Exame.com
Continua após a publicidade

Quando tiraremos uma selfie com o Ministro da Fazenda?

O brasileiro só escapará de um cenário de baixo crescimento com inflação alta se aprender alguma coisa com os alemães, dizer não para os embusteiros e começar a admirar os burocratas insossos que usam a tesoura

C
Celso Toledo

Publicado em 2 de julho de 2018 às, 17h43.

Hans Eichel era Ministro da Fazenda quando o governo alemão encaminhou um conjunto de reformas estruturais em 2003 – a “Agenda 2010”. As medidas incluíam melhorias regulatórias, mudanças na legislação trabalhista e um ajuste fiscal rigoroso que, do lado das despesas, abrangia itens sensíveis como benefícios previdenciários e seguro desemprego. Após análise minuciosa para identificar tudo o que poderia ser cortado, Eichel limou EUR 15 bilhões com uma canetada, iniciando o ajuste que zeraria o déficit sufocante de cerca de 4% do PIB.

Enquanto os países ricos operam hoje no vermelho, com rombos que rumam para até 6% do PIB, como nos EUA, a Alemanha deverá anotar em 2018 um superávit fiscal de 1,5% do PIB. Nesse ritmo, levará a dívida pública em poucos anos para menos da metade da exibida pelos pares. Quando a “Agenda 2010” foi proposta, o desemprego alemão superava o de nações como França, Itália, Espanha e até mesmo Grécia. Atualmente é o quinto menor dentre os países desenvolvidos. No G7, ninguém tem perspectiva de crescer mais do que eles.

O sucesso em emplacar reformas modernizadoras custosas (e colher os frutos) não é tão surpreendente quanto a enorme admiração desfrutada por Eichel por ser a pessoa que começou a dizer não. Seu programa de austeridade era tão popular que políticos queriam posar a seu lado. É mais fácil um burro sair voando do que um brasileiro pedir para tirar uma foto ao lado do Meirelles. Por incrível que possa parecer, no entanto, os defensores do erário são celebridades na Alemanha porque os eleitores entendem a importância de ter as finanças em ordem para alcançar outros objetivos. Wolfgang Schaüble, que ocupava o posto quando as contas entraram no azul deixou o cargo como o membro mais popular do governo.

O hábito de poupar é uma obsessão nacional e ajuda a entender a facilidade com que os políticos germânicos conseguiram suporte para colocar a casa em ordem. O cacoete tem origem na fundação do país e é tema de uma exposição que estará no museu de história até o dia 26 de agosto chamada “Poupança: História de uma Virtude Alemã”. Os objetos expostos revelam que a frugalidade não surgiu apenas como motivação familiar inspirada em preceitos morais ou religiosos, mas também como resposta a chamados para ajudar o país. Parte relevante da infraestrutura alemã foi bancada com recursos economizados voluntariamente pela população.

O comedimento foi particularmente estimulado nos períodos de guerra, como mostra uma caixa para guardar moedas da época nazista decorado com os dizeres: “o destino da nação reside exclusivamente em nossa própria força”. Em meados do século 19, as escolas ensinavam as crianças a poupar e o costume segue até hoje. As casas de poupança patrocinam o ensino de noções financeiras básicas aos jovens. É curioso, mas a mania não diminuiu nem quando os episódios inflacionários violentos fizeram as economias pessoais evaporarem após as guerras – os traumas apenas reforçaram o viés anti-inflacionário da nação.

Existe populismo em toda parte porque o povão é susceptível a ser manipulado com mentiras, falácias e simplificações que soam verdadeiras porque mexem com suas predisposições e sentimentos. Os banqueiros aparecem rotineiramente como os vilões em fábulas inventadas no mundo inteiro. Na Alemanha, no entanto, as pessoas não gastam e não têm dívidas, obrigando os charlatães a verem o mundo através das lentes dos sovinas. A propaganda de Hitler, por exemplo, denunciava o “assalto ao poupador alemão” na República de Weimar, culpando “judeus, bancos e o capital financeiro” pela crise que dizimou suas economias. Esse viés pró-poupador permanece vivo. Os tabloides publicam análises sob o ponto de vista de quem guarda dinheiro, acusando o governo e os “especuladores” quando o juro cai. Como o povo é “rentista” e sobram fundos, não dá para explicar as agruras cotidianas porque os juros são altos. A saída, portanto, é inventar uma conspiração arquitetada para pagar juros baixos à população trabalhadora e aos velhinhos.

A sobriedade alemã não é bem vista fora do país, especialmente entre os povos que recentemente foram compelidos a colocar as finanças em dia como a Grécia, por exemplo. O dinheiro barato após a integração ao Euro permitiu aos helênicos embarcarem em uma orgia de gastos improdutivos e geração de déficits cavalares para bancar despesas correntes e privilégios. A conta chegou e hoje a Alemanha é vista por muita gente como a vilã insensível da história. Talvez o erro tenha sido mesmo aceitar um país esbanjador no clube, mas o busílis é que os gregos, como os brasileiros, odeiam custos, mas não abrem mão dos benefícios. A maioria repudia a austeridade, mas não abre mão do Euro. Nesse balé, o discurso radical eurocético acumula vitórias nas urnas ao mesmo tempo em que os Ministros da Fazenda são forçados a encarar a aritmética desagradável dos orçamentos limitados porque não imprimem a própria moeda.

A Grécia é um caso extremo, mas há países “normais” que têm dificuldade de compreender a disciplina alemã. Os americanos são doutrinados a consumir desde a nascença. Boa parte dos cidadãos não teve acesso a mecanismos de poupança até a primeira década do século 20. O país saiu vitorioso da Segunda Guerra e a onda de prosperidade que se seguiu fez com que o consumo e o crédito fossem estimulados como motores do crescimento econômico. Hoje o americano típico vive da mão para a boca – uma pesquisa recente do FED mostrou que 44% não têm dinheiro para pagar uma despesa inesperada que para nós seria equivalente a R$ 100,00. O jornalista Neal Gabler escreveu na edição de maio de 2016 da revista The Atlantic um artigo imperdível sobre os estresses do dia-a-dia do americano a partir da própria experiência – o texto deve parecer cômico para o leitor alemão. O vício consumista (e uma dose de analfabetismo financeiro) explica a propensão dos EUA a sofrer crises decorrentes de excesso de endividamento.

Como tudo que abunda acaba prejudicando, a verdade encontra-se no meio do caminho. Como se sabe, poupança e investimento são faces da mesma moeda. Do ponto de vista macroeconômico, só faz sentido sacrificar consumo e economizar se os recursos forem investidos (para o bolo crescer e o consumo ser maior no futuro). No entanto, os alemães tendem a poupar pensando em emergências e não para fazer o bolo crescer. Pesquisas mostram que para eles a segurança é um critério mais importante do que a taxa de retorno para decidir onde colocar dinheiro. Daí a enorme popularidade de alocações que não compensam nem as perdas decorrentes da inflação, como as cadernetas de poupança – bolsa nem pensar. O próprio Hans Eichel acha que o país poderia estar investindo um pouco mais, justificando em parte o mau humor de quem acusa o exagero da disciplina alemã.

Creio que seria bom para os alemães e para o mundo se eles ficassem um pouco mais parecidos com os americanos e vice-versa. Para nós, elevar a poupança nacional é uma questão de sobrevivência para evitar o caos em que se meteu a Grécia, a Argentina e, no limite, Venezuela. Consumir menos é o caminho para reduzir “a conta de juros” – o grande mal que para os populistas é culpa dos “especuladores”, mas, na verdade, é o resultado esperado de consumo além das possibilidades. A forma mais segura de aumentar a poupança nacional é apertar o cinto do governo para adequá-lo à realidade de um país emergente – algo que não tem nada a ver com defender o “estado mínimo”. O brasileiro só escapará de um cenário de baixo crescimento com inflação alta se aprender alguma coisa com os alemães, dizer não para os embusteiros e começar a admirar os burocratas insossos que usam a tesoura.