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O quadro inflacionário é perigoso com ou sem dominância fiscal

Perspectivas para juros e inflação são fortemente influenciadas pela condução da política monetária no curto prazo

 (Getty Images)

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Celso Toledo
Celso Toledo

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Publicado em 27 de novembro de 2024 às 15h58.

Indisciplina fiscal termina em inflação. Foi assim no passado e será assim no futuro se o rumo não mudar – os preços de mercado sugerem que a luz passou do amarelo. Atualmente, o custo da dívida pública gira em torno de 13% ao ano. Para se financiar pelos próximos cinco anos, o Tesouro Nacional não tem opções baratas. Pode pagar os mesmos 13%, IPCA + 6,9% ou a própria taxa Selic, que, pelo andar da carruagem, superará 13% brevemente. Esses números embutem uma expectativa de inflação anual de 5,7%, quase o dobro da meta oficial de 3%.

As perspectivas para juros e inflação são fortemente influenciadas pela condução da política monetária no curto prazo. Por isso, é relevante também observar essas variáveis em horizontes mais longos. Por exemplo, a expectativa de inflação de “médio prazo”, correspondente a um trecho da curva de juros de três anos daqui a dois anos (aproximadamente entre 2027 e 2029), está atualmente em 5,6% ao ano, indicando que a percepção de risco inflacionário não é um problema circunstancial.

Historicamente, há um prêmio entre as expectativas de inflação embutidas nos preços de títulos públicos e a meta oficial. Entre 2010 e 2020, a inflação esperada de médio prazo caiu de cerca de 5,7% para 4,3% ao ano, acompanhando a redução da meta no período. O prêmio manteve-se relativamente estável, em torno de 1,3 ponto percentual.

Isso mostra que, durante essa década, o mercado confiou no compromisso do governo de reduzir a inflação, ajustando expectativas conforme a meta evoluía. Aplicando o padrão de 2010-2020, a inflação esperada para o médio prazo deveria ser de 4,3% (3% + 1,3 p.p.). Contudo, a projeção de 5,6% indica uma desancoragem substancial nos últimos anos.

A deterioração começou em 2021, com a esculhambação que marcou o ano eleitoral e teve como ápice o calote dos precatórios. Em 2022 e 2023, o prêmio superou 3 p.p., estabilizando-se recentemente em torno de 2,5 p.p. Parece pouco, mas não é. Com a meta de inflação em 3%, o Tesouro precisa pagar 13% para vender títulos prefixados, indicando um juro real de 10%. É um absurdo.

Esse patamar evidentemente reflete uma descrença generalizada no cumprimento da meta. A falta de confiança não decorre de má vontade, mas do entendimento de que, sem disciplina fiscal, o Banco Central não conseguirá cumprir seu papel, mesmo com independência operacional. No curto prazo, a inflação é influenciada pela demanda agregada, que o BC pode moderar subindo o juro. No médio prazo, porém, o problema é eminentemente fiscal – no limite, se não houver confiança na capacidade de equilibrar as contas, a política monetária perderá a eficácia.

O histórico brasileiro corrobora essa visão: a crise inflacionária anterior ao Plano Real foi alimentada por uma gestão fiscal irresponsável, marcada por orçamentos irrealistas, receitas infladas e despesas subestimadas. A inflação alta e acelerada permitia a execução do orçamento fantasioso, pois a arrecadação crescia ao ritmo da inflação enquanto as despesas eram reprimidas “na boca do caixa”.

A indisciplina fiscal produz inflação de várias formas. A alta dos preços corrói o valor da moeda, funcionando como um imposto em que a alíquota é a inflação e a base tributável é o dinheiro em circulação. Quando o governo exagera na inflação, o público reage evitando a moeda. Antes do Real, o Brasil mantinha menos de 2% do PIB em dinheiro ou depósitos, comparado a cerca de 20% nos EUA na mesma época. O imposto inflacionário é a alternativa para um governo que esgota a capacidade de arrecadar outros tributos e não consegue reduzir gastos. Porém, a perda crescente de confiança na moeda força a intensificação do uso da impressora, exacerbando a inflação em um ciclo vicioso.

Embora a situação atual esteja longe desse passado, há sinais preocupantes. O governo enfrenta dificuldades para elevar a tributação – o Brasil já tem carga tributária muito maior do que a referência de países emergentes ou da América Latina. Além disso, o orçamento é dominado por despesas obrigatórias, tornando infactível esperar que o ajuste recaia sobre a parcela discricionária. Sem um plano consistente de corte de despesas “na carne”, o público naturalmente antecipa mais inflação.

Por exemplo, o dólar passou a custar cerca de R$ 0,50 acima do que seria esperado, considerando o desempenho de outras moedas emergentes, quando a falta de disposição de enfrentar o desafio fiscal se tornou mais evidente. Nos últimos três meses, a variação dos componentes do IPCA sensíveis ao câmbio foi de 7% ao ano. Após a vitória de Trump, quem imaginava que o câmbio depreciado era algo passageiro reavaliou o cenário. Ou seja, tem mais pela frente.

A alternativa é aumentar o endividamento, mas a indisciplina fiscal crônica, sem um plano de ajuste que pare de pé, tende a confundir as fronteiras entre as formas de financiar o déficit. Nos anos de inflação elevada, o Tesouro recorria a títulos de curtíssimo prazo, com liquidez garantida e automática, que funcionavam como "quase-moedas", produzindo os efeitos inflacionários da monetização. Mais uma vez, estamos distantes dessa realidade, mas isso não significa que não haja um limite ao endividamento.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta que a dívida bruta do Brasil pode alcançar quase 100% do PIB em cinco anos — 20 pontos acima da média de países emergentes e 40 pontos acima da média da América Latina. Para estabilizar a dívida em relação ao PIB, o governo precisa gerar um superávit primário equivalente à diferença entre o juro real e o crescimento econômico. Sendo generoso, supondo crescimento potencial de 3% ao ano e juros reais de 5%, seria necessário economizar 2% do PIB — cerca de R$ 250 bilhões — para evitar que a dívida cresça.

Esse é o maior desafio macroeconômico do país, especialmente num cenário de alta de taxas de juros globais. Apesar disso, o Ministério da Fazenda enfrenta dificuldades para apresentar um plano detalhado para zerar o déficit daqui dois anos – hoje algo a ser comemorado, por incrível que pareça. A ironia é que a aritmética acima melhoraria substancialmente se houvesse um plano fiscal crível. Por exemplo, o juro prefixado de 5 anos chegou a 6% no final de 2019, quando se acreditou na fábula do Teto de Gastos. 

Um regime de dominância fiscal ocorre quando a eficácia da política monetária é comprometida pela má gestão das contas públicas. Embora o presidente do BC tenha afirmado que o Brasil não chegou a esse ponto, o simples fato de precisar abordar o tema já é motivo de preocupação. Esperemos que o corte de gastos não seja mais um parto da montanha. O mercado, por ora, ainda concede o benefício da dúvida. Salvo um tropeço muito grande, a poeira deve baixar depois do anúncio.

A bem da verdade, se pudéssemos ter certeza de que a inflação média dos próximos anos ficaria abaixo de 6%, nem seria tão ruim assim. O problema é que a experiência dos anos 1980 e 1990 mostra que a inflação crônica não surge da noite para o dia – nasce da mesma complacência que se vê atualmente. Quando o assunto é inflação em um país com o histórico do Brasil, não existe o meio do caminho. Ou Brasília persegue com determinação o caminho da sustentabilidade fiscal, ou o cenário embutido nos preços dos títulos se tornará otimista em pouco tempo.

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