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Emílio Odebrecht e a fábula de Hipocrisópolis

Emílio Odebrecht ficou pasmo com as reações de indignação que vieram de todos os lados diante do esquema monstruoso de corrupção que envolveu políticos e empreiteiras. Para ele tudo não passa de “demagogia”. Nas palavras do empresário, “o que me surpreende, e eu procurei colocar de uma forma muito clara, mas quero ter a oportunidade […]

EMÍLIO ODEBRECHT: ele erra ao deixar subentendido que a lavação de roupa suja não traz informação nova / Caio Guatelli/Exame
EMÍLIO ODEBRECHT: ele erra ao deixar subentendido que a lavação de roupa suja não traz informação nova / Caio Guatelli/Exame
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Celso Toledo

Publicado em 24 de abril de 2017 às, 11h30.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h28.

Emílio Odebrecht ficou pasmo com as reações de indignação que vieram de todos os lados diante do esquema monstruoso de corrupção que envolveu políticos e empreiteiras. Para ele tudo não passa de “demagogia”. Nas palavras do empresário, “o que me surpreende, e eu procurei colocar de uma forma muito clara, mas quero ter a oportunidade de enfatizar (…) veja todos esses Poderes e a imprensa, como se isso fosse uma surpresa. Olha, me incomoda isso.”

O depoente tem um ponto. A corrupção faz parte da vida do brasileiro e não há quem não tenha ouvido falar das falcatruas deste ou daquele prócere da política. Quem não conhece alguém que tem certeza que fulano fez isso ou aquilo? Além do mais, os privilégios e sinais de enriquecimento de autoridades e as fortunas despendidas para subir na política emprestam veracidade às fofocas.

Se, de um lado, é compreensível o assombro do doutor Emílio com o que parece ser mesmo uma grande hipocrisia, de outro, ele erra ao deixar subentendido que a lavação de roupa suja não traz informação nova. Não estou fazendo alusão aos detalhes sórdidos das maracutaias que vêm à tona com as delações. Refiro-me a algo mais sutil, relacionado ao fato de que provar a nudez do rei pode fazer muita diferença em algumas circunstâncias, mesmo quando todos intuem a transparência do manto real.

A principal “novidade” trazida pelas delações é tornar a corrupção “conhecimento comum”, um dos conceitos mais elegantes em teoria dos jogos. Formalizado em meados dos anos 70 pelo Nobel Robert Aumann, o tema costuma ser introduzido informalmente por meio de historinhas. A que mais gosto foi contada em uma das aulas que tive com a conceituada matemática Marilda Sotomayor, no curso de doutoramento da FEA-USP. A história é a seguinte.

Há muito tempo, em um vilarejo chamado Hipocrisópolis, situado no planalto central de um vasto reino, viviam harmoniosamente 100 famílias. Tradicionalmente, todas as noites, os homens reuniam-se sentados em torno de um grande círculo. A palavra era concedida a cada um para que o sujeito pudesse louvar a virtude de sua mulher. Diariamente, a fidelidade de cada uma das 100 senhoras era cantada em prosa e verso. A vida seguiu assim por anos e anos.

Havia um detalhe, porém. Todos os homens e mulheres eram infiéis. Todos conheciam as infidelidades, exceto o marido em relação à própria mulher. Na verdade, entre uma escapada e outra, os homens testemunhavam a cada noite 99 Bentinhos louvando a fidelidade de suas Capitus. Enquanto os outros se deleitavam bendizendo os predicados de suas esposas, cada um pensava com seus botões: “neste mar de lama, a única pessoa decente é a minha mulher”.

Um belo dia, chegou ao vilarejo um homem de grande sabedoria, cujos ensinamentos eram glorificados não apenas em Hipocrisópolis, mas em todo reino e além. Por ter recebido acolhida amável, o sábio prometeu fazer uma grande revelação na tertúlia daquela noite.

Quando os 100 indivíduos estavam acomodados em seus lugares, o ancião pediu a palavra, dirigiu-se ao centro do círculo e, iluminado por uma resplandecente lua cheia, disse: “senhores, em retribuição à cordialidade deste vilarejo revelarei nesta noite uma grande verdade”. Sob o olhar maravilhado de 100 criaturas, o douto vetusto lançou: “reside aqui uma mulher infiel!”. Pediu licença para ir e, após um breve aceno de adeus, desapareceu. Nunca mais se ouviu falar dele.

Nesta mesma noite, os 100 homens retornaram à rotina e cada um louvou a virtude de sua mulher e o mesmo se repetiu por mais 98 luas. No entanto, na centésima noite, deu-se o inusitado. O primeiro homem a falar insultou a esposa e seu amante, seja ele quem fosse. Os xingamentos do segundo a falar, entre lágrimas, foram ainda mais enfáticos. Cada um dos 100 homens difamou a esposa. A harmonia em Hipocrisópolis chegou ao fim nesta noite fatídica.

Faço uma pergunta a você, leitor: qual foi a novidade desvendada pelo sábio? O que ele disse que todos já não sabiam a ponto de arruinar a paz no vilarejo? Para decifrar o enigma, a forma mais simples é pensar em uma vila com dois casais, ambos infiéis. Quando o sábio revela a infidelidade de uma mulher, cada homem desconfia que ele está se referindo à esposa do outro (que, por acaso, é sua amante). Na primeira noite, ambos esperam que o companheiro acuse o golpe. Quando isso não ocorre, deduzem que o outro esperava que ele deveria ter escrachado a própria mulher. No segundo dia, a dura verdade emerge.

O que se passa em Hipocrisópolis é que todos sabem que há infidelidade, mas os outros não sabem que eles sabem e assim sucessivamente. O conhecimento de cada um não é “conhecimento comum”. A fala do sábio, aparentemente irrelevante, nivela a informação de todos. Ocorre o mesmo no âmbito das operações de combate à corrupção em curso no Brasil.

Os brasileiros sabem e sempre souberam da natureza das tramóias de autoridades de todos os poderes com o setor privado. O Brasil foi constituído com este DNA, como mostrou a obra magistral de Raymundo Faoro. Sabe-se que as falas indignadas das ratazanas que negam peremptoriamente seus malfeitos não querem dizer absolutamente nada.

No entanto, quando eles confessam os próprios crimes é preciso levar a sério. As evidências reveladas no âmbito de delações premiadas têm a mesma credibilidade da fala do sábio porque são feitas por indivíduos que entregam cúmplices para reduzir as próprias penas. Não há conflito entre o interesse do delator e a verdade. Por esta razão, é difícil encontrar algum político que não queira melar a possibilidade de premiar delações e encarcerar condenados em segunda instância.

Não é apenas o doutor Emílio que está perplexo diante do que parece mesmo ser uma grande “demagogia”. O pulo do gato é perceber que a corrupção endêmica tornou-se “conhecimento comum” no momento em que os envolvidos começaram a delatar seus comparsas. Devemos comemorar a novidade porque, por incrível que possa parecer, ela abre uma oportunidade para o país ser passado a limpo.

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