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O pior da crise econômica ficou para trás?

Se o tombo provocado pela covid-19 foi brutal e instantâneo, a recuperação também impressiona pelo vigor

Crise da covid-19: Nunca nesses 30 anos o pânico foi tão elevado quanto no último dia 20 de março (Aly Song/Reuters)
CC

Clara Cerioni

Publicado em 5 de julho de 2020 às 10h07.

Última atualização em 5 de julho de 2020 às 13h16.

A julgar pelo desempenho dos mercados financeiros a resposta é sim. Computei a média de 30 indicadores globais diários que medem a força, abrangência e volatilidade dos movimentos das bolsas, demanda por proteção (derivativos e ativos seguros) e prêmios de risco embutidos em créditos de várias qualidades, desde 1990. Acredito que assim dá para resumir em um número, de forma naturalmente tosca, as faces múltiplas da cobiça e do medo.

Nunca nesses 30 anos o pânico foi tão elevado quanto no último dia 20 de março. Além de profunda, a queda foi vertiginosa – a jornada do céu ao inferno se deu em um mês. A bolsa americana havia batido o recorde histórico no final de fevereiro. Convenhamos, é mais fácil digerir crises quando dá tempo de ver o gato no telhado. Em 2008, por exemplo, o ar cheirou enxofre por, pelo menos, um ano antes do fundo do poço.

Se o tombo provocado pela covid-19 foi brutal e instantâneo, a recuperação também impressiona pelo vigor. Faz três semanas que a propensão ao risco se encontra próxima da zona de neutralidade. Na verdade, encostou o dedinho do outro lado do rio entre os dias 5 e 30 de junho, mas, curiosamente, retornou em julho à margem do medo, apesar do bom desempenho das bolsas. Mas isso é detalhe. O rali de alta do índice S&P 500 é o mais vistoso da história.

As sondagens de confiança dos agentes econômicos, que em tese também olham para frente, têm exibido recuperação robusta no mundo inteiro. Após cair em abril para a metade do que se viu no final de 2019, a fé dos setores industrial e de serviços retornou com força em junho. A julgar pelos dados conhecidos, a ferida ainda não estaria totalmente cicatrizada, mas o hiato em relação ao período anterior à crise encontra-se bem abaixo dos 50% de abril – calculo algo na casa dos 90%. Na China, o otimismo voou para o maior patamar desde 2016.

Tudo isso é positivo, mas dá para declarar vitória? Sei não. A incerteza produzida pela crise é gigantesca. Uma medida de ignorância derivada a partir de palavras funestas em textos jornalísticos bateu recentemente o recorde, registrando patamar duas vezes maior que o observado na Crise Financeira. A dispersão de projeções de crescimento da economia americana para o curto prazo, que pode também ser considerado um termômetro da perplexidade geral, encontra-se quase 2,5 vezes acima da máxima observada desde o final dos anos 60 (!).

A incerteza desmesurada resulta de vários fatores, a começar pela dificuldade de estimar decentemente o tamanho do estrago que já se materializou. O FMI revisou há poucos dias a expectativa de crescimento do PIB global em 2020 de -3,0% para -4,9%, pois foi surpreendido negativamente pelas informações desveladas desde abril. É como se o Fundo tivesse apagado do cenário anterior, num piscar de olhos, a produção da Rússia – a quinta maior economia do mundo. Diga-se, o desvio não foi fruto de incompetência. Eles fazem o possível, mas está difícil.

O pior é que a nova projeção pode também se revelar otimista. Atividade econômica e mobilidade passaram a andar lado a lado após a imposição de medidas de distanciamento. As variações das métricas produzidas diariamente por Apple e Google, além do indicador de rigor compilado pela Universidade de Oxford, explicam três quartos da variabilidade do crescimento no primeiro trimestre em uma amostra de 45 países (um pouco mais de 70% do PIB global). Ou seja, o fator de produção mais relevante nessa era de isolamento é a capacidade de ir de A a B.

Se a relação entre crescimento e mobilidade tiver se mantido, calculo que o produto mundial de bens e serviços tenha se contraído algo entre 7% e 8% entre abril e junho. As informações parciais divulgadas após a abertura gradual das economias sugerem que a retomada no terceiro trimestre será rápida. Ainda assim, é preciso imaginar que o PIB global cresça 10% de julho a dezembro para que a projeção do FMI esteja certa. Não vai ser fácil.

Se der isso, o mundo fechará 2020 produzindo entre 2% e 3% abaixo do nível do ano passado, configurando-se uma bela retomada em formato de V, de Vitória. É possível que seja mesmo assim, pois, ainda que o barômetro de rigor de Oxford tenha diminuído apenas um tiquinho em junho, os números da Apple e Google revelam movimentação mais ou menos duas vezes mais intensa do que a observada em abril – quando os países virtualmente hibernaram.

Não é loucura, portanto, nutrir certo otimismo. Não há dúvida que é saudável. Entretanto, infelizmente, não dá para saber com o mínimo de segurança se é torcida ou não. Daí a dispersão descomunal de projeções. Queiramos ou não, o horizonte está mais nebuloso que o normal.

O problema sanitário segue sendo a fonte primordial de ambiguidade. Há esperança com relação ao surgimento de uma vacina nos próximos meses, mas enquanto ela não vier o bicho corre solto na esteira da mobilidade aumentada. Dada a distribuição de óbitos por faixa etária e uma estimativa da taxa de fatalidade da doença feita a partir da experiência italiana, o Brasil poderia ter atualmente algo entre 5% e 20% da população infectada – de 10 a 40 milhões de indivíduos (para detalhes, veja texto que publiquei aqui em 25 de maio).

Há controvérsia sobre a proporção de infectados que traria imunidade à população. Talvez esse número seja bem menor do que os 60% inicialmente estimados, pois há evidências de que determinados indivíduos possam ser resistentes mesmo sem exibir anticorpos (procure um trabalho fresquinho de Marcus Buggert, do Karolinska Institutet, no Google). O fato de o Brasil poder, potencialmente, ter já 20% da população imunizada pode ser uma boa ou uma má notícia do ponto de vista epidemiológico e, naturalmente, econômico. Não dá para saber.

Se 20% for pouco, o relaxamento crescente pode prenunciar uma retomada perigosa das infecções e problemas sanitários à frente. Caso contrário, o risco de colapso do sistema estaria controlado e daqui em diante a economia só melhoraria. A única certeza é que a capacidade de manter o distanciamento tem diminuído, aqui e no mundo. O futuro dirá se o rebanho caminha ou não ao precipício. Visto de hoje, mesmo que haja base para otimismo – e há – é preciso manter um pé atrás. Se der zebra, as consequências serão cataclísmicas.

As dúvidas não se limitam ao campo epidemiológico. Os estímulos econômicos aplicados mundo afora tornam os esforços empenhados em 2008/09 uma brincadeira de criança. Tinha que ser assim mesmo. A pandemia originou uma daquelas crises que exigem respostas contundentes, como se não houvesse futuro. Alan Blinder foi feliz ao lembrar, em artigo no Wall Street Journal, a doutrina de Scarlet O’Hara, na inesquecível cena final de E o Vento Levou, em que ela dispara algo como “não vou pensar nisso agora. Penso amanhã”. É por aí, mas o amanhã está chegando. Quem é capaz de estimar os efeitos colaterais da extravagância monetária e fiscal em escala global? Se souberem, favor encaminhar ao meu e-mail.

Desconfio que o risco de haver, por exemplo, surpresa inflacionária seja de fato desprezível no curto prazo, conforme o pensamento da maioria absoluta de meus colegas. E no médio prazo? É verdade que a história dos últimos anos recomenda repensar um pouco a ideia de que a inflação seria um “fenômeno monetário”. De fato, as diferenças entre moeda e dívida já não são tão claras. Se a turma está topando receber menos do que empresta aos governos, o que fazer? Tem que se endividar loucamente, não? Mas quanto tempo o sonho durará?

Pena que a saudosa Mãe Dinah esteja já nos aguardando na quarta dimensão. Na falta dessa fonte infinita de sabedoria, não conheço quem saiba onde está o limite da predisposição dos mercados a financiar governos a juros baixíssimos ou negativos. Afirmações nesse campo são apostas, que podem ser feitas com mais ou menos cara de pau. A regra é: desconfie. Especialmente em casos de países com situação fiscal problemática como aqui. Não se trata de dizer que o Brasil tenha quebrado. Isso é bobagem. A dívida líquida – o conceito relevante – é administrável e em reais. Vai que o governo acorde e as reformas avancem? O problema acaba.

Mas não precisa muito para o angu desandar. Se, por qualquer razão, surgirem dúvidas de que as contas não fecham aos parâmetros vigentes, os juros podem subir um pouquinho. Esse pouquinho pode fazer muita diferença, pois a dívida, ainda que administrável, é grande. Se o governo tentar segurar na marra, pode perder mais poupadores dispostos a bancar o passivo. E aí? Esse é um filme que já vimos e o drama é que, por definição, não dá para antecipar a fagulha – a calmaria vigente não diz nada sobre o futuro. Como o possível apocalipse derivado do colapso do sistema estelar WR-104, a faísca pode ocorrer daqui seis meses ou 100 mil anos. Se e quando vier, não será uma fogueira fácil de apagar. Na dúvida é bom estar preparado.

Sinto alguma firmeza em palpitar que a tragédia não parece ser o cenário mais provável. Mesmo assim, suspeito que os preços descontem demasiadamente a alternativa – afinal, o produto de algo pequeno por algo grande pode ser também grande. O passado não necessariamente é um bom guia após a COVID-19. Não importa se não sabemos mais discernir entre moeda e títulos. A saúde da economia se resume à confiança de que tudo vai dar certo. É um “estado de espírito” como disse, salvo engano, o professor Delfim Netto. Se ela for para o espaço, o resto vai junto.

Outra fonte de incerteza diz respeito às mudanças permanentes mascaradas pelos estímulos. É preciso proteger a renda de todos, mas o que fazer com a oferta de bens e serviços cuja demanda pode ter mudado? Não dá para manter a economia respirando artificialmente de forma indefinida. É lógico que os aviões, hotéis, restaurantes por quilo, bares, estádios e escritórios voltarão a ser usados. Mas quanto? Os “recursos produtivos” estão aí, mas a transição para o novo equilíbrio pode ser dolorosa. O FMI chuta que no final de 2020 estaremos apenas 2% ou 3% piores do que no final do ano passado. É razoável?

Por fim, há as interações entre economia e política. Estamos na fase da anestesia, em que até os liberais ferrenhos pensam duas vezes antes de perguntar como a conta será paga. A LCA calcula que a massa de rendimentos pode ter crescido (!) no Brasil em 2020 – de onde você acha que vem a popularidade do “mito” entre os mais pobres? A esperança é que os estímulos tenham sido suficientemente fortes para que, quando forem retirados, não haja ressaca. O papel aceita tudo. Mas dá para garantir que a coisa tenha sido bem calibrada? Não houve exagero? Descontrole? Nossa história sugere que é fácil obter o consenso na hora de gastar, mas muito difícil na hora de poupar. A pauta de bondades no Senado é surreal. Quem vai segurar a boiada na hora do aperto?

Não me parece inverossímil imaginar uma situação em que a pandemia continue incomodando a ponto de manter as pessoas ressabiadas por um bom tempo. Os estímulos diminuem, porque têm que diminuir, explicitando um buraco que parecia menor enquanto o dinheiro era distribuído a rodo. Brasília começa a discutir como pagar o papagaio e descobre que os lobbies se armaram contra eventuais facadas. A conta não fecha mordendo apenas as “grandes fortunas”, seja lá o que for isso. Enquanto os debates se desdobram, a popularidade do governo cai e a confiança vai junto. Aí vem o canto da sereia: mantenham-se os estímulos, por que não? Pois é.

Não há registro recente de incerteza tão elevada como agora. Tudo pode acontecer. Pode dar certo, mas também pode dar errado, e muito. É simples contar uma história para embasar o otimismo dos mercados. É tolice dizer que eles estejam malucos, pois os exageros fazem parte do jogo, sobretudo quando o dinheiro é grátis. O sinal das bolsas em alta deve ser comemorado. Ninguém blefa com dinheiro. Ótimo que os ventos estejam soprando a favor e, oxalá, a farra na virada do ano seja tão exuberante quanto a que veio após o fim da Gripe Espanhola. Mas não há garantia. Disso tenho certeza. Não custa então estar preparado para o pior.

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A julgar pelo desempenho dos mercados financeiros a resposta é sim. Computei a média de 30 indicadores globais diários que medem a força, abrangência e volatilidade dos movimentos das bolsas, demanda por proteção (derivativos e ativos seguros) e prêmios de risco embutidos em créditos de várias qualidades, desde 1990. Acredito que assim dá para resumir em um número, de forma naturalmente tosca, as faces múltiplas da cobiça e do medo.

Nunca nesses 30 anos o pânico foi tão elevado quanto no último dia 20 de março. Além de profunda, a queda foi vertiginosa – a jornada do céu ao inferno se deu em um mês. A bolsa americana havia batido o recorde histórico no final de fevereiro. Convenhamos, é mais fácil digerir crises quando dá tempo de ver o gato no telhado. Em 2008, por exemplo, o ar cheirou enxofre por, pelo menos, um ano antes do fundo do poço.

Se o tombo provocado pela covid-19 foi brutal e instantâneo, a recuperação também impressiona pelo vigor. Faz três semanas que a propensão ao risco se encontra próxima da zona de neutralidade. Na verdade, encostou o dedinho do outro lado do rio entre os dias 5 e 30 de junho, mas, curiosamente, retornou em julho à margem do medo, apesar do bom desempenho das bolsas. Mas isso é detalhe. O rali de alta do índice S&P 500 é o mais vistoso da história.

As sondagens de confiança dos agentes econômicos, que em tese também olham para frente, têm exibido recuperação robusta no mundo inteiro. Após cair em abril para a metade do que se viu no final de 2019, a fé dos setores industrial e de serviços retornou com força em junho. A julgar pelos dados conhecidos, a ferida ainda não estaria totalmente cicatrizada, mas o hiato em relação ao período anterior à crise encontra-se bem abaixo dos 50% de abril – calculo algo na casa dos 90%. Na China, o otimismo voou para o maior patamar desde 2016.

Tudo isso é positivo, mas dá para declarar vitória? Sei não. A incerteza produzida pela crise é gigantesca. Uma medida de ignorância derivada a partir de palavras funestas em textos jornalísticos bateu recentemente o recorde, registrando patamar duas vezes maior que o observado na Crise Financeira. A dispersão de projeções de crescimento da economia americana para o curto prazo, que pode também ser considerado um termômetro da perplexidade geral, encontra-se quase 2,5 vezes acima da máxima observada desde o final dos anos 60 (!).

A incerteza desmesurada resulta de vários fatores, a começar pela dificuldade de estimar decentemente o tamanho do estrago que já se materializou. O FMI revisou há poucos dias a expectativa de crescimento do PIB global em 2020 de -3,0% para -4,9%, pois foi surpreendido negativamente pelas informações desveladas desde abril. É como se o Fundo tivesse apagado do cenário anterior, num piscar de olhos, a produção da Rússia – a quinta maior economia do mundo. Diga-se, o desvio não foi fruto de incompetência. Eles fazem o possível, mas está difícil.

O pior é que a nova projeção pode também se revelar otimista. Atividade econômica e mobilidade passaram a andar lado a lado após a imposição de medidas de distanciamento. As variações das métricas produzidas diariamente por Apple e Google, além do indicador de rigor compilado pela Universidade de Oxford, explicam três quartos da variabilidade do crescimento no primeiro trimestre em uma amostra de 45 países (um pouco mais de 70% do PIB global). Ou seja, o fator de produção mais relevante nessa era de isolamento é a capacidade de ir de A a B.

Se a relação entre crescimento e mobilidade tiver se mantido, calculo que o produto mundial de bens e serviços tenha se contraído algo entre 7% e 8% entre abril e junho. As informações parciais divulgadas após a abertura gradual das economias sugerem que a retomada no terceiro trimestre será rápida. Ainda assim, é preciso imaginar que o PIB global cresça 10% de julho a dezembro para que a projeção do FMI esteja certa. Não vai ser fácil.

Se der isso, o mundo fechará 2020 produzindo entre 2% e 3% abaixo do nível do ano passado, configurando-se uma bela retomada em formato de V, de Vitória. É possível que seja mesmo assim, pois, ainda que o barômetro de rigor de Oxford tenha diminuído apenas um tiquinho em junho, os números da Apple e Google revelam movimentação mais ou menos duas vezes mais intensa do que a observada em abril – quando os países virtualmente hibernaram.

Não é loucura, portanto, nutrir certo otimismo. Não há dúvida que é saudável. Entretanto, infelizmente, não dá para saber com o mínimo de segurança se é torcida ou não. Daí a dispersão descomunal de projeções. Queiramos ou não, o horizonte está mais nebuloso que o normal.

O problema sanitário segue sendo a fonte primordial de ambiguidade. Há esperança com relação ao surgimento de uma vacina nos próximos meses, mas enquanto ela não vier o bicho corre solto na esteira da mobilidade aumentada. Dada a distribuição de óbitos por faixa etária e uma estimativa da taxa de fatalidade da doença feita a partir da experiência italiana, o Brasil poderia ter atualmente algo entre 5% e 20% da população infectada – de 10 a 40 milhões de indivíduos (para detalhes, veja texto que publiquei aqui em 25 de maio).

Há controvérsia sobre a proporção de infectados que traria imunidade à população. Talvez esse número seja bem menor do que os 60% inicialmente estimados, pois há evidências de que determinados indivíduos possam ser resistentes mesmo sem exibir anticorpos (procure um trabalho fresquinho de Marcus Buggert, do Karolinska Institutet, no Google). O fato de o Brasil poder, potencialmente, ter já 20% da população imunizada pode ser uma boa ou uma má notícia do ponto de vista epidemiológico e, naturalmente, econômico. Não dá para saber.

Se 20% for pouco, o relaxamento crescente pode prenunciar uma retomada perigosa das infecções e problemas sanitários à frente. Caso contrário, o risco de colapso do sistema estaria controlado e daqui em diante a economia só melhoraria. A única certeza é que a capacidade de manter o distanciamento tem diminuído, aqui e no mundo. O futuro dirá se o rebanho caminha ou não ao precipício. Visto de hoje, mesmo que haja base para otimismo – e há – é preciso manter um pé atrás. Se der zebra, as consequências serão cataclísmicas.

As dúvidas não se limitam ao campo epidemiológico. Os estímulos econômicos aplicados mundo afora tornam os esforços empenhados em 2008/09 uma brincadeira de criança. Tinha que ser assim mesmo. A pandemia originou uma daquelas crises que exigem respostas contundentes, como se não houvesse futuro. Alan Blinder foi feliz ao lembrar, em artigo no Wall Street Journal, a doutrina de Scarlet O’Hara, na inesquecível cena final de E o Vento Levou, em que ela dispara algo como “não vou pensar nisso agora. Penso amanhã”. É por aí, mas o amanhã está chegando. Quem é capaz de estimar os efeitos colaterais da extravagância monetária e fiscal em escala global? Se souberem, favor encaminhar ao meu e-mail.

Desconfio que o risco de haver, por exemplo, surpresa inflacionária seja de fato desprezível no curto prazo, conforme o pensamento da maioria absoluta de meus colegas. E no médio prazo? É verdade que a história dos últimos anos recomenda repensar um pouco a ideia de que a inflação seria um “fenômeno monetário”. De fato, as diferenças entre moeda e dívida já não são tão claras. Se a turma está topando receber menos do que empresta aos governos, o que fazer? Tem que se endividar loucamente, não? Mas quanto tempo o sonho durará?

Pena que a saudosa Mãe Dinah esteja já nos aguardando na quarta dimensão. Na falta dessa fonte infinita de sabedoria, não conheço quem saiba onde está o limite da predisposição dos mercados a financiar governos a juros baixíssimos ou negativos. Afirmações nesse campo são apostas, que podem ser feitas com mais ou menos cara de pau. A regra é: desconfie. Especialmente em casos de países com situação fiscal problemática como aqui. Não se trata de dizer que o Brasil tenha quebrado. Isso é bobagem. A dívida líquida – o conceito relevante – é administrável e em reais. Vai que o governo acorde e as reformas avancem? O problema acaba.

Mas não precisa muito para o angu desandar. Se, por qualquer razão, surgirem dúvidas de que as contas não fecham aos parâmetros vigentes, os juros podem subir um pouquinho. Esse pouquinho pode fazer muita diferença, pois a dívida, ainda que administrável, é grande. Se o governo tentar segurar na marra, pode perder mais poupadores dispostos a bancar o passivo. E aí? Esse é um filme que já vimos e o drama é que, por definição, não dá para antecipar a fagulha – a calmaria vigente não diz nada sobre o futuro. Como o possível apocalipse derivado do colapso do sistema estelar WR-104, a faísca pode ocorrer daqui seis meses ou 100 mil anos. Se e quando vier, não será uma fogueira fácil de apagar. Na dúvida é bom estar preparado.

Sinto alguma firmeza em palpitar que a tragédia não parece ser o cenário mais provável. Mesmo assim, suspeito que os preços descontem demasiadamente a alternativa – afinal, o produto de algo pequeno por algo grande pode ser também grande. O passado não necessariamente é um bom guia após a COVID-19. Não importa se não sabemos mais discernir entre moeda e títulos. A saúde da economia se resume à confiança de que tudo vai dar certo. É um “estado de espírito” como disse, salvo engano, o professor Delfim Netto. Se ela for para o espaço, o resto vai junto.

Outra fonte de incerteza diz respeito às mudanças permanentes mascaradas pelos estímulos. É preciso proteger a renda de todos, mas o que fazer com a oferta de bens e serviços cuja demanda pode ter mudado? Não dá para manter a economia respirando artificialmente de forma indefinida. É lógico que os aviões, hotéis, restaurantes por quilo, bares, estádios e escritórios voltarão a ser usados. Mas quanto? Os “recursos produtivos” estão aí, mas a transição para o novo equilíbrio pode ser dolorosa. O FMI chuta que no final de 2020 estaremos apenas 2% ou 3% piores do que no final do ano passado. É razoável?

Por fim, há as interações entre economia e política. Estamos na fase da anestesia, em que até os liberais ferrenhos pensam duas vezes antes de perguntar como a conta será paga. A LCA calcula que a massa de rendimentos pode ter crescido (!) no Brasil em 2020 – de onde você acha que vem a popularidade do “mito” entre os mais pobres? A esperança é que os estímulos tenham sido suficientemente fortes para que, quando forem retirados, não haja ressaca. O papel aceita tudo. Mas dá para garantir que a coisa tenha sido bem calibrada? Não houve exagero? Descontrole? Nossa história sugere que é fácil obter o consenso na hora de gastar, mas muito difícil na hora de poupar. A pauta de bondades no Senado é surreal. Quem vai segurar a boiada na hora do aperto?

Não me parece inverossímil imaginar uma situação em que a pandemia continue incomodando a ponto de manter as pessoas ressabiadas por um bom tempo. Os estímulos diminuem, porque têm que diminuir, explicitando um buraco que parecia menor enquanto o dinheiro era distribuído a rodo. Brasília começa a discutir como pagar o papagaio e descobre que os lobbies se armaram contra eventuais facadas. A conta não fecha mordendo apenas as “grandes fortunas”, seja lá o que for isso. Enquanto os debates se desdobram, a popularidade do governo cai e a confiança vai junto. Aí vem o canto da sereia: mantenham-se os estímulos, por que não? Pois é.

Não há registro recente de incerteza tão elevada como agora. Tudo pode acontecer. Pode dar certo, mas também pode dar errado, e muito. É simples contar uma história para embasar o otimismo dos mercados. É tolice dizer que eles estejam malucos, pois os exageros fazem parte do jogo, sobretudo quando o dinheiro é grátis. O sinal das bolsas em alta deve ser comemorado. Ninguém blefa com dinheiro. Ótimo que os ventos estejam soprando a favor e, oxalá, a farra na virada do ano seja tão exuberante quanto a que veio após o fim da Gripe Espanhola. Mas não há garantia. Disso tenho certeza. Não custa então estar preparado para o pior.

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