Do cavalo de Pau dilmista ao cavalo de Powell trumpista
O intervencionismo e os vaivéns de Trump somados ao viés expansionista da política macroeconômica em um contexto de economia aquecida traz à memória a barafunda criada aqui com a “Nova Matriz”
Publicado em 4 de dezembro de 2018 às, 11h19.
Quando se tornou presidente em 2010, a missão número um de Dilma era estabilizar a economia aquecida demais pela política “anticíclica” de Lula. Em agosto de 2011, a inflação acumulada em 12 meses superava os 7%. O Banco Central, que então atuava com relativa autonomia e tinha credibilidade, tentava desesperadamente esfriar o caldeirão. Havia já subido o juro anualizado de 10,75% para 12,5% e o setor privado projetava esse patamar para, pelo menos, até meados de 2012, ano em que se esperava que a inflação novamente cravasse a meta.
Como não poderia deixar de ser, o crescimento econômico perdia força, não apenas como efeito da política monetária restritiva, mas porque todos os países exportadores de commodities esmoreciam na esteira da desaceleração chinesa. Nessa altura, a presidente sentiu-se à vontade para jogar no lixo as boas práticas e fazer as coisas de seu jeito. Abandonou a cautela e ordenou a queda do juro a despeito dos avisos de que isso seria um disparate. O episódio ficou conhecido como o “cavalo de pau do (Alexandre) Tombini”, então o presidente do Banco Central.
Começava a série de políticas não convencionais e intervenções em preços fundamentais que ficaram conhecidas pela alcunha de “Nova Matriz Econômica” que, como se sabe, produziu corrupção e jogou milhões de famílias na miséria. A lição é que o crescimento econômico no longo prazo é derivado de aspectos que não dizem respeito à gestão da demanda. Cabe às políticas monetária e fiscal apenas (tentar) atenuar os ciclos econômicos. Pisar no acelerador de uma economia que opera sem ociosidade produz inflação e, no limite, perda de confiança e recessão.
Jerome Powell, presidente do FED, resolveu na semana passada aplicar também um cavalo de pau esplêndido – que, curiosamente, guarda paralelos com o que se deu por aqui. No início de outubro, ele havia dito que o juro precisaria percorrer “um longo caminho” até chegar ao ponto de neutralidade – aquele que induz a economia a crescer em ritmo de cruzeiro com inflação estável. A fala obviamente sugeria elevações adicionais do juro no futuro e, não por acaso, a taxa para 10 anos começou a subir a ponto de registrar, em poucos dias, o maior patamar desde 2010.
Na quarta passada, no entanto, Powell reformulou a orientação e disse que o juro estaria “um pouco abaixo” do neutro. Dentro do espectro que separa um discurso brando de um agressivo, a nova sinalização se encontra a quilômetros de distância da anterior. É verdade que a comunicação dos bancos centrais não é – e não deve ser – precisa, mas ao substituir a expressão “um longo caminho” por “um pouco abaixo”, Powell mudou a perspectiva da água para o vinho. Após a mudança, o juro de dez anos devolveu toda a alta acumulada recentemente.
O cavalo de pau do FED se deu em um contexto de forte volatilidade em preços de ativos, particularmente nos índices das bolsas de valores, em meio a indícios de que a economia estaria perdendo força – como era o caso no Brasil em 2011. No início de outubro, o S&P 500 encontrava-se em trajetória firme de alta, acumulando ganho de 14% frente ao nadir registrado em meados de fevereiro. Desde então a tendência se inverteu e se Powell não tivesse feito nada, a bolsa provavelmente não compensaria as perdas da inflação em 2018. A economia, por sua vez, ainda está relativamente bem, mas os indicadores de confiança murcharam, alguns setores estão patinando e os spreads de risco têm aumentado.
Donald Trump, cuja autoconfiança é parecida com a de nossa ex-presidente, não estava contente com o rumo da política monetária. Nenhum político gosta de apertar o cinto, mas alguns, como o magnata, acham que reclamar faz bem. Em uma mensagem em que agradecia a si próprio pela queda dos preços do petróleo, Trump aproveitou para buzinar na orelha da autoridade monetária, avisando com a delicadeza que lhe é peculiar que só o FED estava preocupado com a inflação. Ao fazer isso, pôs em risco a credibilidade da instituição, prejudicando a potência da política monetária. Esse tipo de atitude já não surpreende mais ninguém e apenas mostra como é preciso se esforçar bastante para arranhar a reputação do FED – aqui é bem mais fácil.
As minutas da reunião de novembro do FOMC (o Copom americano) mostram que o FED estava ciente dos desafios maiores do cenário e havia decidido a não se comprometer com uma trajetória determinada de ajustes da taxa de juro no ano que vem. Preferia deixar aberta a possibilidade de pausas técnicas dependentes dos acontecimentos. Ou seja, a fala recente de Powell refletiu o entendimento do colegiado do começo do mês e não necessariamente tem a ver com as lambanças de Trump. Nesse ponto o episódio americano difere da saga tupiniquim. Diferenças à parte, façamos justiça: o que se deu lá foi também um belo cavalo de pau.
A pergunta de vários bilhões de dólares é saber por que o FED ficou assustado e quais as implicações da mudança. A primeira resposta é simples e tem a ver com o conservadorismo que deve nortear nossas ações em ambiente de incerteza. Trata-se, no contexto da política monetária, do “Princípio de Brainard” introduzido em um célebre artigo de 1967 da American Economic Review. Em termos mundanos, a ideia pode ser enunciada como: “se você não sabe direito o que está fazendo, não faça nada e, se fizer, vá devagar”.
A verdade é que a profissão não sabe direito porque a inflação está subindo tão lentamente nos EUA. Os indicadores referentes à evolução da produtividade sugerem que o potencial de crescimento é um pouco inferior a 2% ao ano. Como a demanda tem se expandido bem mais do que isso e o desemprego está historicamente baixo, a recomendação óbvia é subir o juro, como o FED vinha fazendo. Além disso, a política fiscal de Trump também joga lenha na fogueira. Como no Brasil de Dilma, o déficit orçamentário aumentou e deverá ser de 5% do PIB no ano que vem. A dívida pública chegará aos 120% do PIB em poucos anos. A boa reputação permite que os gringos segurem as pontas sem precisar fazer as mágicas contábeis que foram tramadas aqui. Verdade, mas a margem de manobra não durará indefinidamente.
Ao aplicar o cavalo de pau, Powell implicitamente sinalizou que prefere correr o risco de ser surpreendido pela inflação (inclusive de preços de ativos) do que por uma desaceleração abrupta do crescimento. A escolha é compreensível e, sem dúvida, representa uma boa notícia para o resto do mundo. No entanto, não dá para saber se a nova diretriz aumenta ou diminui o risco de uma recessão no médio prazo. A história americana sugere que elas ocorrem tipicamente por uma de duas razões. Ou o Banco Central se atrasa, é surpreendido pela inflação e tem que acelerar o passo, ou exagera e quando se dá conta é tarde demais. Esses erros de calibragem ocorrem porque a política monetária se transmite ao mundo real com defasagens que são longas e variáveis. Acertar na mosca é raríssimo, até porque os ciclos reais derivados de choques imprevisíveis de produtividade fazem parte da natureza dos negócios. Por isso é que se diz que a política monetária é mais arte do que ciência e alguns economistas, como o saudoso Milton Friedman, achavam que as tentativas de atenuar esses ciclos mais atrapalhavam do que ajudavam.
O futuro dirá se Powell acertou ou não, mas não devemos nos iludir com a provável trégua que se seguirá à dose de anestesia que ele injetou. Se a produtividade continuar crescendo como nos últimos anos, dá para afirmar que a economia americana encontra-se aquecida demais e será quase um milagre se o ritmo de crescimento convergir suavemente para o potencial de longo prazo. O “cavalo de Powell” e a pausa na Guerra Comercial negociada neste final de semana com os chineses darão um pouco de fôlego aos mercados financeiros, mas os dilemas continuam e o risco de uma recaída recessiva está presente.
Guardadas as devidas proporções, o intervencionismo e os vaivéns de Trump somados ao viés expansionista da política macroeconômica em um contexto de economia aquecida traz à memória a barafunda criada aqui com a “Nova Matriz”. Apesar das diferenças entre os níveis de desenvolvimento dos países, pode-se até dizer que o entorno é semelhante, pois a política americana também tem sido pautada pelo populismo curtoprazista que marcou o governo de Dilma. Como vimos aqui, esse perfil de gestão costuma causar volatilidades. Não será surpresa, portanto, se houver outros cavalos de pau em 2019.