O Brasil está barato?
Com o dólar custando 4,15 reais, o brasileiro está 27% mais pobre nos EUA do que esteve em média no período posterior à Segunda Guerra
Da Redação
Publicado em 3 de setembro de 2019 às 13h26.
Última atualização em 3 de setembro de 2019 às 16h14.
O dólar encareceu quase 15% desde a eleição presidencial. O real é a segunda moeda que mais se depreciou em 2019 dentre as mais relevantes, ficando atrás apenas do peso argentino – que tem afundado pela inflação galopante e, mais recentemente, pelo surto de aversão ao risco que se seguiu ao resultado da prévia eleitoral. Diante desse fato, cumpre examinar se não estaríamos nos transformando em uma pechincha internacional.
A revista The Economist é mestre na arte de trazer conceitos econômicos abstratos ao chão. Eles inventaram o Índice Big Mac (IBM) em meados dos 80 para ajudar seus leitores a comparar os padrões de vida internacionais, saboreando a ideia da “paridade do poder de compra” (PPC) a partir dos preços do egrégio sanduíche do palhaço. Trata-se de saída gordurosa, mas como ensina Julia Child, a hora de experimentar comida diet é enquanto o filé cozinha.
A PPC é uma noção antiquíssima nascida na Universidade de Salamanca no século 16. Foi ressuscitada após a Primeira Guerra Mundial pelo economista sueco Gustav Cassel. Na época, supunha-se que a fixação das taxas de câmbio era condição vital para dar estabilidade e previsibilidade aos mercados, permitindo o avanço do comércio internacional. O xis da questão era saber em que patamares as paridades deveriam ser congeladas.
Cassel escreveu em 1922 que nossa inclinação a pagar um preço pela moeda de outro país depende essencialmente de seu “poder de compra” – ou seja, do valor dos bens e serviços que o dinheiro permite adquirir. Sem barreiras ao comércio e descontando-se os custos de transporte, uma situação de harmonia cambial seria encontrada quando as moedas fossem negociadas de modo a garantir igualdade entre os poderes de compra nos vários mercados.
Essa história foi bombardeada impiedosamente em teoria e empiricamente, sobretudo a partir dos anos 70, quando colapsou o arranjo de câmbios fixos que nasceu após o final da Segunda Guerra. Dentre as limitações, sabe-se que é inútil apelar à PPC para entender os vaivéns cambiais de curto prazo. No entanto, o conceito ainda serve para identificar o acúmulo de discrepâncias em prazos maiores – desvios que tenderiam a sumir com o passar do tempo.
A Economist reporta que, em julho, o Big Mac podia ser degustado no Brasil por 17,50 reais e, nos Estados Unidos, por 5,74 dólares. A esses preços, a taxa de câmbio que harmonizaria o poder de compra de hambúrgueres nos dois países seria de R$/US$ 3,05. Esse valor situava-se 20% abaixo do praticado no mercado no momento da comparação, quando o dólar era negociado a cerca de R$/US$ 3,80. Como a verdinha encareceu muito de lá para cá e, provavelmente, os preços dos lanches se mantiveram, o buraco que era grande ficou ainda maior.
Na versão mais calórica, a teoria da PPC sugere, portanto, uma de três possibilidades: (i) os Estados Unidos estão caros; (ii) o Brasil está barato ou; (iii) há um misto das duas situações. Para desempatar, o caminho é investigar os preços do “número 1” em outras paragens. A apuração revela que a iguaria está mais salgada na Terra do Tio Sam do que em 54 dos 55 países cobertos pela revista, com exceção da Suíça.
A métrica “fast food” não deixa dúvida: os EUA estão caros (e, quem sabe, talvez precisem de gente mais competente para grelhar seus hambúrgueres). E o Brasil? Acredite ou não, apesar do enfraquecimento do real frente ao dólar observado até julho, nosso Big Mac só era menos indigesto que o vendido em sete países do mundo. Apreciá-lo custa mais aqui do que, por exemplo, na Dinamarca e na Austrália, lugares onde a vida é sabidamente cara. É verdade que os movimentos cambiais dos últimos dias provavelmente deixaram nosso lanche mais barato que o dinamarquês, mas ele segue mais caro que o australiano.
A versão da PPC baseada no acepipe do Ronald encontra-se consagrada, mas a internet hoje permite aplicar a ideia de forma mais completa, a partir de cardápios variados que considerem também os preços de outros alimentos e de diversos bens e serviços. Há páginas especializadas em compilar e fornecer cotações em praticamente todos os mercados e países. Ou seja, a “burgernomics” é um bom aperitivo, mas dá para se fartar mais nutritivamente.
Por exemplo, se você quiser comprar meio litro de cerveja, gastará no Brasil mais do que na Alemanha, Argentina, Espanha, México e Portugal. Mas, apesar disso, há 60 países em que o precioso néctar é mais caro do que aqui, incluindo Chile, Peru e Uruguai. A loura sai no Brasil por aproximadamente 13% menos do que no país mediano. É a lei da compensação: somos esfolados na compra do sanduíche, mas levamos vantagem na hora de empurrá-lo goela abaixo.
Além de usar uma gama mais variada de ingredientes, outra forma de “gourmetizar” as comparações cambiais, deixando-as menos indigestas, é considerar o nível de renda dos países, pois é sabido que o custo de vida tende a ser maior onde os salários são mais altos. Por exemplo, o combo que inclui uma refeição simples, uma cerveja e um cappuccino custa 142,00 reais na Noruega e 20,00 reais no Vietnam. No entanto, de acordo com dados do FMI, a renda média do norueguês é quase trinta vezes maior que a do vietnamita. Se estivesse vivo, Ho Chi Minh teria que fazer malabarismos em um tour pela Escandinávia, mas, sentiria aperto menos draconiano em casa.
O custo de vida no Brasil computado a partir de uma cesta ampla de bens e serviços é semelhante ao observado na África do Sul, China, Eslováquia e Hungria. Os preços nesses países não devem, em condições normais, abalar o turista brasileiro. Nas paridades do mês passado, por exemplo, seria possível manter nesses países o padrão de consumo praticado aqui. Na verdade, o Brasil está muito próximo do país mediano quando enchemos o carrinho: não somos caros nem baratos sob esse prisma. Para nós, é dolorido comprar na América do Norte, Europa e Ásia desenvolvida, mas dá para fazer bonito em lugares como Argentina, Colômbia, Índia, México e Turquia.
Considerando o poder de compra nos mercados domésticos (inserindo a renda média dos países na equação), é interessante ver que o Brasil aparece também como um rincão relativamente “equilibrado”, pois nosso custo de vida não destoa significativamente do que seria previsto por uma regrinha de bolso baseada na renda por habitante. Austrália, Canadá, Chile e Peru também não exibem discrepâncias significativas. Por exemplo, a vida na Austrália é 40% mais cara do que no Brasil, mas a renda deles supera a nossa também em 40%. O australiano sente-se rico ao vir para cá, mas em casa tem um padrão de vida parecido.
É possível também atacar a questão comparando a situação atual com a que prevaleceu no passado, corrigindo as variações cambiais contra uma determinada moeda pelo diferencial de inflação com a do outro país – um quitute conhecido pela alcunha de “PPC relativa”. Com o dólar custando 4,15 reais, o brasileiro está 27% mais pobre nos EUA do que esteve em média no período posterior à Segunda Guerra. Em termos reais, a última vez que gastamos tanto para abraçar o Mickey foi em 2006. Apesar disso, as coisas já foram bem mais difíceis. Em 1984, 1985 e em 2002 o dólar chegou a custar mais do que 7,30 reais em moeda de hoje.
Ou seja, em questões de “caro” ou “barato”, a economia e a gastronomia se cruzam: só se prova o pudim comendo-o.
O dólar encareceu quase 15% desde a eleição presidencial. O real é a segunda moeda que mais se depreciou em 2019 dentre as mais relevantes, ficando atrás apenas do peso argentino – que tem afundado pela inflação galopante e, mais recentemente, pelo surto de aversão ao risco que se seguiu ao resultado da prévia eleitoral. Diante desse fato, cumpre examinar se não estaríamos nos transformando em uma pechincha internacional.
A revista The Economist é mestre na arte de trazer conceitos econômicos abstratos ao chão. Eles inventaram o Índice Big Mac (IBM) em meados dos 80 para ajudar seus leitores a comparar os padrões de vida internacionais, saboreando a ideia da “paridade do poder de compra” (PPC) a partir dos preços do egrégio sanduíche do palhaço. Trata-se de saída gordurosa, mas como ensina Julia Child, a hora de experimentar comida diet é enquanto o filé cozinha.
A PPC é uma noção antiquíssima nascida na Universidade de Salamanca no século 16. Foi ressuscitada após a Primeira Guerra Mundial pelo economista sueco Gustav Cassel. Na época, supunha-se que a fixação das taxas de câmbio era condição vital para dar estabilidade e previsibilidade aos mercados, permitindo o avanço do comércio internacional. O xis da questão era saber em que patamares as paridades deveriam ser congeladas.
Cassel escreveu em 1922 que nossa inclinação a pagar um preço pela moeda de outro país depende essencialmente de seu “poder de compra” – ou seja, do valor dos bens e serviços que o dinheiro permite adquirir. Sem barreiras ao comércio e descontando-se os custos de transporte, uma situação de harmonia cambial seria encontrada quando as moedas fossem negociadas de modo a garantir igualdade entre os poderes de compra nos vários mercados.
Essa história foi bombardeada impiedosamente em teoria e empiricamente, sobretudo a partir dos anos 70, quando colapsou o arranjo de câmbios fixos que nasceu após o final da Segunda Guerra. Dentre as limitações, sabe-se que é inútil apelar à PPC para entender os vaivéns cambiais de curto prazo. No entanto, o conceito ainda serve para identificar o acúmulo de discrepâncias em prazos maiores – desvios que tenderiam a sumir com o passar do tempo.
A Economist reporta que, em julho, o Big Mac podia ser degustado no Brasil por 17,50 reais e, nos Estados Unidos, por 5,74 dólares. A esses preços, a taxa de câmbio que harmonizaria o poder de compra de hambúrgueres nos dois países seria de R$/US$ 3,05. Esse valor situava-se 20% abaixo do praticado no mercado no momento da comparação, quando o dólar era negociado a cerca de R$/US$ 3,80. Como a verdinha encareceu muito de lá para cá e, provavelmente, os preços dos lanches se mantiveram, o buraco que era grande ficou ainda maior.
Na versão mais calórica, a teoria da PPC sugere, portanto, uma de três possibilidades: (i) os Estados Unidos estão caros; (ii) o Brasil está barato ou; (iii) há um misto das duas situações. Para desempatar, o caminho é investigar os preços do “número 1” em outras paragens. A apuração revela que a iguaria está mais salgada na Terra do Tio Sam do que em 54 dos 55 países cobertos pela revista, com exceção da Suíça.
A métrica “fast food” não deixa dúvida: os EUA estão caros (e, quem sabe, talvez precisem de gente mais competente para grelhar seus hambúrgueres). E o Brasil? Acredite ou não, apesar do enfraquecimento do real frente ao dólar observado até julho, nosso Big Mac só era menos indigesto que o vendido em sete países do mundo. Apreciá-lo custa mais aqui do que, por exemplo, na Dinamarca e na Austrália, lugares onde a vida é sabidamente cara. É verdade que os movimentos cambiais dos últimos dias provavelmente deixaram nosso lanche mais barato que o dinamarquês, mas ele segue mais caro que o australiano.
A versão da PPC baseada no acepipe do Ronald encontra-se consagrada, mas a internet hoje permite aplicar a ideia de forma mais completa, a partir de cardápios variados que considerem também os preços de outros alimentos e de diversos bens e serviços. Há páginas especializadas em compilar e fornecer cotações em praticamente todos os mercados e países. Ou seja, a “burgernomics” é um bom aperitivo, mas dá para se fartar mais nutritivamente.
Por exemplo, se você quiser comprar meio litro de cerveja, gastará no Brasil mais do que na Alemanha, Argentina, Espanha, México e Portugal. Mas, apesar disso, há 60 países em que o precioso néctar é mais caro do que aqui, incluindo Chile, Peru e Uruguai. A loura sai no Brasil por aproximadamente 13% menos do que no país mediano. É a lei da compensação: somos esfolados na compra do sanduíche, mas levamos vantagem na hora de empurrá-lo goela abaixo.
Além de usar uma gama mais variada de ingredientes, outra forma de “gourmetizar” as comparações cambiais, deixando-as menos indigestas, é considerar o nível de renda dos países, pois é sabido que o custo de vida tende a ser maior onde os salários são mais altos. Por exemplo, o combo que inclui uma refeição simples, uma cerveja e um cappuccino custa 142,00 reais na Noruega e 20,00 reais no Vietnam. No entanto, de acordo com dados do FMI, a renda média do norueguês é quase trinta vezes maior que a do vietnamita. Se estivesse vivo, Ho Chi Minh teria que fazer malabarismos em um tour pela Escandinávia, mas, sentiria aperto menos draconiano em casa.
O custo de vida no Brasil computado a partir de uma cesta ampla de bens e serviços é semelhante ao observado na África do Sul, China, Eslováquia e Hungria. Os preços nesses países não devem, em condições normais, abalar o turista brasileiro. Nas paridades do mês passado, por exemplo, seria possível manter nesses países o padrão de consumo praticado aqui. Na verdade, o Brasil está muito próximo do país mediano quando enchemos o carrinho: não somos caros nem baratos sob esse prisma. Para nós, é dolorido comprar na América do Norte, Europa e Ásia desenvolvida, mas dá para fazer bonito em lugares como Argentina, Colômbia, Índia, México e Turquia.
Considerando o poder de compra nos mercados domésticos (inserindo a renda média dos países na equação), é interessante ver que o Brasil aparece também como um rincão relativamente “equilibrado”, pois nosso custo de vida não destoa significativamente do que seria previsto por uma regrinha de bolso baseada na renda por habitante. Austrália, Canadá, Chile e Peru também não exibem discrepâncias significativas. Por exemplo, a vida na Austrália é 40% mais cara do que no Brasil, mas a renda deles supera a nossa também em 40%. O australiano sente-se rico ao vir para cá, mas em casa tem um padrão de vida parecido.
É possível também atacar a questão comparando a situação atual com a que prevaleceu no passado, corrigindo as variações cambiais contra uma determinada moeda pelo diferencial de inflação com a do outro país – um quitute conhecido pela alcunha de “PPC relativa”. Com o dólar custando 4,15 reais, o brasileiro está 27% mais pobre nos EUA do que esteve em média no período posterior à Segunda Guerra. Em termos reais, a última vez que gastamos tanto para abraçar o Mickey foi em 2006. Apesar disso, as coisas já foram bem mais difíceis. Em 1984, 1985 e em 2002 o dólar chegou a custar mais do que 7,30 reais em moeda de hoje.
Ou seja, em questões de “caro” ou “barato”, a economia e a gastronomia se cruzam: só se prova o pudim comendo-o.