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Qual país lidou melhor com a crise até o momento?

Como todos os países foram submetidos à pandemia simultaneamente, temos um ótimo laboratório para analisar desempenhos e encontrar padrões no último ano

 (Mads Nissen/AFP)
(Mads Nissen/AFP)
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Celso Toledo

Publicado em 5 de abril de 2021 às, 18h01.

Última atualização em 5 de abril de 2021 às, 20h23.

1. A crise vista por cima

Análises comparativas são interessantes porque permitem separar o que funciona do que não funciona, produzindo lições que evitam a repetição de equívocos e ajudam a adivinhar o que vem pela frente. Como todos os países foram submetidos à pandemia simultaneamente e cada um lidou com o problema à sua maneira, temos um ótimo laboratório para confrontar desempenhos e encontrar padrões elucidativos no período de mais de 12 meses de crise.

É lógico que a experiência de cada país tem tipicidades e isso debilita o poder de comparações ligeiras. A região norte da Itália, por exemplo, foi atropelada no início de 2020 por um surto violentíssimo num momento em que ninguém dava muita importância à COVID-19. Os países diferem em desenvolvimento, aspectos culturais, hábitos, formas de governo, situações políticas e econômicas etc. É difícil imaginar japoneses fazendo baile funk no trem bala, certo?

Sem menosprezar as particularidades, a ideia é dar um primeiro passo, olhando todos os países ao mesmo tempo a partir de um prisma simplificado. Parto do princípio que é interessante observar concomitantemente mais de 100 experiências de enfrentamento de um problema que gerou a todos os mesmos dilemas. Por outro lado, é preciso interpretar as conclusões sabendo que o rolo compressor esmaga pormenores que podem ser relevantes.

2. As duas dimensões da crise: economia e saúde

Em face da difusão acelerada da COVID-19, pode-se dizer de forma bem geral que o objetivo dos governos foi zelar pelo bem-estar dos governados de duas formas: (i) evitando a proliferação da doença; e (ii) mitigando os impactos econômicos negativos produzidos pelas medidas de contenção. Ou seja, a crise teve desde o início duas dimensões que foram consideradas na escolha do rumo a ser seguido: a dimensão econômica e a dimensão sanitária.

Os resultados foram distintos porque cada governo atacou o dilema de forma particular. Não seria razoável, é claro, combater um dos males ignorando o outro. Pelo contrário, sabia-se que a guerra tinha duas frentes, mas, apesar da inseparabilidade, os pesos atribuídos às dimensões variaram. Sem entrar no mérito das justificativas empregadas, isso teve influência sobre as escolhas (políticas, comunicação, definição de prioridades etc.) e resultados.

Partindo dessa representação, construí um índice combinando dois indicadores referentes às dimensões da crise. Para capturar o âmbito econômico considerei o componente “varejo e recreação” dos índices de mobilidade divulgados diariamente pela Google. É verdade que mobilidade não é sinônimo de produção – essa seria a medida ideal, mas faltam dados. No entanto, análises como a que publiquei nesse espaço há um mês revelam que os vaivéns da mobilidade estiveram associados a algo entre 80% e 90% das oscilações cíclicas dos PIBs entre abril e dezembro de 2020. Essa associação diminuiu um pouco, mas segue relevante.

A dimensão sanitária é descrita pelo número acumulado de mortos por milhão de habitantes, pois, supostamente, as variações nesse indicador refletem diferenças de rigor no controle da pandemia. Manter as pessoas circulando teria como possível recompensa uma recessão menos profunda, mas a propagação do vírus impunha limites. Leniência nessa frente poderia levar o sistema de saúde ao colapso, provocando mortes em excesso às que ocorreriam naturalmente numa situação controlada. Era preciso “achatar” a curva, aceitando danos colaterais à economia.

3. Medindo o sucesso na gestão da crise: o índice BOZO

Cada governo tentou minimizar perdas nas duas dimensões seguindo visões próprias sobre a importância de cada face do dilema e o conjunto de ações à disposição. É lícito considerar que os países “bem-sucedidos” até o momento foram os que conseguiram controlar o número total de mortos com o menor impacto acumulado sobre a mobilidade. Sem analisar a qualidade das escolhas “ex ante”, apresento uma métrica para avaliar o sucesso “ex post”: o “Barômetro Objetivo do Zelo Oficial”, doravante BOZO.

O BOZO mede o sucesso na gestão da crise considerando as dimensões econômica e sanitária, medidas pelos indicadores listados na seção anterior. Detalho aqui os aspectos principais da montagem do índice. Creio que o texto é inteligível para qualquer leitor com conhecimentos rudimentares de matemática e acredito que as explicações sejam úteis para que o leitor aprecie o BOZO em sua plenitude, mas quem não for afeito a miudezas de cunho metodológico pode tranquilamente passar para a próxima seção.

O BOZO de cada país é a média ponderada da variação acumulada da mobilidade e do número total de mortes. A crise começou em janeiro na China, mas, infelizmente, não há dados de mobilidade para esse país. Sendo assim, a contabilidade tem início em fevereiro do ano passado. Imagino que a mobilidade seja medida sem erros. Já o número de mortos é passível de subnotificação e a qualidade das informações varia entre os países. Essa é uma possível frente de aperfeiçoamento do índice a partir, por exemplo, de dados sobre “mortes em excesso”.

A mobilidade é medida com base em janeiro de 2020. Por exemplo, um país com índice igual a ‑50 em fevereiro apresentou movimentação econômica equivalente à metade da observada em janeiro – o país ficou “devendo” 50%. Digamos que, em março, o índice tenha passado para -40. No acumulado de fevereiro até março, o componente do BOZO medirá -90, equivalente à “dívida” de 50 de fevereiro acrescida dos 40 de março. A ideia é ter uma medida da perda acumulada, tratando da mesma forma países que começaram em X e passaram para Y e vice-versa.

Após fazer as contas para todos os países, os índices são harmonizados de modo que a média de todo mundo seja igual a zero em cada mês. O objetivo é facilitar a comparação entre países a partir de uma escala padronizada: números abaixo de 1,0 em termos absolutos significam desvios moderados em relação à média. Números absolutos entre 1,0 e 2,0 significam desvios elevados. Números entre 2,0 e 3,0 significam desvios muito elevados e acima de 3,0 retratam aberrações em relação ao típico. Faço o mesmo para o número acumulado de mortes. No final, os dois componentes são agregados usando pesos que podem ser iguais ou diferentes.

Por exemplo, em julho de 2020, o índice acumulado de mobilidade da Bélgica foi -0,3. O número menor que zero significa que a movimentação acumulada dos belgas foi menor do que a média dos demais países (zero por definição). O valor absoluto entre zero e 1,0 significa que o desvio foi moderado. De fato, de acordo com o Google, a mobilidade média dos belgas entre fevereiro e julho foi 32% inferior à de janeiro. Esse desvio foi um pouco maior que o observado no mundo, de 28%. No mesmo mês, o índice de mortalidade da Bélgica cravou 4,4. Isso significa que seu saldo de mortes foi muito superior à média em julho de 2020. De fato, enquanto o país europeu contabilizou 850 mortos por milhão, a média dos demais foi de cerca de 100.

Para obter o BOZO é preciso combinar o índice de mobilidade (-0,3) e o índice de mortalidade (4,4). A ideia é construir um índice de zelo. Para isso precisei somar “benefícios” e subtrair “custos”, ou seja, a mobilidade entrou com sinal positivo e as mortes com sinal negativo. Assim, atribuindo pesos iguais, o BOZO para a Bélgica em julho de 2020 foi igual a -2,4 (metade de -0,3 menos a metade de 4,4). Usando a escala, o número (absoluto) entre 2,0 e 3,0 significa que a Bélgica estava muito pior do que a média dos demais países em julho, considerando o conjunto da obra entre economia e saúde, segundo a métrica BOZO. Se o governo não se importasse com o número de mortos, atribuindo peso zero à dimensão sanitária, o BOZO seria mais favorável, de ‑0,3, refletindo a mobilidade apenas um pouco inferior à média.

Mas o número de cadáveres foi tão discrepante do típico, mesmo em relação a países vizinhos que estavam apanhando feio na mesma época, como França e Holanda, que bastaria a atribuição de um peso pequeno, mas positivo, ao morticínio para neutralizar o benefício da mobilidade aumentada. A ideia do BOZO é justamente captar as duas frentes, punindo os países que foram muito mal em uma delas. É claro que os pesos são arbitrários, mas as conclusões se alteram pouco para variações em torno de 50% (60% - 40%, 70% - 30% etc.).

Encerrando a parte metodológica, é preciso explicar o critério usado para definir a amostra de países. Além da base de dados do Google, usei a compilação de informações da pandemia da página “Our World in Data” (OWID). Cortei os quatro países para os quais não havia dados de mobilidade para algum mês posterior a fevereiro de 2020. Considerei que o número de mortos em fevereiro foi igual a zero para todos os países para os quais o dado não constava da base do OWID. Para os países sem informações relativas a março, considerei metade dos valores de abril. Os dez países sem dados a partir de abril foram eliminados. No final, a amostra ficou com informações de 114 países. A consulta foi feita no dia 26 de março.

4. O BOZO em ação: desempenho entre fevereiro/20 e março/21

Inaugurando o BOZO, façamos uma análise comparativa dos casos de Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suécia. Como se sabe, a Suécia adotou uma política distinta do resto do mundo, preferindo orientar a população a tomar cuidados básicos, mas sem trancar a economia de forma agressiva como fizeram os demais países da região. Embora heterodoxa e, por isso, bombardeada pesadamente por gente de dentro e de fora do país, a escolha sueca parecia fazer algum sentido no início. Lembro-me de ter ficado bem impressionado ao ler uma entrevista do responsável pela decisão no Financial Times no início da pandemia. O entrevistado definitivamente não era um maluco cloroquinista, mas um técnico que fez uma escolha sabendo dos riscos. O argumento, que me pareceu defensável (e que se provou correto no futuro), era que a pandemia não seria uma corrida de 100m, mas uma maratona e, sendo assim, qualquer política teria que ser sustentável no tempo e, segundo ele, lockdowns não poderiam durar muito.

(Celso Toledo/Reprodução)

O BOZO sueco, em amarelo, no gráfico da esquerda, sugere que a escolha arriscada, ainda que defensável com as informações da época, mostrou-se equivocada com o passar dos meses até o presente momento. Supondo que suecos e pares meçam o sucesso atribuindo pesos iguais às perdas de mobilidade e de vidas, a figura revela BOZOs melhores para o grupo de controle em praticamente todo o período. O BOZO sueco bateu no fundo do poço em junho de 2020. Desde então houve melhora, mas a Suécia segue abaixo da média e os irmãos acima.

O gráfico do meio mostra os BOZOs caso os governos não se importassem com a mortalidade. Com essa métrica extremada, a Suécia parece ter ido tão bem quanto os pares, um pouco melhor no início da pandemia, quando o mundo se fechou e eles permaneceram abertos. Para comparar, o gráfico da direita mostra o outro extremo, se o peso da decisão estivesse apenas na mortalidade, não importando o custo econômico. Nesse caso, a Suécia perde de lavada. Ou seja, a decisão de deixar o vírus correr foi, até o presente momento, muito custosa em termos de mortes, sem benefícios evidentes em termos de mobilidade. O futuro dirá quem acertou, mas, por enquanto, o BOZO joga contra os suecos.

* * *

A próxima figura mostra os BOZOs agregados por continentes, tratando a América Central como América do Norte. Há três grupos. De um lado, os governos da Ásia, Oceania e África vêm apresentando desempenho significativamente melhor que os da Europa e América do Sul, que vão muito mal. A América do Norte corre no meio do caminho, próxima, mas abaixo da média. Atente-se para a situação dramática vivida por nossa região no final do ano passado, com o BOZO caindo para -1,5 (lembrando que números absolutos superiores a 1 significam desvios expressivos em relação à média global, conforme a seção 3).

Ásia, Oceania e África parecem surfar a crise de modo bem melhor que o resto, apresentando BOZOs melhorando com o passar do tempo. Essas regiões, sobretudo as duas primeiras, foram muito bem-sucedidas no controle da pandemia, apresentando saldos de mortos reduzidos. É possível mostrar, no entanto, que o bom desempenho na frente sanitária não se deu com prejuízo expressivo da frente econômica, especialmente em Oceania e África. Do outro lado, a experiência europeia mostra que o inverso foi verdadeiro. Os benefícios auferidos pela abertura das economias no verão de 2020 foram neutralizados pela agressividade da onda que se seguiu. Ou seja, a história até o momento sugere que controlar a pandemia deveria ser o objetivo prioritário para quem quisesse ter um bom BOZO. De outra forma, criticar as medidas de controle da pandemia é receita para piorar o BOZO.

BOZO: mobilidade e mortes com pesos iguais (Celso Toledo/Reprodução)

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Os 15 melhores BOZOs foram registrados tipicamente por países africanos e asiáticos pobres, com exceção de Japão e Taiwan, que são nações ricas que tiveram desempenho excelente. É interessante observar que a renda per capita mediana dos 15 piores é mais de seis vezes maior que a renda mediana dos 15 melhores. Trata-se de resultado pouco intuitivo que pode denotar algum problema com a notificação de mortes em países pobres. De qualquer forma, as experiências de Austrália, Dinamarca, Japão, Nova Zelândia, Noruega e Taiwan, que são ricos e produzem dados fidedignos, mostram que dinheiro e bom BOZO não são incompatíveis.

Os 15 piores BOZOs foram registrados tipicamente por países europeus e sul-americanos. Os três da lanterna são Bélgica, Itália e Espanha, mas a Itália foi particularmente prejudicada por ter sido o primeiro país a sofrer com a crise (o BOZO médio italiano foi -5.0 em fevereiro e março de 2020). O BOZO brasileiro está, infelizmente, entre os 15 piores, situando-se na 102º posição dentre 114 países, confirmando o padrão tupiniquim de se destacar em listas de conotação negativa. Mas nesse caso estamos acompanhados por Argentina, Colômbia, Chile e Peru. Os gráficos abaixo mostram a comparação do Brasil com os 15 melhores e 15 piores na escala BOZO e, fixando-se as amostras, os comparativos de mobilidade e mortes com peso de 100% para cada variável. Em comparação à média mundial, note-se que o Brasil não foi bem em mobilidade e particularmente mal na questão sanitária.

(Celso Toledo/Reprodução)

A última figura compara o BOZO brasileiro com as médias sul-americana e europeia. É interessante ver que nossa região desempenhou como um espelho da Europa e é preocupante ver que o Brasil parece apresentar tendência pior que o restante da América do Sul no período mais recente. Em resumo, não é agradável ter um dos piores BOZOs do mundo. Mais à frente veremos como a vacinação pode alterar o BOZO. Nem tudo está perdido.

BOZO: mobilidade e mortes com pesos iguais (Celso Toledo/Reprodução)