar a memória, compilei alguns casos que retratam bem a bolha de livro-texto que levou Alan Greenspan, então presidente do FED, a alertar no final de 1996 para a “exuberância irracional” dos mercados – quatro anos antes do juízo final. Se servirem de guia, as histórias abaixo sugerem que o fígado do mercado ainda poderá aguentar doses cavalares de cachaça.
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O prêmio de surrealismo vai à célebre aquisição da empresa Time Warner pela AOL por 164 bilhões de dólares, considerada um dos maiores fiascos da história dos negócios. No final da festa, quando mudanças tecnológicas e dificuldades de combinar culturas empresariais distintas evidenciaram o equívoco, o valor combinado das duas firmas encolheu para um sétimo do atribuído no instante da junção. A perda total corrigida para valores atuais superou 280 bilhões de dólares, mais do que o PIB de Portugal e de quase 80% dos países do mundo.
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Tudo mais é bobagem quando comparado a uma calamidade como esta. Ainda assim, há boas anedotas que ajudam a entender o astral do período. Uma das mais espetaculares foi relatada por Quentin Hardy, ex-editor de tecnologia do The New York Times e atualmente na Google.
Hardy conheceu um sujeito que tinha uma ideia supostamente interessante para fazer algo no campo das comunicações. O fulano contratou meia dúzia de gatos pingados e alugou o espaço de um outdoor gigantesco em São Francisco para anunciar a ideia.
O produto ainda não existia. Apesar disso, uma empresa decidiu comprar a startup por mais de 100 milhões de dólares pagáveis em ações. Até aí tudo bem – a “nova economia” produzia casos semelhantes. No entanto, os executivos da empresa compradora não se deram ao trabalho de fazer uma auditoria rigorosa. Entre outras coisas, desconheciam o fato de o produto ainda não existir – aparentemente gostaram do outdoor.
Nosso amigo precisaria trabalhar três anos para completar a transferência das ações. No terceiro dia de trabalho, é chamado pelos chefes: “veja, gostamos muito de você, mas não há espaço para acomodá-lo na diretoria. Receba as ações antecipadamente, faça bom proveito e boa sorte”.
Imediatamente ele pensa: “esses caras compram uma empresa por 100 milhões de dólares sem saber que não há ainda um produto e dispensam em três dias o indivíduo qualificado a resolver o problema. Obviamente eles não fazem a menor ideia do que se passa. Preciso vender as ações!”. Convicto do desastre anunciado, ele ainda comprou opções de venda com exercícios distantes.
Passam-se uns anos e a bolha estoura. O sujeito trabalhava noutra empresa e havia esquecido completamente da operação. Um belo dia recebe uma ligação do corretor: “o que você quer que eu faça com as opções que estão para expirar?”. As ações que ele vendera a 200 dólares valiam 2,50. Ao liquidar a posição embolsou a bagatela de 200 milhões de dólares.
Graças a um outdoor.
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Diversas empresas não davam lucro e tampouco tinham produtos. Elas eram avaliadas por critérios que poderiam indicar potencial de crescimento, como o número de cliques recebido, por exemplo. O céu era o limite sem o freio de uma análise fria de receitas e despesas. Durante a euforia, havia ações de empresas que eram negociadas com relação preço/lucro de 400. Com parâmetros da época, isso equivalia a uma expectativa de crescimento real de lucros de 7,5% ao ano eternamente. Era evidente que poucas empresas conseguiriam chegar perto dessa façanha, mas ninguém queria perder o bonde.
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Joe Fahmy, com um pouco mais de 20 anos na época, conta que usava a seguinte estratégia para surfar a onda. Às 10 da manhã ele mandava o operador comprar as três ações que estavam subindo mais no dia, não importando quais. Nessa altura, tipicamente cada papel já havia subido uns 3 dólares. Com as compras executadas, seguia para o trabalho. Quando voltava, às 15:30, vendia as ações com lucros entre 10 e 30 dólares. Fez isso por meses antes do estouro.
O administrador de recursos Barton Biggs, da Morgan Stanley, um dos que perceberam que havia algo podre no ar, mandou diversas cartas aos clientes reclamando de um encanador que não tinha tempo para arrumar um vazamento porque estava operando com ações. Daniel Kadlec, da revista Time, testemunhou o caixa de uma Deli folheando a Barron’s para as dicas da semana. Aproximadamente 5.000 pessoas abandonaram os empregos para se dedicarem a fazer day trades.
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Um amigo de Joe tinha em um posto intermediário em uma firma – era o sétimo da hierarquia. Ganhou uma opção de 100.000 ações quando foi contratado. Um dia antes do IPO da empresa, o intervalo de preço estipulado variava de 18 a 20 dólares. Na manhã seguinte, os limites foram elevados em 17 dólares. Na abertura do IPO, a ação bateu 270 dólares, alavancando o patrimônio do rapaz em mais de 20 milhões de dólares em dois dias. Com parte do dinheiro ele comprou uma casa de 3 milhões de dólares, que vendeu três semanas depois por 10 milhões!
Esse não foi um caso isolado. Nos quatro anos que antecederam o estouro houve mais de 450 IPOs por ano – normalmente o número é inferior a 100. Um dos mais badalados foi o de uma empresa chamada VA Linux, que montava equipamentos com o sistema operacional alternativo. No dia da oferta, em dezembro de 1999, a ação valorizou 733%! Mais de 20% dos IPOs de 1999 registraram ganhos de mais de 100% no primeiro dia.
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O valor corrigido da Microsoft, empresa consolidada na época, chegou a superar 850 bilhões de dólares, mais de 30 vezes a receita anual com vendas e menor do que o PIB de apenas 18 países. A Yahoo! comprou por 5,7 bilhões de dólares uma empresa de rádio online chamada Broadcast.com. Hoje, o endereço bilionário redireciona o internauta à homepage da compradora – faça o teste.
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Difícil expor a maluquice de forma tão precisa como no cartoon abaixo que apareceu em uma capa da revista The Economist, em novembro de 1997. A festa ainda duraria mais de dois anos.
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Na semana passada, a exuberância dos mercados voltou à capa da Economist. Com a cautela peculiar, o editorial lembrou que as coisas não parecem ser tão irracionais hoje como foram durante os 90. Se for para ficar preocupado apenas quando a doideira chegar ao ponto em que chegou naquela época há bastante chão a ser percorrido. Oxalá.