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Do hipster ao boçal, eis o que todos queremos: um estado ineficiente

A população argentina, fiel à tradição latino-americana, gosta de anestesias populistas de curto prazo. Mas por aqui ganha força a ideia que nunca saiu da cabeça das pessoas: o Estado deve acomodar as demandas infinitas da população a qualquer custo

PEDRO PARENTE, EX-CEO DA PETROBRAS: livramo-nos do incompetente cuja gestão fez o valor de “nossa” maior empresa subir mais de 200%, o preço do combustível foi reduzido em uma canetada e o boleto passado à viúva / Patricia Monteiro/ Getty Images
PEDRO PARENTE, EX-CEO DA PETROBRAS: livramo-nos do incompetente cuja gestão fez o valor de “nossa” maior empresa subir mais de 200%, o preço do combustível foi reduzido em uma canetada e o boleto passado à viúva / Patricia Monteiro/ Getty Images
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Celso Toledo

Publicado em 6 de junho de 2018 às, 16h06.

A renda por habitante encontra-se estagnada há uma década na Argentina. A inflação tem oscilado entre 10% e 20% e atingiu aproximadamente 40% em 2016. Macri pegou a economia em default com credores externos, sem reservas internacionais, controles de preços e de capitais, barreiras ao comércio, finanças públicas em frangalhos e estatísticas manipuladas. Herança previsível de uma política que foi a versão portenha da “Nova Matriz Econômica” de Dilma.

O governo tenta agora, aos trancos e barrancos, colocar a economia nos eixos adotando uma política convencional. Conta ainda com algum apoio da sociedade, mas a tarefa tem sido dificultada por ambiente externo já não tão favorável e pelo avanço dos demagogos – que sentem o cheiro de carniça porque os dividendos de políticas racionais não ocorrem da noite para o dia. Há uma semana Macri se viu forçado a vetar uma lei que impediria o realismo tarifário, um dos pilares do plano para sanear as finanças do país. O custo político do veto foi alto e se soma ao revés que forçou um pedido de ajuda ao FMI (esse por conta de uma vacilada do governo).

A população argentina, fiel à tradição latino-americana, gosta de anestesias populistas de curto prazo. O fim da lua de mel e as dificuldades decorrentes do minguante apoio político elevam a chance de nova onda de insensatez em 2019 – a mera existência desse risco piora bastante a conjuntura. Nossa situação não chega a ser tão ruim – ainda. No entanto, os prenúncios são alarmantes. O triste episódio envolvendo a paralisação dos caminhoneiros prova que os brasileiros têm os mesmos vieses que impedem o progresso da Argentina.

A discussão lá e aqui não é se a política econômica deve focar mais a saúde, a educação, a segurança, etc. Não se trata de disputar politicamente as prioridades, mas de uma controvérsia sobre o próprio funcionamento da economia. O debate entre “direita” e “esquerda” no mundo civilizado é permeado pela noção de que existe uma restrição orçamentária que exige fazer escolhas. Na América Latina, perdemos tempo com uma discórdia primitiva, que contrapõe a visão convencional que funciona à ideia heterodoxa e aconchegante de que o ajuste fiscal é o filhote natural de políticas expansionistas.

Indo além, o nó primordial não é a existência de “intelectuais” que servem para dar credibilidade às teorias mirabolantes que não encontram suporte em evidências. A raiz do problema está na noção sedimentada na cabeça das pessoas, muitas vezes inconscientemente, de que o Estado é a resposta para todos os problemas e que ele deve acomodar as demandas infinitas da população a qualquer custo. Há malucos em todos os cantos do mundo, mas em nossa região a praga abunda nas versões mais grotescas porque seus discursos e ideias despertam as paixões populares.

Descobrimos recentemente que o combustível custa caro no Brasil. De fato, gastamos em média 4,5% de nossa renda diária para comprar um litro de gasolina, situação que só não é pior do que a de 10 países em um painel de 61 nações compilado pela Bloomberg. Junte-se o desencanto com relação à política e o equívoco de transmitir a volatilidade ao consumidor e não é difícil entender o apoio avassalador ao movimento que colocou o governo nas cordas e travou a economia, causando transtornos enormes e prejuízos bilionários. O raciocínio é simples: custa caro, a culpa é do governo, ele que resolva e ponto final.

Não causa surpresa constatar ainda que a ampla maioria presume que a decisão de baixar o preço na marra não embute custos ou, se embutir, a conta não lhe pertence. Na linha do que escrevi na semana passada, o brasileiro não pensa assim por lapso de caráter, mas porque é doutrinado a presumir que os recursos públicos são gerados espontaneamente. Li recentemente as pérolas de um blogueiro que é fenômeno de público e que tem batido na tecla de que o povo não come indicadores econômicos e não quer ser governado por quem gosta de planilhas de Excel.

Tenho colegas que sentem o estômago virar do avesso ao ler bobagens desse naipe e ficam surpresos com o baixo nível do debate, etc. Discípulos de Carlo Cipolla, como eu, não se surpreendem. Seria uma novidade se uma análise inteligente atraísse o mesmo número de “curtidas” que o besteirol rasteiro, seja a platitude “progressista” do barbudinho hipster, seja a atrocidade do conservador boçal, ambos defensores do estado ineficiente. Sou da opinião que não há oferta se não houver demanda. Da mesma forma que o político populista vende as ilusões que o povo quer ouvir, muitos formadores de opinião escrevem abobrinhas de olho no Facebook. O xis é que, infelizmente, não dá para ser simpático e racional ao mesmo tempo.

O país está dividido entre os que atribuem a última trapalhada à “direita” e os que culpam a “esquerda”. Mas todos concordam que o povo honesto e trabalhador não tem nada a ver com o busílis. Dona Maria e Seu João, que elegeram a dupla Dilma e Temer e os congressistas, simpatizam com os caminhoneiros porque não aguentam mais serem enganados por governos incompetentes, arrogantes e corruptos. É reconfortante, portanto, observar que, diante do fiasco evidente, a intenção é agora arejar o país com Bolsonaro, Lula ou qualquer candidato que diga que o progresso não exige sacrifícios e escolhas difíceis – quem sabe os militares? E Dilma no Senado! Reclamamos dos ladrões inaptos, mas não suportamos a ideia de ajustar o Estado à realidade.

Uma das razões que encarecem o combustível é a ineficiência e a falta de competição no setor. A feição da cadeia do petróleo é dada pela presença marcante da Petrobras e, como se sabe, produzir com eficiência não é o métier do setor público em nenhum lugar. Sendo assim, um caminho para gerar economias que beneficiariam a sociedade seria diminuir a interferência do governo no mercado de forma estudada e responsável. Essa solução, no entanto, está fora de cogitação porque a Petrobras é um “patrimônio do povo”, tem “objetivos estratégicos” e, por isso, tem mesmo que operar com mais restrições que uma empresa privada. Ninguém sabe direito o benefício que aufere por ser o “dono” de uma petroleira, mas isso importa menos. Privatização é palavrão e não queremos nem discutir.

Outra opção para baratear o combustível é reduzir os tributos que inflam os preços. De fato, a fatia de cada litro de gasolina vendido ao consumidor final engolida pelos governos é quase 50% maior do que a da própria Petrobras. É preciso então baixar os impostos, mas sem abrir mão das benesses propiciadas pelo Estado protetor – afinal, são direitos garantidos pela Constituição “Cidadã”. Além disso, a maioria que reclama da má qualidade da tributação não quer entender que países de renda média só conseguem ter carga tributária de países ricos mediante um sistema distorcivo, injusto e ineficiente. O governo não consegue fechar as contas se, por exemplo, não meter impostos cavalares em bens cuja demanda é inelástica como os combustíveis.

Queremos a estatal, os direitos, mas não os impostos. Daí o apoio a um movimento que chantageia o governo para que ele entenda de uma vez por todas o seu papel. Não resta dúvida que obtivemos uma vitória espetacular na batalha. Livramo-nos do incompetente cuja gestão fez o valor de “nossa” maior empresa subir mais de 200%, o preço do combustível foi reduzido em uma canetada e o boleto passado à viúva. Os economistas do Excel dizem que outros segmentos serão onerados para tapar o buraco. No entanto, é difícil saber exatamente sobre os ombros de quem recairá o ônus, pois a questão da incidência efetiva dos impostos é controversa até mesmo para os próprios economistas. Ora, se não dá para saber exatamente quem pagará a conta, é possível que ela simplesmente tenha desaparecido, não?

Há quem diga que esse jogo de empurra-empurra não durará muito tempo porque a dívida pública está crescendo de forma insustentável. São os profetas do apocalipse que previram equivocadamente o desastre que seria o governo Dilma, os “rentistas” que apoiaram os conspiradores que a sacaram do Palácio do Planalto porque não aguentam ver o pobre andando de avião. A maior prova que o golpe veio para prejudicar o povo é o crescimento medíocre e os milhões de desempregados. Vejam vocês, os juros caíram e a inflação está baixa, demonstrando que os especuladores tinha raiva da presidenta. Por incrível que pareça essa narrativa pega. Sei que gostar do Temer é pedir muito, mas não dá para imaginar um time econômico melhor do que o atual. A política que trará o desenvolvimento é a que está na cabeça dessa turma. O resultado demora, mas vem. Qualquer coisa diferente dá errado.

Deve ser um grande barato ter milhares de fãs e ganhar dinheiro vendendo a imagem casta e caridosa de quem se preocupa com o “social” e não com números, cuspindo recomendações como se o dia a dia do governo não envolvesse escolhas difíceis. A inveja que sinto é tanta que dá vontade de escrever uma coluna argumentando que o povo não se alimenta de “likes”, mas, por mais divertido que seja encher o pacová dos “progressistas”, é preciso ter em mente que as bobagens que eles dizem não existem no vácuo, mas porque colam como goma arábica. Boa parte das pessoas que não fizeram a tolice de virarem economistas que conheço acha, por exemplo, que os problemas orçamentários acabariam com o fim da corrupção. Muitos apoiaram os caminhoneiros com esse mote. Não nego que a roubalheira seja uma doença gravíssima relacionada ao Estado paquidérmico, mas não é preciso esforço para encontrar números (insensíveis) que mostrarão claramente que a gatunagem é um item relativamente pequeno do orçamento público.

A Venezuela é um país que tem sido governado com bastante benevolência por mentes progressistas preocupadas mais com o bem-estar do povo do que com os números. A maior prova disso é a existência do ministério da “Suprema Felicidade Social” para garantir que não falte nada a ninguém. Livre dos inconvenientes aritméticos, Maduro está forçando a população venezuelana a se alimentar de oxigênio ou, quem sabe, de indicadores econômicos porque, pelas notícias que estão chegando, comida não existe. As frias estatísticas mostram que o peso dos nossos irmãos tem diminuído com o Socialismo do Século XXI. O êxodo maciço sugere que a turma de Caracas não “curte” a crise como a moçada da USP, da Unicamp e da Vila Madalena.

Voltando então à vaca fria, por que o caso da Argentina é útil para desenhar um cenário para o Brasil, ressuscitando o teorema segundo o qual eles são a gente amanhã – o inesquecível “efeito-Orloff”? A resposta simples é que as nossas preferências são parecidas.

Se a população rejeitar a necessidade de perseguir uma agenda de reformas custosas em outubro, os “especuladores” olharão suas planilhas de Excel e elas mostrarão que a conta não vai fechar. O custo de financiamento do governo aumentará e o real perderá mais valor do que já perdeu, gerando pressões inflacionárias. A resposta usual de governos que não gostam de números é culpar alguém e forçar uma política monetária inconsistente. Dilma chegou a tentar aplicar um estelionato eleitoral fingindo ser lúcida. Conseguiu apenas desagradar a gregos e troianos e logo mudou de ideia. O próximo demagogo não deverá cometer o mesmo deslize.

O crescimento não virá porque ele depende de um ambiente de previsibilidade – o colapso engendrado pela Nova Matriz mostra o que acontece quando a confiança no timoneiro se evapora. Com a economia patinando, os grupos de interesse colocarão a corda no pescoço do governo, exigindo medidas de caráter “desenvolvimentista” – os modernos sindicatos de empresários com o apoio útil dos trabalhadores soprarão a corneta. Nesse diapasão, o capital político será usado para reverter reformas aprovadas a duras penas, como a trabalhista e a regra do teto. O povo, que não acredita em restrições orçamentárias, vai adorar – no início. Quem viveu meio século se lembra dos “fiscais” do Sarney.

De início, o crescimento poderá surpreender positivamente, pois a ociosidade da economia é cavalar. No entanto, a inflação continuará subindo e a economia alternará soluços de crescimento com declínios também abruptos, produzindo-se um ambiente econômico de estagnação no médio prazo, com volatilidade no curto. Com as finanças em pandarecos, o governo terá dificuldade de se financiar e estará à mercê dos vaivéns da economia global. A tentação de resolver os problemas na marra será irresistível, e a cada “puxadinho” o angu desandará mais. Ministros serão substituídos cada vez mais frequentemente e não faltarão explicações estapafúrdias para o povão que, mais uma vez, sentir-se-á enganado e desiludido com a política, os partidos e a democracia.

Nesse ponto haverá uma bifurcação importante entre o ruim e o péssimo. Com a demanda doméstica derrapando, os segmentos exportadores estarão relativamente bem, turbinados pelo câmbio depreciado. A ala “progressista” sugerirá então o uso das reservas internacionais para “promover o desenvolvimento” e minimizar o sofrimento do povo. Citará trabalhos acadêmicos que afirmam que o volume de divisas atual é muito maior do que o necessário para garantir a solidez das contas externas. O presidente enfraquecido terá que escolher.

Se acreditar no canto das sereias, o país perderá o último escudo e rumará ao abismo. Se tiver juízo, evitará o desvairamento completo das expectativas, logrando tocar o barco com inflação alta, mas controlada, na medida suficiente para facilitar a diluição de gastos que não cabem no orçamento – virará um Sarney com uns três anos pela frente. Perderemos tempo andando de lado, mas chegaremos com condições de eleger um cidadão que tente arrumar a bagunça em 2022 – o nosso Macri. Ele terá que fazer um milagre para não perder para um populista em 2026. A história regional tem mostrado que esses milagres não acontecem.

Apenas para fechar com uma mensagem um pouco mais otimista e, quem sabe, ganhar uns “likes”, é óbvio que este cenário não está escrito na pedra. Com um pouco de sorte poderemos eleger um moderado reformista agora e, se isso ocorrer, haverá alguns anos bons à frente. Tomara que sim, mas as preferências da população continuarão as mesmas. Enquanto elas não mudarem para valer o progresso será lento e errático.