Quanto vale um “pouso forçado” na China?
Na semana passada, comentei o caráter macambúzio do consenso sobre o que deverá ser o crescimento da economia brasileira no ano que vem. De fato, 95% dos economistas projetam expansão mísera, entre 0,3% e 2,3%. É evidente que a hipótese de haver crescimento, mesmo que em ritmo baixo, deve ser comemorada frente à catástrofe que […]
Publicado em 31 de outubro de 2016 às, 12h04.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h49.
Na semana passada, comentei o caráter macambúzio do consenso sobre o que deverá ser o crescimento da economia brasileira no ano que vem. De fato, 95% dos economistas projetam expansão mísera, entre 0,3% e 2,3%. É evidente que a hipótese de haver crescimento, mesmo que em ritmo baixo, deve ser comemorada frente à catástrofe que estava se desenhando. Mas isso são águas passadas. Suplantado o sufoco, merecemos ser um pouco mais ambiciosos na rotulagem dos cenários econômicos. Não custa lembrar que a evidência sugere que a defasagem de retomada não deveria ser muito grande em recessões derivadas de perda de confiança na capacidade do governo, como foi o nosso caso.
Em tese, o país não enfrenta restrições severas para crescer no curto prazo desde o último dia de agosto. Diante da inegável melhora do ambiente econômico, ratificada por progresso extraordinário dos índices de confiança, cumpre perguntar por que os economistas permanecem tão cautelosos com o futuro em 2017, projetando para o Brasil pós-recessão um ritmo de crescimento que é a norma em países ricos? Por que as diferenças entre as projeções são tão insignificantes diante do potencial criado pela recessão, sem falar da incerteza que normalmente circunda as expectativas para o crescimento um ano à frente?
A resposta é que, apesar da melhora significativa da política econômica e da relativa tranquilidade do cenário global, há ainda perigos razoáveis no longo caminho que a economia brasileira terá que percorrer. Estes riscos são corretamente incorporados nas projeções, mas não necessariamente nas narrativas, criando para o leigo a falsa impressão de que há cenários “otimistas” e “pessimistas”, além do reconhecimento meio elementar de que o crescimento efetivo sempre pode surpreender um pouco para melhor ou para pior. Tenho conversado com diversos colegas que soam otimistas em suas histórias, mas que, por alguma razão, não traduzem o otimismo em projeções significativamente melhores para o desempenho da economia.
Há vários motivos para manter um pé atrás, ajudando a entender o caráter “pessimista” do cenário. Um deles é a situação extremamente delicada na China. O volume de crédito no país é duas vezes e meia maior do que o PIB, muito elevado para seu estado de desenvolvimento. A razão é semelhante em nações ricas como Reino Unido, Suíça e Estados Unidos. Mas, ao contrário do que se vê nesses países, o endividamento das empresas não financeiras chinesas equivale a 170% do PIB. No Reino Unido, Suíça e Estados Unidos as razões gravitam entre 70% e 90%.
O que mais assusta no caso chinês nem é tanto a fotografia, mas o filme. De 2002 a 2008, a relação crédito/PIB flutuou em torno de 150%, nível que pode ser considerado normal em economias emergentes. Após a crise financeira, o governo pisou fundo no acelerador, orientando os bancos a inundar com crédito empresas estatais que, apesar de não terem oportunidades produtivas de investimento, tornaram-se “viciadas em empréstimos”. Esta é a expressão usada recentemente pelo Professor Zhang Jun, da Universidade Fudan, em Xangai, para descrever o jogo insustentável. O investimento das empresas privadas tem se desacelerado consistentemente e, neste ano, a perspectiva é de algo próximo da estabilidade. É o que se espera diante de um quadro de queda de produtividade. O problema é que o governo não permite que o mesmo ajuste ocorra com as empresas públicas, contribuindo para o acúmulo da distorção.
O Banco de Compensações Internacionais (BIS) monitora um indicador com nome pouco sedutor: “hiato do crédito”. Trata-se grosso modo de uma medida que cresce rapidamente quando surgem indícios de que o crédito está se expandindo em ritmo descolado dos fundamentos econômicos. Por ter essa característica, o indicador serve como alerta para a possibilidade de crises bancárias. Em um mundo em que não existe barômetro livre de falhas para atender este propósito, o BIS demonstra rigorosamente que o hiato do crédito é possivelmente a melhor escolha segundo vários critérios (timing de antecedência, estabilidade, simplicidade e balanço adequado entre falhas de previsão e falsos positivos).
O Acordo de Basileia III sugere que o hiato do crédito seja usado como guia para a formação de amortecedores de capital anticíclicos para absorver o impacto de crises bancárias. Recomenda-se acender a luz amarela quando o hiato começa a gravitar em torno de 10. Este é o valor crítico que precedeu crises bancárias fortes como as que se abateram na Noruega (1990), Suécia (1991), Finlândia (1991), Japão (1992), México (1994) e EUA (2007). Atualmente, o hiato do crédito está em 30 na China, três vezes mais do que o limite que costuma antecipar turbulências.
O governo chinês reconhece o problema e tem aplicado em doses homeopáticas algumas medidas para reestruturar passivos e promover a troca de dívidas por ações. A reação tem se dado em ritmo bem inferior ao que seria necessário para enfrentar o problema, haja vista o fato de que a economia continua se expandindo de forma artificial, com base em motores que deveriam estar sendo gradualmente desligados. O coquetel é explosivo: economia com queda de produtividade, governo alimentando empresas zumbis com adrenalina creditícia, inadimplência crescendo. Uma economia de mercado já teria ido para o beleléu nessas condições. O caráter híbrido da economia chinesa permite empurrar a fatura com a barriga – mas não indefinidamente.
Com base nessa constatação, a Economist Intelligence Unit (EIU) já prevê um “pouso forçado” da China em 2018 (após o Congresso do Partido em 2017). Segundo a EIU, o PIB deverá crescer cerca de 4%, bem abaixo do que hoje é o consenso. Trata-se de algo tão assustador que a própria empresa se esquiva de dar consistência global ao próprio cenário, tratando a crise da China como se fosse algo isolado. No entanto, parece certo prever nova recessão mundial caso ocorra uma surpresa negativa desta magnitude na segunda maior economia. Talvez seja o gatilho para que os países que tenham condições adotem um ativismo fiscal mais agressivo, vai saber. Há males que vêm para o bem.
Para o caso de o limão não se transformar em limonada, fiz uma conta de padaria para estimar o impacto global de uma mudança súbita para pior do potencial de crescimento chinês. Se, a partir de 2018, a China passar a crescer 4% ao ano ao invés dos cerca de 6% projetados pela maioria, o PIB mundial deverá ser menor do que o esperado atualmente em 3,3 trilhões de dólares em 2021 – quase uma Alemanha. É apenas uma estimativa, é claro. Mas feita com o tipo de ferramenta usado mundo afora para aquilatar riscos como este. Se o cenário da EIU virar o consenso, investimentos que param de pé hoje deixarão de ser atrativos. Essa possibilidade compromete a perspectiva para a economia brasileira a despeito do esforço que tem sido envidado para corrigir nossos problemas domésticos.