Os políticos mentem, mas dá para confiar no que o eleitor fala?
O eleitor é um sujeito que deve ser observado com cautela
Da Redação
Publicado em 19 de março de 2018 às 17h24.
A CNI divulgou recentemente os resultados de uma pesquisa intitulada “Retratos da Sociedade Brasileira – Perspectivas para as Eleições de 2018”. A ideia foi mergulhar na cabeça dos eleitores e colher dicas sobre a decisão que tomarão em outubro.
Segundo a pesquisa, apenas uma minoria está otimista. Menciona-se a corrupção, a desconfiança em relação aos candidatos e a falta de opções como as principais razões para um sentimento negativo ou, na melhor das hipóteses, neutro com relação ao processo eleitoral.
Apesar do desânimo, afirma-se que as propostas dos candidatos contam na decisão. No entanto, a pesquisa também revela que a opção “parecida com o eleitor” tende a receber uma parcela expressiva dos votos, mais da metade no grupo dos menos instruídos.
Partidos políticos valem quase nada. O eleitor busca na pessoa do candidato honestidade, seriedade, confiança e firmeza. O postulante também deve conhecer os problemas do país, entender de economia, ter boa formação e, de preferência, experiência política.
A vasta maioria deseja políticas com foco social, transparência e, pasmem, austeridade fiscal.
À primeira vista o retrato traz bons presságios. Revela um eleitor desanimado com a situação, mas consciente do que fazer para virar o jogo. Pensando um pouco mais, no entanto, não é trivial usar essas respostas para entender o perfil dos candidatos, as preferências reveladas nas pesquisas de intenção de voto e, muito menos, arriscar um palpite para o desfecho das eleições.
Como avaliar, por exemplo, a informação de que o eleitor quer um candidato que entenda de economia? Como se dá a escolha entre austeridade e gastos sociais? E se o candidato mais parecido com ele não tiver boa formação ou for desonesto?
A hipótese mais usual da teoria da escolha pública é tratar o voto como uma escolha “instrumental” em que a imagem do político conta pouco. A escolha entre X ou Y dependeria apenas das propostas de X ou Y e votar seria mais ou menos como escolher entre um sorvete de chocolate ou de morango.
Os filósofos Geoffrey Brennan e Loren Lomasky propuseram uma alternativa na obra prima “Democracy and Decision”. Para eles, os votos incluem de fato um componente associado ao valor intrínseco do que os candidatos prometem fazer, mas há também um fator “expressivo”.
Ao escolher uma bolsa que custa dezenas de cestas básicas, as moçoilas não estão apenas comprando um recipiente com alça. O artefato serve para isso, é claro, mas existe obviamente a pretensão de expressar alguma coisa para os demais, seja lá o que for.
Um exemplo ainda mais parecido com votações é a decisão de torcer por um time de futebol. Quando consolidei minha escolha pelo glorioso Palmeiras no final dos anos 70, naturalmente não nutria grandes expectativas com o elenco que incluía Benazzi e Darinta. Não obstante, o objetivo de agradar o padrinho fanático foi atendido. O custo da irracionalidade era baixo.
Não se trata de afirmar que as propostas objetivas dos políticos sejam irrelevantes, pelo contrário. O ponto é que elas contam mais como ferramentas para construção de imagens do que por seu efeito prático para o desenvolvimento da sociedade. É muito simples entender por que.
A probabilidade de um voto específico ser decisivo é praticamente nula. Sendo assim, o valor efetivo das propostas para cada eleitor é também quase zero, independentemente da importância que ele dá a elas. Dessa forma o voto adquire função majoritariamente “expressiva”.
Muitos britânicos votaram pelo “Brexit” apenas para protestar. Jill Stein, do partido verde norte-americano, entusiasmada com o resultado do plebiscito, escreveu que a decisão representou a “rejeição à elite política europeia e seu desprezo pelas pessoas comuns”. Ela não foi a única a festejar a escolha duvidosa só para marcar uma posição, esquecendo-se que os partidos verdes do Reino Unido eram favoráveis à permanência.
Trump ganhou pouco depois com discurso e estratégia parecida à usada pelos “brexiters”.
Há razão para supor que o eleitor brasileiro seja capaz de avaliar o que está em jogo melhor do que o britânico ou o americano, como sugere a imagem de eleitor “consciente” mostrada pela pesquisa da CNI? Ele sabe por que é contra as privatizações e a reforma da Previdência, por exemplo?
Algumas evidências inspiram cautela. Uma forma de comparar as “cabeças” dos povos é olhar a World Values Survey (WVS), a maior investigação sistemática não comercial de crenças e valores em quase 100 países.
Ser verde é uma escolha que tem implicações para o bem-estar e que cumpre também o objetivo de “mostra atitude”. Tem valores instrumental e expressivo. A última WVS pediu aos respondentes uma nota sobre a importância que dão à proteção do meio ambiente. O brasileiro está entre os mais preocupados, bem mais do que holandeses e alemães, por exemplo. Apenas 10 países reportaram ansiedade maior do que a nossa.
Uma forma de discernir se o cidadão fala sério ou faz tipo é analisar a disposição a pagar para ajudar o planeta. A WVS também perguntou se o respondente doou dinheiro a uma organização ecológica nos últimos dois anos, sem importar o valor – o que, em tese, diminui as possíveis distorções acarretadas pelas diferenças de renda entre os países.
A fatia de brasileiros que reportaram contribuições ambientais é bem inferior à mediana. A proporção de filipinos é quase três vezes maior, apesar da renda 50% menor. Os holandeses, que em tese se preocupam menos com o tema, estão entre os três povos em que mais gente doa dinheiro à causa ambiental. Dá para acreditar que somos mais “conscientes” que os holandeses?
O enigma vai além de questões específicas. A WVS pergunta se a pessoa preocupa-se em “fazer o bem para a sociedade”. O Brasil é uma das nações mais virtuosas do globo nesse quesito. Apenas os habitantes do Catar, Chipre, Colômbia, Gana, Haiti, Líbia e Uzbequistão preocupam-se mais com o bem comum do que nós. Entre os egoístas estão os Alemães, Australianos, Holandeses e Suecos. Se as respostas retratassem a verdade, precisaríamos urgentemente parar de nos preocupar com o próximo e com o meio ambiente para que as coisas começassem a melhorar.
Posso estar errado, mas esses dados sugerem que o brasileiro não pensa muito no que diz ou está mais preocupado em sair bem na foto do que em fazer o que deve ser feito – ou as duas coisas. Acho que respondemos pesquisas como as da CNI e da WVS de forma “correta” sem queimar a pestana e sem uma dose razoável de autocrítica.
Não dá, portanto, para levar a ferro e fogo uma sondagem em que o eleitor aparece como um sujeito que esmiúça as propostas e que valoriza a honestidade, boa formação e conhecimento dos candidatos – até porque é difícil separar o joio do trigo. Por isso, recebo com prudência análises dando conta de que candidatos moderados e minimamente razoáveis decolarão assim que a propaganda eleitoral tiver início – essa narrativa otimista é quase consensual entre colegas e participantes do mercado.
A CNI divulgou recentemente os resultados de uma pesquisa intitulada “Retratos da Sociedade Brasileira – Perspectivas para as Eleições de 2018”. A ideia foi mergulhar na cabeça dos eleitores e colher dicas sobre a decisão que tomarão em outubro.
Segundo a pesquisa, apenas uma minoria está otimista. Menciona-se a corrupção, a desconfiança em relação aos candidatos e a falta de opções como as principais razões para um sentimento negativo ou, na melhor das hipóteses, neutro com relação ao processo eleitoral.
Apesar do desânimo, afirma-se que as propostas dos candidatos contam na decisão. No entanto, a pesquisa também revela que a opção “parecida com o eleitor” tende a receber uma parcela expressiva dos votos, mais da metade no grupo dos menos instruídos.
Partidos políticos valem quase nada. O eleitor busca na pessoa do candidato honestidade, seriedade, confiança e firmeza. O postulante também deve conhecer os problemas do país, entender de economia, ter boa formação e, de preferência, experiência política.
A vasta maioria deseja políticas com foco social, transparência e, pasmem, austeridade fiscal.
À primeira vista o retrato traz bons presságios. Revela um eleitor desanimado com a situação, mas consciente do que fazer para virar o jogo. Pensando um pouco mais, no entanto, não é trivial usar essas respostas para entender o perfil dos candidatos, as preferências reveladas nas pesquisas de intenção de voto e, muito menos, arriscar um palpite para o desfecho das eleições.
Como avaliar, por exemplo, a informação de que o eleitor quer um candidato que entenda de economia? Como se dá a escolha entre austeridade e gastos sociais? E se o candidato mais parecido com ele não tiver boa formação ou for desonesto?
A hipótese mais usual da teoria da escolha pública é tratar o voto como uma escolha “instrumental” em que a imagem do político conta pouco. A escolha entre X ou Y dependeria apenas das propostas de X ou Y e votar seria mais ou menos como escolher entre um sorvete de chocolate ou de morango.
Os filósofos Geoffrey Brennan e Loren Lomasky propuseram uma alternativa na obra prima “Democracy and Decision”. Para eles, os votos incluem de fato um componente associado ao valor intrínseco do que os candidatos prometem fazer, mas há também um fator “expressivo”.
Ao escolher uma bolsa que custa dezenas de cestas básicas, as moçoilas não estão apenas comprando um recipiente com alça. O artefato serve para isso, é claro, mas existe obviamente a pretensão de expressar alguma coisa para os demais, seja lá o que for.
Um exemplo ainda mais parecido com votações é a decisão de torcer por um time de futebol. Quando consolidei minha escolha pelo glorioso Palmeiras no final dos anos 70, naturalmente não nutria grandes expectativas com o elenco que incluía Benazzi e Darinta. Não obstante, o objetivo de agradar o padrinho fanático foi atendido. O custo da irracionalidade era baixo.
Não se trata de afirmar que as propostas objetivas dos políticos sejam irrelevantes, pelo contrário. O ponto é que elas contam mais como ferramentas para construção de imagens do que por seu efeito prático para o desenvolvimento da sociedade. É muito simples entender por que.
A probabilidade de um voto específico ser decisivo é praticamente nula. Sendo assim, o valor efetivo das propostas para cada eleitor é também quase zero, independentemente da importância que ele dá a elas. Dessa forma o voto adquire função majoritariamente “expressiva”.
Muitos britânicos votaram pelo “Brexit” apenas para protestar. Jill Stein, do partido verde norte-americano, entusiasmada com o resultado do plebiscito, escreveu que a decisão representou a “rejeição à elite política europeia e seu desprezo pelas pessoas comuns”. Ela não foi a única a festejar a escolha duvidosa só para marcar uma posição, esquecendo-se que os partidos verdes do Reino Unido eram favoráveis à permanência.
Trump ganhou pouco depois com discurso e estratégia parecida à usada pelos “brexiters”.
Há razão para supor que o eleitor brasileiro seja capaz de avaliar o que está em jogo melhor do que o britânico ou o americano, como sugere a imagem de eleitor “consciente” mostrada pela pesquisa da CNI? Ele sabe por que é contra as privatizações e a reforma da Previdência, por exemplo?
Algumas evidências inspiram cautela. Uma forma de comparar as “cabeças” dos povos é olhar a World Values Survey (WVS), a maior investigação sistemática não comercial de crenças e valores em quase 100 países.
Ser verde é uma escolha que tem implicações para o bem-estar e que cumpre também o objetivo de “mostra atitude”. Tem valores instrumental e expressivo. A última WVS pediu aos respondentes uma nota sobre a importância que dão à proteção do meio ambiente. O brasileiro está entre os mais preocupados, bem mais do que holandeses e alemães, por exemplo. Apenas 10 países reportaram ansiedade maior do que a nossa.
Uma forma de discernir se o cidadão fala sério ou faz tipo é analisar a disposição a pagar para ajudar o planeta. A WVS também perguntou se o respondente doou dinheiro a uma organização ecológica nos últimos dois anos, sem importar o valor – o que, em tese, diminui as possíveis distorções acarretadas pelas diferenças de renda entre os países.
A fatia de brasileiros que reportaram contribuições ambientais é bem inferior à mediana. A proporção de filipinos é quase três vezes maior, apesar da renda 50% menor. Os holandeses, que em tese se preocupam menos com o tema, estão entre os três povos em que mais gente doa dinheiro à causa ambiental. Dá para acreditar que somos mais “conscientes” que os holandeses?
O enigma vai além de questões específicas. A WVS pergunta se a pessoa preocupa-se em “fazer o bem para a sociedade”. O Brasil é uma das nações mais virtuosas do globo nesse quesito. Apenas os habitantes do Catar, Chipre, Colômbia, Gana, Haiti, Líbia e Uzbequistão preocupam-se mais com o bem comum do que nós. Entre os egoístas estão os Alemães, Australianos, Holandeses e Suecos. Se as respostas retratassem a verdade, precisaríamos urgentemente parar de nos preocupar com o próximo e com o meio ambiente para que as coisas começassem a melhorar.
Posso estar errado, mas esses dados sugerem que o brasileiro não pensa muito no que diz ou está mais preocupado em sair bem na foto do que em fazer o que deve ser feito – ou as duas coisas. Acho que respondemos pesquisas como as da CNI e da WVS de forma “correta” sem queimar a pestana e sem uma dose razoável de autocrítica.
Não dá, portanto, para levar a ferro e fogo uma sondagem em que o eleitor aparece como um sujeito que esmiúça as propostas e que valoriza a honestidade, boa formação e conhecimento dos candidatos – até porque é difícil separar o joio do trigo. Por isso, recebo com prudência análises dando conta de que candidatos moderados e minimamente razoáveis decolarão assim que a propaganda eleitoral tiver início – essa narrativa otimista é quase consensual entre colegas e participantes do mercado.