Quanto um funcionário público precisa ganhar para ser feliz?
Renda de funcionários públicos é superior a média internacional de um “funcionário feliz”
Da Redação
Publicado em 19 de fevereiro de 2018 às 12h40.
Última atualização em 19 de fevereiro de 2018 às 13h00.
Como quantificar o nível de renda suficiente para satisfazer as aspirações das pessoas? A relação entre dinheiro e felicidade é um tema controverso que vem sendo analisado há bastante tempo. A maioria dos estudos baseados em avaliações subjetivas dos indivíduos sobre a vida revela a existência de uma associação direta entre renda e “felicidade”. No World Happinness Report, por exemplo, parte relevante da diferença entre as notas atribuídas ao bem-estar pelos habitantes de mais de 150 países pode ser explicada por diferenciais de renda. Dinheiro parece trazer felicidade.
No entanto, os estudos também mostram que o incremento de satisfação tende a ser decrescente na medida em que a renda do indivíduo aumenta. O benefício de ganhar R$ 100 adicionais é maior para quem vive com um salário mínimo do que para quem recebe dez vezes mais – isso é quase óbvio. De forma menos evidente, os dados revelam também que aumentos proporcionais da renda, digamos de 10%, geram efeitos maiores sobre a felicidade dos pobres do que dos ricos. Dinheiro em demasia perde paulatinamente a graça como tudo na vida.
Uma questão que não foi estudada apropriadamente diz respeito à possibilidade de haver um limite a partir do qual o dinheiro deixa de gerar mais felicidade. Um artigo publicado no mês passado na revista Nature Human Behaviour preencheu a lacuna (*). Usando a extensa base de dados da Gallup World Poll, com observações referentes a 1,7 milhões de habitantes de 164 países, os autores forneceram uma resposta precisa à questão, superando algumas limitações dos poucos trabalhos que até então tentaram atacá-la.
Os dados analisados sugerem a existência de um ponto de saturação. A partir dele, os indivíduos deixam de reportar maior felicidade com vida quando ganham mais. É claro que um cidadão “saciado” vibra ao ganhar na loteria, mas o efeito tende a ser efêmero e, com o tempo, a satisfação volta a ser a que era antes. Os dados mostram que o limiar varia entre as várias regiões e depende de variáveis como o nível de educação das pessoas. Apesar das disparidades, o aspecto mais interessante do estudo não foi confirmar a existência do limite, resultado que não chega a ser surpreendente, mas o fato dele ser bem mais baixo do que seria de se esperar a priori.
No agregado global, a satisfação com a vida deixa de crescer a partir de um poder de compra anual equivalente a US$ 95 mil para uma pessoa, US$ 135 mil para um casal e US$ 190 mil para uma família de quatro pessoas. Para obter valores equivalentes em reais é melhor multiplicar por dois do que pela taxa de câmbio porque um indivíduo que ganha R$ 2.000 no Brasil tem aproximadamente o mesmo padrão de vida de quem ganha US$ 1.000 nos EUA. Fazendo a conta e dividindo por 12 obtemos que a felicidade média mundial deixa de aumentar a partir de uma renda mensal ligeiramente inferior a R$ 16 mil. Na verdade, os dados analisados sugerem que ela pode até mesmo diminuir a partir desse ponto, talvez porque o sujeito tenha que sacrificar muito lazer para ganhar um pouco a mais.
Trata-se de achado importante que pode servir de subsídio para orientar as escolhas e aspirações dos indivíduos, balizar o desenho de pacotes de remuneração e benefícios em empresas, nortear políticas públicas voltadas à redistribuição da renda e a ajudar a sociedade a determinar a estrutura de remuneração dos funcionários públicos. Esse último tema está na crista da onda no Brasil na esteira do recente tititi em torno dos artifícios usados pelos servidores para tornar irrelevante a regra que estipula um teto para sua remuneração de R$ 33.700,00.
O valor encontrado para o ponto de “saciedade” global dá uma medida da generosidade de nossa Carta Magna, que estabelece como limite de remuneração do funcionalismo um valor que é mais do que o dobro do associado a indivíduos relativamente “felizes” mundo afora – não custa lembrar que a elite de nossos servidores desfruta de outros benefícios que potencializam as alegrias de uma renda elástica, como férias estendidas, estabilidade no emprego, parcas cobranças e aposentadoria precoce e privilegiada. Aposto que eles não veem a felicidade cair quando ganham muito porque, para eles, não há relação forte entre remuneração, esforço e risco.
Pode-se argumentar que os distintos têm nível educacional elevado e, portanto, aspirações que requerem remuneração maior do que a média. De fato, o estudo mostra que a fronteira de renda dos indivíduos mais ilustrados (mais de 16 anos de estudo) é cerca de 60% maior do que a de quem tem menos educação (até 8 anos). No entanto, isso tem que ser relativizado pelo fato de que as ambições na América Latina são substancialmente menores do que a média mundial – somos uma região relativamente pobre. Abaixo do Rio Grande, uma família de quatro pessoas costuma cruzar a fronteira da felicidade quando passa a ganhar aproximadamente R$ 12 mil por mês, quase um terço do teto estipulado para apenas uma pessoa no Brasil.
Não deixa de ser tranquilizador constatar que a Constituição determina um limite de remuneração alto, suficiente para garantir a felicidade de quem logra chegar aos primeiros escalões do funcionalismo, incluindo cônjuge e dois filhos – os quase 34 mil do teto são mais do que suficientes para satisfazer as ambições materiais de cidadãos letrados em boa parte do mundo, mesmo daqueles que não têm os inúmeros privilégios que só os funcionários públicos brasileiros têm. Por outro lado, é intrigante observar que, a despeito da generosidade da Carta Magna, a igrejinha do Judiciário e do Legislativo inventa subterfúgios marotos para burlar o princípio constitucional e ganhar um valor muito maior.
O texto constitucional é transparente como a água caribenha. Digite no Google a expressão “artigo 37, inciso XI” e veja com os próprios olhos. Não é preciso ser doutor para entender o que está escrito, capturar claramente o “espírito” da lei e depreender sem a menor sombra de dúvida o que estava na cabeça de quem elaborou o texto. Não há como não concluir que aqueles que ganham mais do que os R$ 33.700,00 estipulados no teto incluindo aí “vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza” afrontam a lei ou, se preferirem, roubam a viúva.
Difícil saber o que é pior: corruptos que enriquecem burlando a lei, mas que correm o risco de serem punidos ou um grupo de aproveitadores institucionalmente protegidos por leis criadas e julgadas por eles próprios em detrimento do erário? Além de custar caríssimo ao país, a malandragem dos penduricalhos ajuda a cristalizar a noção de que o Estado brasileiro serve aos “donos do poder”. Sabe-se que o país precisará arrecadar mais impostos no futuro para cobrir o rombo criado pelos desmandos do governo anterior. Como convencer os contribuintes do setor privado que trabalham boa parte do ano para pagar uma das cargas tributárias mais altas do planeta a carregar o piano diante desse escárnio dos “auxílios moradia”?
Quais serão os motivos que levam a elite do funcionalismo a praticar essa indecência coletiva que garante a si remuneração e benefícios significativamente superiores aos percebidos por cidadãos igualmente qualificados e em ocupações semelhantes no setor privado? Será que eles são mais gananciosos que a média, mas sem a coragem e o ímpeto para correr os riscos incorridos pelos que empreendem para enriquecer? Será que eles não estão nem aí e trilham o caminho fácil de legislar e julgar em causa própria porque no final do dia a sociedade aceita e, no íntimo, todos sonham com uma boquinha? Será que eles precisam ser especialmente premiados porque fornecem serviços excelentes à população? Será que eles são indivíduos mais inteligentes?
Os dados mostram que o teto de remuneração é mais do que generoso, sobretudo quando se leva em conta o nível de desenvolvimento do Brasil. Seria muito simples fazer a lei valer sem quaisquer exceções se quem decidisse fossem os que pagam a conta e não os que se abarrotam. Mais do que a economia de recursos em tempos de vacas magérrimas, a iniciativa seria importante para fazer com que os brasileiros voltem a respeitar as instituições públicas atualmente dominadas por parasitas de todas as espécies. Engana-se aquele que acha que esse dia chegará quando a página da Lava-Jato for virada.
(*) Andrew T. Jebb, Louis Tay, Ed Diener e Shigehiro Oishi (2018) “Happiness, income satiation and turning points around the world”, Nature Human Behaviour, v.2, pp. 33-38.
Como quantificar o nível de renda suficiente para satisfazer as aspirações das pessoas? A relação entre dinheiro e felicidade é um tema controverso que vem sendo analisado há bastante tempo. A maioria dos estudos baseados em avaliações subjetivas dos indivíduos sobre a vida revela a existência de uma associação direta entre renda e “felicidade”. No World Happinness Report, por exemplo, parte relevante da diferença entre as notas atribuídas ao bem-estar pelos habitantes de mais de 150 países pode ser explicada por diferenciais de renda. Dinheiro parece trazer felicidade.
No entanto, os estudos também mostram que o incremento de satisfação tende a ser decrescente na medida em que a renda do indivíduo aumenta. O benefício de ganhar R$ 100 adicionais é maior para quem vive com um salário mínimo do que para quem recebe dez vezes mais – isso é quase óbvio. De forma menos evidente, os dados revelam também que aumentos proporcionais da renda, digamos de 10%, geram efeitos maiores sobre a felicidade dos pobres do que dos ricos. Dinheiro em demasia perde paulatinamente a graça como tudo na vida.
Uma questão que não foi estudada apropriadamente diz respeito à possibilidade de haver um limite a partir do qual o dinheiro deixa de gerar mais felicidade. Um artigo publicado no mês passado na revista Nature Human Behaviour preencheu a lacuna (*). Usando a extensa base de dados da Gallup World Poll, com observações referentes a 1,7 milhões de habitantes de 164 países, os autores forneceram uma resposta precisa à questão, superando algumas limitações dos poucos trabalhos que até então tentaram atacá-la.
Os dados analisados sugerem a existência de um ponto de saturação. A partir dele, os indivíduos deixam de reportar maior felicidade com vida quando ganham mais. É claro que um cidadão “saciado” vibra ao ganhar na loteria, mas o efeito tende a ser efêmero e, com o tempo, a satisfação volta a ser a que era antes. Os dados mostram que o limiar varia entre as várias regiões e depende de variáveis como o nível de educação das pessoas. Apesar das disparidades, o aspecto mais interessante do estudo não foi confirmar a existência do limite, resultado que não chega a ser surpreendente, mas o fato dele ser bem mais baixo do que seria de se esperar a priori.
No agregado global, a satisfação com a vida deixa de crescer a partir de um poder de compra anual equivalente a US$ 95 mil para uma pessoa, US$ 135 mil para um casal e US$ 190 mil para uma família de quatro pessoas. Para obter valores equivalentes em reais é melhor multiplicar por dois do que pela taxa de câmbio porque um indivíduo que ganha R$ 2.000 no Brasil tem aproximadamente o mesmo padrão de vida de quem ganha US$ 1.000 nos EUA. Fazendo a conta e dividindo por 12 obtemos que a felicidade média mundial deixa de aumentar a partir de uma renda mensal ligeiramente inferior a R$ 16 mil. Na verdade, os dados analisados sugerem que ela pode até mesmo diminuir a partir desse ponto, talvez porque o sujeito tenha que sacrificar muito lazer para ganhar um pouco a mais.
Trata-se de achado importante que pode servir de subsídio para orientar as escolhas e aspirações dos indivíduos, balizar o desenho de pacotes de remuneração e benefícios em empresas, nortear políticas públicas voltadas à redistribuição da renda e a ajudar a sociedade a determinar a estrutura de remuneração dos funcionários públicos. Esse último tema está na crista da onda no Brasil na esteira do recente tititi em torno dos artifícios usados pelos servidores para tornar irrelevante a regra que estipula um teto para sua remuneração de R$ 33.700,00.
O valor encontrado para o ponto de “saciedade” global dá uma medida da generosidade de nossa Carta Magna, que estabelece como limite de remuneração do funcionalismo um valor que é mais do que o dobro do associado a indivíduos relativamente “felizes” mundo afora – não custa lembrar que a elite de nossos servidores desfruta de outros benefícios que potencializam as alegrias de uma renda elástica, como férias estendidas, estabilidade no emprego, parcas cobranças e aposentadoria precoce e privilegiada. Aposto que eles não veem a felicidade cair quando ganham muito porque, para eles, não há relação forte entre remuneração, esforço e risco.
Pode-se argumentar que os distintos têm nível educacional elevado e, portanto, aspirações que requerem remuneração maior do que a média. De fato, o estudo mostra que a fronteira de renda dos indivíduos mais ilustrados (mais de 16 anos de estudo) é cerca de 60% maior do que a de quem tem menos educação (até 8 anos). No entanto, isso tem que ser relativizado pelo fato de que as ambições na América Latina são substancialmente menores do que a média mundial – somos uma região relativamente pobre. Abaixo do Rio Grande, uma família de quatro pessoas costuma cruzar a fronteira da felicidade quando passa a ganhar aproximadamente R$ 12 mil por mês, quase um terço do teto estipulado para apenas uma pessoa no Brasil.
Não deixa de ser tranquilizador constatar que a Constituição determina um limite de remuneração alto, suficiente para garantir a felicidade de quem logra chegar aos primeiros escalões do funcionalismo, incluindo cônjuge e dois filhos – os quase 34 mil do teto são mais do que suficientes para satisfazer as ambições materiais de cidadãos letrados em boa parte do mundo, mesmo daqueles que não têm os inúmeros privilégios que só os funcionários públicos brasileiros têm. Por outro lado, é intrigante observar que, a despeito da generosidade da Carta Magna, a igrejinha do Judiciário e do Legislativo inventa subterfúgios marotos para burlar o princípio constitucional e ganhar um valor muito maior.
O texto constitucional é transparente como a água caribenha. Digite no Google a expressão “artigo 37, inciso XI” e veja com os próprios olhos. Não é preciso ser doutor para entender o que está escrito, capturar claramente o “espírito” da lei e depreender sem a menor sombra de dúvida o que estava na cabeça de quem elaborou o texto. Não há como não concluir que aqueles que ganham mais do que os R$ 33.700,00 estipulados no teto incluindo aí “vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza” afrontam a lei ou, se preferirem, roubam a viúva.
Difícil saber o que é pior: corruptos que enriquecem burlando a lei, mas que correm o risco de serem punidos ou um grupo de aproveitadores institucionalmente protegidos por leis criadas e julgadas por eles próprios em detrimento do erário? Além de custar caríssimo ao país, a malandragem dos penduricalhos ajuda a cristalizar a noção de que o Estado brasileiro serve aos “donos do poder”. Sabe-se que o país precisará arrecadar mais impostos no futuro para cobrir o rombo criado pelos desmandos do governo anterior. Como convencer os contribuintes do setor privado que trabalham boa parte do ano para pagar uma das cargas tributárias mais altas do planeta a carregar o piano diante desse escárnio dos “auxílios moradia”?
Quais serão os motivos que levam a elite do funcionalismo a praticar essa indecência coletiva que garante a si remuneração e benefícios significativamente superiores aos percebidos por cidadãos igualmente qualificados e em ocupações semelhantes no setor privado? Será que eles são mais gananciosos que a média, mas sem a coragem e o ímpeto para correr os riscos incorridos pelos que empreendem para enriquecer? Será que eles não estão nem aí e trilham o caminho fácil de legislar e julgar em causa própria porque no final do dia a sociedade aceita e, no íntimo, todos sonham com uma boquinha? Será que eles precisam ser especialmente premiados porque fornecem serviços excelentes à população? Será que eles são indivíduos mais inteligentes?
Os dados mostram que o teto de remuneração é mais do que generoso, sobretudo quando se leva em conta o nível de desenvolvimento do Brasil. Seria muito simples fazer a lei valer sem quaisquer exceções se quem decidisse fossem os que pagam a conta e não os que se abarrotam. Mais do que a economia de recursos em tempos de vacas magérrimas, a iniciativa seria importante para fazer com que os brasileiros voltem a respeitar as instituições públicas atualmente dominadas por parasitas de todas as espécies. Engana-se aquele que acha que esse dia chegará quando a página da Lava-Jato for virada.
(*) Andrew T. Jebb, Louis Tay, Ed Diener e Shigehiro Oishi (2018) “Happiness, income satiation and turning points around the world”, Nature Human Behaviour, v.2, pp. 33-38.