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Como a teoria dos trabalhos inúteis explica a greve dos caminhoneiros

A greve dos caminhoneiros é um excelente laboratório para entender as distorções do país e a dificuldade que o brasileiro tem de entender o papel do estado

COBRADORES DE ÔNIBUS: Para colunista, empregos inúteis existem porque a sociedade prefere um estado paquidérmico onipresente e paternalista / Caio Palazzo | VEJA (Caio Palazzo/VEJA)
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Da Redação

Publicado em 28 de maio de 2018 às 13h29.

Última atualização em 28 de maio de 2018 às 16h08.

O Financial Times publicou, há duas semanas, a resenha de um livro de David Graeber chamado “Bullshit Jobs”. Traduzindo livremente e de forma publicável o volume poderia ser chamado aqui de “Trabalhos Inúteis”. O autor enumera atividades de uma futilidade surreal, como a de um cidadão que precisou alugar um carro e dirigir 500 km para supervisionar a mudança de um computador entre dois pontos separados por poucos metros. Apesar do lado burlesco de absurdos como esse, Graeber chama atenção para a “violência psicológica” por trás da enorme perda de tempo – para ele, engendrada malevolamente para sustentar o status quo.

Graeber é um antropólogo anarquista americano que leciona na prestigiosa London School of Economics, tendo passado também pela Universidade de Yale . Ativista, foi uma das figuras centrais do movimento “Ocupy Wall Street”. Há quem atribua a ele a invenção do slogan “nós somos os 99%” cunhado para denunciar a desigualdade agravada pela crise financeira e pelos avanços tecnológicos. O livro é baseado em ensaio publicado em 2013 na revista radical chamada Strike!, que foi um sucesso instantâneo traduzido para vários idiomas em poucas semanas. Esse texto encontra-se disponível na página da revista.

Segundo Graeber, o progresso tecnológico deveria ter propiciado uma redução do número de horas trabalhadas, permitindo às pessoas perseguirem os próprios “projetos, prazeres, visões e ideias”. Afinal de contas, progredir é fazer mais com menos. Ao invés de liberar tempo, no entanto, o sistema preencheu-o com uma miríade de trabalhos dispensáveis. Para o antropólogo, a inutilidade não se limita aos casos mais óbvios e grotescos. Ele entende que boa parte dos empregos administrativos e serviços empresariais de forma geral são “bullshit”.

Diante da dificuldade de encontrar explicações econômicas para o quebra-cabeça, o intelectual buscou razões políticas e morais. Segundo Graeber, não interessa aos poderosos a existência de uma população feliz com tempo livre. Sendo assim, o sistema promove valores que incentivam as pessoas a trabalharem intensamente, associando o valor e merecimento do indivíduo ao trabalho. Como não é preciso muita energia para fazer o necessário, o tempo extra é preenchido com empregos sem sentido. Essa conspiração diabólica explica porque um sistema em tese desenhado para produzir eficiência gera tanto desperdício.

A repercussão das ideias de Graeber despertou o interesse da Economist que publicou uma crítica ao ensaio na versão impressa da revista. Motivou também institutos de pesquisa a saírem a campo para saber o que as pessoas acham de seus empregos. Em uma sondagem britânica, por exemplo, 37% dos entrevistados disseram que, para eles, seus trabalhos “não contribuíam de forma relevante para o mundo”. Fica então a pergunta: somos vítimas mesmo de um mecanismo cruel e desumano ou há outras formas de explicar a praga dos “bullshit jobs”?

Não é fácil digerir a ideia de que existe uma conspiração arquitetada pelos que estão no primeiro percentil para manter os 99% no cabresto. Conforme a resenha da Economist, se fosse verdade que a maioria dos empregos nas economias desenvolvidas existisse apenas para servir a um grande esquema, porque milhares são destruídos nas recessões? Não seria o caso de mantê-los para evitar protestos, greves e bagunças? Graeber não chega ao ponto de dizer que o jogo é literalmente combinado, é claro, mas essa indagação expõe uma fraqueza em dos pontos centrais de sua análise. A alternância de ciclos econômicos sugere que os empregos são criados e destruídos segundo outra lógica, a do mercado, em que as trocas ocorrem porque são vantajosas a ambas as partes.

O aumento geral da prosperidade desde a Revolução Industrial tem sido alcançado mediante elevação consistente da complexidade das economias. Na medida em que isso ocorre, manejá-las torna-se mais difícil. A forma mais eficiente de controlar emaranhados é quebrar os processos em tarefas simples, permitindo a especialização e facilitando o monitoramento. É verdade que muitos trabalhos são peças pequenas de uma engrenagem grande. Por isso parecem inúteis, mas não são. A necessidade de gerir cadeias produtivas globais complicadas é o principal motor da criação das diversas camadas administrativas e serviços empresariais. As bizarrices que decorrem dessa evolução são efeitos colaterais menos relevantes.

Além disso, é complicado separar de antemão o necessário do supérfluo. O próprio Graeber faz a objeção de forma simpática, questionando a relevância dos antropólogos. Não há uma medida objetiva do valor social de um emprego. Sendo assim, elaborar uma análise a partir da hipótese de que ontem eles tinham significado e hoje não é forçar um pouco a barra. Trabalho é um meio para atingir outros objetivos para compradores e vendedores em um mercado competitivo que, de forma geral, não comporta desperdícios. Não dá para saber o que as pessoas têm em mente quando avaliam a importância do que fazem para o mundo – quem paga o salário sabe o motivo.

Um ponto importante da discussão diz respeito à distribuição da renda na medida em que a tecnologia continue avançando. A economia de trabalho braçal deu origem aos trabalhos gerenciais. Daqui a pouco muitas tarefas de caráter administrativo serão também desempenhadas mais eficientemente pelas máquinas. Na verdade, isso está acontecendo rapidamente, como sugere a fala de Yuval Harari no encontro anual do Fórum Econômico Mundial deste ano, em que ele questiona se o futuro será humano – recomendo fortemente ouvir a exposição. Mantida a tendência atual, cedo ou tarde as economias avançadas terão mesmo que encontrar uma forma de redistribuir a renda e reduzir as jornadas de trabalho na linha sugerida por Graeber.

O ponto que mais nos interessa, no entanto, refere-se ao fenômeno dos “bullshit jobs” em economias que operam aquém da fronteira tecnológica, como nós. Os brasileiros não precisam ter uma visão radical sobre o mundo para reconhecer a existência de inúmeros empregos que, sem a menor sombra de dúvida, são absolutamente desnecessários. A função de ascensorista, por exemplo, além de indigna tem produtividade negativa, pois o cidadão que aperta os botões ocupa um lugar que poderia ser ocupado por um usuário. A sociedade como um todo se beneficiaria se o ascensorista recebesse o mesmo pagamento para fazer o que bem desejasse, mesmo que a opção fosse tomar uma cervejinha jogando Candy Crush. Alguns, quem sabe, poderiam empreender ou enveredar pelas ciências ou artes.

Graeber usa uma teoria conspiratória para explicar os empregos inúteis porque nas economias desenvolvidas o sistema é concebido para ser eficiente. No Brasil, a existência desses empregos pode ser explicada de forma mais simples. O ponto é que a economia aqui é montada para ser ineficiente e, nesse sentido, não funciona como um sistema capitalista. A abundância dos “bullshit jobs” no Brasil decorre da mentalidade que vê no governo a solução para todos os problemas, viés que origina um festival de intervenções no domínio econômico. A inutilidade é fruto da visão de que a produtividade interessa menos do que a existência dos empregos.

Um dos momentos mais inspiradores de nossa história recente foi alçar ao cargo de ministro da Ciência e Tecnologia um político contrário à adoção de inovações tecnológicas poupadoras de mão de obra. Segundo a doutrina da preferência do ministro e, vale dizer, da maioria dos brasileiros, a adoção de cartões que permitem que os ônibus operem sem cobradores é uma má ideia. A solução tupiniquim para o dilema dos cobradores foi aplicar a tecnologia sem eliminar a função. No dia em que os ônibus não precisarem mais de motoristas não tenho dúvida de que uma lei evitará a “destruição” desses empregos.

Nossos empregos inúteis existem porque a sociedade prefere um estado paquidérmico onipresente e paternalista, que equacione na marra os problemas econômicos como se eles não envolvessem dilemas. Aqui todos recebem um mimo do governo e todos são contra os privilégios dos outros. É daí que nascem as boquinhas no serviço público, a burocracia infernal, os cartórios e monopólios, as exigências custosas e absurdas, as organizações de classe e sindicatos que criam reservas de mercado para beneficiar associados, o viés contra as privatizações apesar de tantas evidências de ineficiência e corrupção e por aí vai.

O Brasil é um dos países com pior ambiente de negócios do mundo, como o Banco Mundial mostra a cada edição do “Doing Business”. O nosso desperdício resulta de imposições estúpidas que nós mesmos criamos. Só avançaremos se mudarmos a mentalidade e passar a ver o Estado sob outro prisma. Isso parece estar distante, como mostram as preferências eleitorais e os discursos dos candidatos. Vide a reação da população e do governo diante do imbróglio do setor de transportes. Que laboratório é melhor do que esse para entender as distorções do país e a dificuldade que o brasileiro tem de entender o papel do estado em uma economia de mercado?

A boa notícia é que nossos “bullshit jobs” não resultam de uma conspiração. Existem porque gostamos deles.

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O Financial Times publicou, há duas semanas, a resenha de um livro de David Graeber chamado “Bullshit Jobs”. Traduzindo livremente e de forma publicável o volume poderia ser chamado aqui de “Trabalhos Inúteis”. O autor enumera atividades de uma futilidade surreal, como a de um cidadão que precisou alugar um carro e dirigir 500 km para supervisionar a mudança de um computador entre dois pontos separados por poucos metros. Apesar do lado burlesco de absurdos como esse, Graeber chama atenção para a “violência psicológica” por trás da enorme perda de tempo – para ele, engendrada malevolamente para sustentar o status quo.

Graeber é um antropólogo anarquista americano que leciona na prestigiosa London School of Economics, tendo passado também pela Universidade de Yale . Ativista, foi uma das figuras centrais do movimento “Ocupy Wall Street”. Há quem atribua a ele a invenção do slogan “nós somos os 99%” cunhado para denunciar a desigualdade agravada pela crise financeira e pelos avanços tecnológicos. O livro é baseado em ensaio publicado em 2013 na revista radical chamada Strike!, que foi um sucesso instantâneo traduzido para vários idiomas em poucas semanas. Esse texto encontra-se disponível na página da revista.

Segundo Graeber, o progresso tecnológico deveria ter propiciado uma redução do número de horas trabalhadas, permitindo às pessoas perseguirem os próprios “projetos, prazeres, visões e ideias”. Afinal de contas, progredir é fazer mais com menos. Ao invés de liberar tempo, no entanto, o sistema preencheu-o com uma miríade de trabalhos dispensáveis. Para o antropólogo, a inutilidade não se limita aos casos mais óbvios e grotescos. Ele entende que boa parte dos empregos administrativos e serviços empresariais de forma geral são “bullshit”.

Diante da dificuldade de encontrar explicações econômicas para o quebra-cabeça, o intelectual buscou razões políticas e morais. Segundo Graeber, não interessa aos poderosos a existência de uma população feliz com tempo livre. Sendo assim, o sistema promove valores que incentivam as pessoas a trabalharem intensamente, associando o valor e merecimento do indivíduo ao trabalho. Como não é preciso muita energia para fazer o necessário, o tempo extra é preenchido com empregos sem sentido. Essa conspiração diabólica explica porque um sistema em tese desenhado para produzir eficiência gera tanto desperdício.

A repercussão das ideias de Graeber despertou o interesse da Economist que publicou uma crítica ao ensaio na versão impressa da revista. Motivou também institutos de pesquisa a saírem a campo para saber o que as pessoas acham de seus empregos. Em uma sondagem britânica, por exemplo, 37% dos entrevistados disseram que, para eles, seus trabalhos “não contribuíam de forma relevante para o mundo”. Fica então a pergunta: somos vítimas mesmo de um mecanismo cruel e desumano ou há outras formas de explicar a praga dos “bullshit jobs”?

Não é fácil digerir a ideia de que existe uma conspiração arquitetada pelos que estão no primeiro percentil para manter os 99% no cabresto. Conforme a resenha da Economist, se fosse verdade que a maioria dos empregos nas economias desenvolvidas existisse apenas para servir a um grande esquema, porque milhares são destruídos nas recessões? Não seria o caso de mantê-los para evitar protestos, greves e bagunças? Graeber não chega ao ponto de dizer que o jogo é literalmente combinado, é claro, mas essa indagação expõe uma fraqueza em dos pontos centrais de sua análise. A alternância de ciclos econômicos sugere que os empregos são criados e destruídos segundo outra lógica, a do mercado, em que as trocas ocorrem porque são vantajosas a ambas as partes.

O aumento geral da prosperidade desde a Revolução Industrial tem sido alcançado mediante elevação consistente da complexidade das economias. Na medida em que isso ocorre, manejá-las torna-se mais difícil. A forma mais eficiente de controlar emaranhados é quebrar os processos em tarefas simples, permitindo a especialização e facilitando o monitoramento. É verdade que muitos trabalhos são peças pequenas de uma engrenagem grande. Por isso parecem inúteis, mas não são. A necessidade de gerir cadeias produtivas globais complicadas é o principal motor da criação das diversas camadas administrativas e serviços empresariais. As bizarrices que decorrem dessa evolução são efeitos colaterais menos relevantes.

Além disso, é complicado separar de antemão o necessário do supérfluo. O próprio Graeber faz a objeção de forma simpática, questionando a relevância dos antropólogos. Não há uma medida objetiva do valor social de um emprego. Sendo assim, elaborar uma análise a partir da hipótese de que ontem eles tinham significado e hoje não é forçar um pouco a barra. Trabalho é um meio para atingir outros objetivos para compradores e vendedores em um mercado competitivo que, de forma geral, não comporta desperdícios. Não dá para saber o que as pessoas têm em mente quando avaliam a importância do que fazem para o mundo – quem paga o salário sabe o motivo.

Um ponto importante da discussão diz respeito à distribuição da renda na medida em que a tecnologia continue avançando. A economia de trabalho braçal deu origem aos trabalhos gerenciais. Daqui a pouco muitas tarefas de caráter administrativo serão também desempenhadas mais eficientemente pelas máquinas. Na verdade, isso está acontecendo rapidamente, como sugere a fala de Yuval Harari no encontro anual do Fórum Econômico Mundial deste ano, em que ele questiona se o futuro será humano – recomendo fortemente ouvir a exposição. Mantida a tendência atual, cedo ou tarde as economias avançadas terão mesmo que encontrar uma forma de redistribuir a renda e reduzir as jornadas de trabalho na linha sugerida por Graeber.

O ponto que mais nos interessa, no entanto, refere-se ao fenômeno dos “bullshit jobs” em economias que operam aquém da fronteira tecnológica, como nós. Os brasileiros não precisam ter uma visão radical sobre o mundo para reconhecer a existência de inúmeros empregos que, sem a menor sombra de dúvida, são absolutamente desnecessários. A função de ascensorista, por exemplo, além de indigna tem produtividade negativa, pois o cidadão que aperta os botões ocupa um lugar que poderia ser ocupado por um usuário. A sociedade como um todo se beneficiaria se o ascensorista recebesse o mesmo pagamento para fazer o que bem desejasse, mesmo que a opção fosse tomar uma cervejinha jogando Candy Crush. Alguns, quem sabe, poderiam empreender ou enveredar pelas ciências ou artes.

Graeber usa uma teoria conspiratória para explicar os empregos inúteis porque nas economias desenvolvidas o sistema é concebido para ser eficiente. No Brasil, a existência desses empregos pode ser explicada de forma mais simples. O ponto é que a economia aqui é montada para ser ineficiente e, nesse sentido, não funciona como um sistema capitalista. A abundância dos “bullshit jobs” no Brasil decorre da mentalidade que vê no governo a solução para todos os problemas, viés que origina um festival de intervenções no domínio econômico. A inutilidade é fruto da visão de que a produtividade interessa menos do que a existência dos empregos.

Um dos momentos mais inspiradores de nossa história recente foi alçar ao cargo de ministro da Ciência e Tecnologia um político contrário à adoção de inovações tecnológicas poupadoras de mão de obra. Segundo a doutrina da preferência do ministro e, vale dizer, da maioria dos brasileiros, a adoção de cartões que permitem que os ônibus operem sem cobradores é uma má ideia. A solução tupiniquim para o dilema dos cobradores foi aplicar a tecnologia sem eliminar a função. No dia em que os ônibus não precisarem mais de motoristas não tenho dúvida de que uma lei evitará a “destruição” desses empregos.

Nossos empregos inúteis existem porque a sociedade prefere um estado paquidérmico onipresente e paternalista, que equacione na marra os problemas econômicos como se eles não envolvessem dilemas. Aqui todos recebem um mimo do governo e todos são contra os privilégios dos outros. É daí que nascem as boquinhas no serviço público, a burocracia infernal, os cartórios e monopólios, as exigências custosas e absurdas, as organizações de classe e sindicatos que criam reservas de mercado para beneficiar associados, o viés contra as privatizações apesar de tantas evidências de ineficiência e corrupção e por aí vai.

O Brasil é um dos países com pior ambiente de negócios do mundo, como o Banco Mundial mostra a cada edição do “Doing Business”. O nosso desperdício resulta de imposições estúpidas que nós mesmos criamos. Só avançaremos se mudarmos a mentalidade e passar a ver o Estado sob outro prisma. Isso parece estar distante, como mostram as preferências eleitorais e os discursos dos candidatos. Vide a reação da população e do governo diante do imbróglio do setor de transportes. Que laboratório é melhor do que esse para entender as distorções do país e a dificuldade que o brasileiro tem de entender o papel do estado em uma economia de mercado?

A boa notícia é que nossos “bullshit jobs” não resultam de uma conspiração. Existem porque gostamos deles.

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