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Democracia sem populismo é regra ou exceção?

Como identificar o ponto em que o ideal democrático de governo “do povo, pelo povo e para o povo” termina e o populismo começa?

(Win McNamee/Reuters)
DR

Da Redação

Publicado em 26 de dezembro de 2017 às 09h53.

Os mais pessimistas temem que a onda de populismo que infesta o mundo poderá levar ao colapso dos partidos políticos tradicionais, abalando as democracias, especialmente as assentadas em bases institucionais frágeis. Para entender o surgimento do fenômeno e como ele pode acarretar mudanças catastróficas é preciso defini-lo, saber em que condições prospera e se é possível imaginar um cenário sem o inconveniente.

Joga-se de tudo na vala do populismo. A julgar pela literatura, ele esteve presente ao longo da história em vários lugares, baseado em proposições associadas a todo espectro ideológico, da esquerda à direita. Uma varredura na mídia impressa britânica feita há alguns anos indicou que o termo foi empregado para designar uma lista extensa de políticos com pouco ou nada em comum, de Berlusconi a Chávez.

Atualmente, o populismo europeu está associado à direita nacionalista contrária ao Euro e avessa à imigração. Nos EUA, deve-se adicionar a preferência por governo enxuto, certa ambiguidade com relação aos déficits orçamentários e um receio paranoico de que os verdadeiros “valores americanos” estariam sendo destruídos por uma conspiração. Na América Latina, o fenômeno brota na esquerda, está baseado na busca por mais igualdade e é temperado por teorias de dependência em relação às potências imperialistas.

Que denominador comum é capaz de unir tendências tão diferentes?

Olhando pelo lado da oferta, o populismo pode ser caracterizado como um conjunto de ideias retiradas do repertório popular e ordenadas de forma solta para descrever a realidade em termos da contraposição entre a elite corrompida e os interesses legítimos da maioria. Também pode ser entendido a partir do estilo discursivo de políticos que logram estabelecer um elo com o povo semeando um senso de antagonismo contra o status-quo (sem o apoio de uma “ideologia”).

Quando se vai por aí, a definição deságua na ênfase em dar ao eleitor o que ele quer – algo que, convenhamos, não deveria causar estranheza em um sistema competitivo. É difícil ganhar eleições honestamente sem prestar atenção aos anseios mais imediatos do povo. Sob esse prisma, o populismo não soa como algo necessariamente pernicioso. Como identificar o ponto em que o ideal democrático de governo “do povo, pelo povo e para o povo” termina e o populismo começa?

O potencial tóxico do populismo só pode ser entendido quando o lado da demanda é considerado. A praga não existiria se o eleitor representativo fosse capaz de discernir os dilemas existentes e discriminar discursos vazios de programas fundamentados. Os desastres eleitorais têm origem na propensão do eleitorado a preferir histórias da carochinha ao invés de políticas consistentes.

A democracia tem vários paradoxos. Um dos mais perversos, sobretudo em países emergentes, é a necessidade de reformas impopulares com custos concentrados no curto prazo e benefícios espalhados no tempo. Eleitores míopes preferem negar a realidade, evitando os custos imediatos. Tentativas progressistas que evitam dourar a pílula são fadadas ao fracasso eleitoral. Quem se elege sem explicitar as intenções durante a campanha é acusado de estelionato quando tenta fazer o que é preciso. Em equilíbrio, o país fica à deriva, ora com um governo sério, mas impopular e frágil, ora com um governo popular e irresponsável. O populismo é uma escolha da sociedade. A questão é saber o que movimenta as preferências dos eleitores.

O Center for Economic Policy Research (CEPR) acaba de divulgar um excelente trabalho do economista e cientista político italiano Luigi Guiso (e coautores) baseado em uma investigação empírica minuciosa para entender os motores do populismo na Europa. O título traduzido é “Populismo: Oferta e Demanda”. Propõe-se um esquema analítico formal que explica a epidemia como o resultado da interação de políticos que topam tudo para serem eleitos e eleitores desanimados, estressados economicamente e obtusos com relação às consequências de longo prazo de suas escolhas.

O primeiro passo foi separar as plataformas populistas das não populistas. A partir da mais completa base de dados sobre atitudes, crenças e valores dos europeus, com dados desde 2002 cobrindo todos os países, os autores empregaram uma classificação dos partidos objetivamente consistente com as três noções que a Enciclopédia Britânica utiliza para caracterizar os vendedores de sonhos: (i) a presunção de que apenas eles promovem o verdadeiro interesse do povo contra as elites, (ii) a capacidade de apelar aos medos e entusiasmos dos cidadãos comuns por meio de chavões sem significado e ideias vagas e (iii) a defesa de políticas que minimizam custos de curto prazo sem levar em conta as consequências de longo prazo.

O segundo passo foi entender as escolhas do eleitorado com base em variáveis que dizem respeito à sua insegurança econômica, confiança nos partidos e nas instituições políticas, habilidade de perceber os custos das proposições, impaciência, aversão ao risco, gênero e orientação política. O estudo baseou-se em mais de 135 mil observações referentes a 24 países. Como seria de se esperar, as evidências confirmam a noção de que a demanda por populismo é maior entre pessoas pressionadas economicamente, que perderam a fé nos partidos políticos e que têm menos condições de prever os custos futuros das lorotas.

A análise mostra que as ondas de populismo surgem exatamente quando o sistema político não é capaz de dar conta de uma crise econômica profunda, não importando se o fracasso cai na conta da esquerda ou da direita. Crises menos intensas geram apenas ciclos políticos tradicionais, caracterizados pela alternância entre coalizões de um lado ou de outro, sem que o status-quo seja desafiado. A enorme insegurança gerada pela crise financeira de 2008 – exacerbada pela globalização e pelo aumento dos fluxos imigratórios – erodiu a confiança dos cidadãos na capacidade dos governos de enfrentar os novos desafios. A frustração e o desânimo do eleitorado abriu espaço para o florescimento de movimentos que propunham solucionar a crise virando a mesa. Espaços à esquerda e à direita foram ocupados de acordo com a disponibilidade.

O estudo foi moldado para explicar a onda de populismo na Europa, mas permite estabelecer um paralelo para analisar a nossa situação. A crise econômica que devastou o país nos últimos anos nasceu a partir de erros de diagnóstico do governo anterior que atribuiu a perda de desempenho da economia a um problema de insuficiência de demanda. Em condições normais, o fracasso encomendado pelas políticas equivocadas conduziria naturalmente à mudança de rumo pela via eleitoral – Dilma ganhou o segundo mandato por muito pouco e de forma duvidosa. Na verdade, ao vencer as eleições de 2014 em ambiente de forte desconfiança, a presidente renegou o discurso da campanha e adotou sem muita convicção políticas associadas a seu adversário, emulando o que seria um ciclo político com características convencionais.

Ao sofrer um previsível bombardeio pelas bases de apoio que naturalmente rejeitaram o estelionato eleitoral, o governo titubeou, desagradando a gregos e troianos. Perdeu o resto de credibilidade que ainda não havia evaporado com a revelação das “pedaladas”. A partir desse ponto, a recessão se aprofundou, colocando o país em uma das maiores crises de sua história. O governo se isolou e a presidente perdeu o mandato.

A crise econômica profunda seria suficiente para semear a onda de populismo que vem tomando conta do debate de modo cada vez mais descarado. Isso porque o retrocesso explicitou a necessidade de reformas estruturais que mexem com os privilégios cristalizados de grupos de interesse como, por exemplo, o dos funcionários públicos. Além desse fator, contribuiu também de forma decisiva o descrédito crescente da população em relação ao establishment político em função do aumento expressivo da corrupção. A institucionalização do roubo atingiu todos os partidos relevantes, autoridades dos três poderes e levou a percepção de corrupção a patamares jamais vistos no país, como mostrei neste espaço há duas semanas.

As vitórias de Trump, do Brexit e a massa de evidências contidas no estudo do CEPR mostram que crises econômicas agravadas pela falta de credibilidade das autoridades favorecem o uso da mentira e da desinformação até mesmo em países desenvolvidos, onde o eleitorado é mais educado – sobretudo com as facilidades propiciadas pela internet (veja artigo que publiquei no dia 3 de julho). É muito mais fácil fazer fumaça no Brasil, país em que a educação é uma das mais deficientes do mundo. Negar a necessidade das reformas com base no discurso de que esse é o programa “das elites” cola como goma arábica. Além disso, como é possível pedir sacrifícios à população em meio a um dos maiores festivais de patifaria da história do país?

Até partidos e políticos tradicionalmente não populistas não estão resistindo à pressão de um debate nivelado por baixo e têm contribuído para aumentar a oferta de populismo. Por incrível que possa parecer, a reforma da Previdência não é consensual no PSDB. O mesmo partido que votou contra o fator previdenciário teve que “fechar questão” em torno da reforma – coisa que, como se sabe, não significa nada na prática. O modelo analítico descrito no texto do CEPR prevê esse resultado desanimador e os dados mostram que, de fato, as previsões do modelo se materializam: o populismo tende a aumentar em partidos “ideológicos” na esteira de crises econômicas e maior desânimo do eleitor com o sistema político e as instituições.

Olhando para frente o cenário é nebuloso. De um lado, a evolução favorável da economia tende a diminuir a demanda por populismo. Mostrei na semana passada que o crescimento robusto da demanda interna e as boas perspectivas para o consumo deverão inibir a propensão do eleitorado a acreditar no conto de vigaristas, preferindo apostar em estratégias arroz com feijão. De outro lado, no entanto, a confiança no sistema político, que nunca foi das maiores, provavelmente está caindo e isso é motivo para preocupação.

A tabela abaixo mostra dados extraídos da World Values Survey (WVS), a maior investigação global, não comercial e sistemática de crenças e valores dos habitantes de quase 100 países. Algo entre 1000 e 2000 pessoas de cada país são convidadas a responder um questionário amplo, com perguntas variadas, por exemplo, sobre o interesse na política ou a confiança que depositam no governo. As respostas tipicamente envolvem selecionar uma de quatro categorias que vão de “nenhum” a “total”. Os dados da tabela mostram os resultados de algumas questões feitas nas pesquisas realizadas entre 2005 e 2009 e entre 2010 e 2014 (a última). Os números agregam as respostas cravadas em cada opção por meio da atribuição proporcional de notas de zero a cinco para “interesse”, “confiança” e “importância” respectivamente baixos ou altos.

Além do Brasil, selecionei as respostas dadas pelos alemães, que têm exibido maior resistência ao populismo, e pelos norte-americanos, que sucumbiram de forma espetacular e inesperada nas últimas eleições. Além das respostas para cinco itens da WSV que retratam o engajamento político das pessoas e a confiança que elas exibem em relação ao sistema, construí um índice que junta tudo e que batizei de “propensão ao populismo”. O índice corresponde ao inverso da média das respostas multiplicada por 100: sobe quando a confiança e o engajamento caem e vice-versa.

Os números podem ser interpretados em termos absolutos e relativos. De forma geral, brasileiros, alemães e americanos não morrem de amor pelos partidos, governo e congresso e acham que há coisas muito mais interessantes na vida do que política – as notas raramente passam de 2,5 e nunca chegam a 3,0 em 5,0.

A “propensão ao populismo” diminuiu na Alemanha entre as duas pesquisas. Em particular, a confiança dos teutônicos aumentou no período, levando o índice ao menor valor de nossa amostra na última pesquisa da WVS. Nos EUA, a disposição a acreditar em besteiras aumentou, basicamente porque a confiança dos americanos nas instituições políticas caiu. Essas tendências ajudam a entender as vitórias de Merkel e de Trump.

O quadro no Brasil é preocupante, sobretudo no que diz respeito à tendência de aumento da propensão ao populismo e ao fato de que, na partida, ela é bem maior do que a dos alemães e americanos. Tanto os indicadores de confiança quanto os de interesse e engajamento caíram expressivamente entre as duas pesquisas (a última foi feita em 2014 no Brasil). Desconfio que as gabolices dos Luízes Inácios, Renans, Gilmares, Romeros, Aécios e tantos outros tenham contribuído para empurrar o índice mais para baixo desde então. Se for assim, o desencanto crescente com a política e com os políticos tende a amortecer o efeito positivo da recuperação da economia, mantendo elevada a incerteza para o ano que vem. Se as pesquisas de opinião de hoje não mudarem até as eleições a vaca vai para o brejo.

As evidências mostram que não dá para conceber uma democracia sem surtos de populismo simplesmente porque o “eleitor racional” é um mito. A única forma de minimizar a chance de um desastre é fortalecer as instituições para limitar o poder dos populistas que eventualmente consigam ser eleitos, evitando que eles dissolvam as bases da democracia como na Venezuela, por exemplo – lembrando que lá ela já foi muito mais madura do que aqui, sem trocadilho.

A situação ideal é contar com instituições sólidas, governos sérios e oposição populista que, ao prometer o impossível, chama atenção para os problemas que devem ser atacados. O pior dos mundos é ter um governo populista e instituições fracas: essas condições empurram a oposição teoricamente responsável em direção ao populismo e podem conduzir ao autoritarismo.

* A coluna hiberna novamente por algumas semanas e volta à ativa na segunda quinzena de janeiro. Boas festas e um excelente 2018.

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Os mais pessimistas temem que a onda de populismo que infesta o mundo poderá levar ao colapso dos partidos políticos tradicionais, abalando as democracias, especialmente as assentadas em bases institucionais frágeis. Para entender o surgimento do fenômeno e como ele pode acarretar mudanças catastróficas é preciso defini-lo, saber em que condições prospera e se é possível imaginar um cenário sem o inconveniente.

Joga-se de tudo na vala do populismo. A julgar pela literatura, ele esteve presente ao longo da história em vários lugares, baseado em proposições associadas a todo espectro ideológico, da esquerda à direita. Uma varredura na mídia impressa britânica feita há alguns anos indicou que o termo foi empregado para designar uma lista extensa de políticos com pouco ou nada em comum, de Berlusconi a Chávez.

Atualmente, o populismo europeu está associado à direita nacionalista contrária ao Euro e avessa à imigração. Nos EUA, deve-se adicionar a preferência por governo enxuto, certa ambiguidade com relação aos déficits orçamentários e um receio paranoico de que os verdadeiros “valores americanos” estariam sendo destruídos por uma conspiração. Na América Latina, o fenômeno brota na esquerda, está baseado na busca por mais igualdade e é temperado por teorias de dependência em relação às potências imperialistas.

Que denominador comum é capaz de unir tendências tão diferentes?

Olhando pelo lado da oferta, o populismo pode ser caracterizado como um conjunto de ideias retiradas do repertório popular e ordenadas de forma solta para descrever a realidade em termos da contraposição entre a elite corrompida e os interesses legítimos da maioria. Também pode ser entendido a partir do estilo discursivo de políticos que logram estabelecer um elo com o povo semeando um senso de antagonismo contra o status-quo (sem o apoio de uma “ideologia”).

Quando se vai por aí, a definição deságua na ênfase em dar ao eleitor o que ele quer – algo que, convenhamos, não deveria causar estranheza em um sistema competitivo. É difícil ganhar eleições honestamente sem prestar atenção aos anseios mais imediatos do povo. Sob esse prisma, o populismo não soa como algo necessariamente pernicioso. Como identificar o ponto em que o ideal democrático de governo “do povo, pelo povo e para o povo” termina e o populismo começa?

O potencial tóxico do populismo só pode ser entendido quando o lado da demanda é considerado. A praga não existiria se o eleitor representativo fosse capaz de discernir os dilemas existentes e discriminar discursos vazios de programas fundamentados. Os desastres eleitorais têm origem na propensão do eleitorado a preferir histórias da carochinha ao invés de políticas consistentes.

A democracia tem vários paradoxos. Um dos mais perversos, sobretudo em países emergentes, é a necessidade de reformas impopulares com custos concentrados no curto prazo e benefícios espalhados no tempo. Eleitores míopes preferem negar a realidade, evitando os custos imediatos. Tentativas progressistas que evitam dourar a pílula são fadadas ao fracasso eleitoral. Quem se elege sem explicitar as intenções durante a campanha é acusado de estelionato quando tenta fazer o que é preciso. Em equilíbrio, o país fica à deriva, ora com um governo sério, mas impopular e frágil, ora com um governo popular e irresponsável. O populismo é uma escolha da sociedade. A questão é saber o que movimenta as preferências dos eleitores.

O Center for Economic Policy Research (CEPR) acaba de divulgar um excelente trabalho do economista e cientista político italiano Luigi Guiso (e coautores) baseado em uma investigação empírica minuciosa para entender os motores do populismo na Europa. O título traduzido é “Populismo: Oferta e Demanda”. Propõe-se um esquema analítico formal que explica a epidemia como o resultado da interação de políticos que topam tudo para serem eleitos e eleitores desanimados, estressados economicamente e obtusos com relação às consequências de longo prazo de suas escolhas.

O primeiro passo foi separar as plataformas populistas das não populistas. A partir da mais completa base de dados sobre atitudes, crenças e valores dos europeus, com dados desde 2002 cobrindo todos os países, os autores empregaram uma classificação dos partidos objetivamente consistente com as três noções que a Enciclopédia Britânica utiliza para caracterizar os vendedores de sonhos: (i) a presunção de que apenas eles promovem o verdadeiro interesse do povo contra as elites, (ii) a capacidade de apelar aos medos e entusiasmos dos cidadãos comuns por meio de chavões sem significado e ideias vagas e (iii) a defesa de políticas que minimizam custos de curto prazo sem levar em conta as consequências de longo prazo.

O segundo passo foi entender as escolhas do eleitorado com base em variáveis que dizem respeito à sua insegurança econômica, confiança nos partidos e nas instituições políticas, habilidade de perceber os custos das proposições, impaciência, aversão ao risco, gênero e orientação política. O estudo baseou-se em mais de 135 mil observações referentes a 24 países. Como seria de se esperar, as evidências confirmam a noção de que a demanda por populismo é maior entre pessoas pressionadas economicamente, que perderam a fé nos partidos políticos e que têm menos condições de prever os custos futuros das lorotas.

A análise mostra que as ondas de populismo surgem exatamente quando o sistema político não é capaz de dar conta de uma crise econômica profunda, não importando se o fracasso cai na conta da esquerda ou da direita. Crises menos intensas geram apenas ciclos políticos tradicionais, caracterizados pela alternância entre coalizões de um lado ou de outro, sem que o status-quo seja desafiado. A enorme insegurança gerada pela crise financeira de 2008 – exacerbada pela globalização e pelo aumento dos fluxos imigratórios – erodiu a confiança dos cidadãos na capacidade dos governos de enfrentar os novos desafios. A frustração e o desânimo do eleitorado abriu espaço para o florescimento de movimentos que propunham solucionar a crise virando a mesa. Espaços à esquerda e à direita foram ocupados de acordo com a disponibilidade.

O estudo foi moldado para explicar a onda de populismo na Europa, mas permite estabelecer um paralelo para analisar a nossa situação. A crise econômica que devastou o país nos últimos anos nasceu a partir de erros de diagnóstico do governo anterior que atribuiu a perda de desempenho da economia a um problema de insuficiência de demanda. Em condições normais, o fracasso encomendado pelas políticas equivocadas conduziria naturalmente à mudança de rumo pela via eleitoral – Dilma ganhou o segundo mandato por muito pouco e de forma duvidosa. Na verdade, ao vencer as eleições de 2014 em ambiente de forte desconfiança, a presidente renegou o discurso da campanha e adotou sem muita convicção políticas associadas a seu adversário, emulando o que seria um ciclo político com características convencionais.

Ao sofrer um previsível bombardeio pelas bases de apoio que naturalmente rejeitaram o estelionato eleitoral, o governo titubeou, desagradando a gregos e troianos. Perdeu o resto de credibilidade que ainda não havia evaporado com a revelação das “pedaladas”. A partir desse ponto, a recessão se aprofundou, colocando o país em uma das maiores crises de sua história. O governo se isolou e a presidente perdeu o mandato.

A crise econômica profunda seria suficiente para semear a onda de populismo que vem tomando conta do debate de modo cada vez mais descarado. Isso porque o retrocesso explicitou a necessidade de reformas estruturais que mexem com os privilégios cristalizados de grupos de interesse como, por exemplo, o dos funcionários públicos. Além desse fator, contribuiu também de forma decisiva o descrédito crescente da população em relação ao establishment político em função do aumento expressivo da corrupção. A institucionalização do roubo atingiu todos os partidos relevantes, autoridades dos três poderes e levou a percepção de corrupção a patamares jamais vistos no país, como mostrei neste espaço há duas semanas.

As vitórias de Trump, do Brexit e a massa de evidências contidas no estudo do CEPR mostram que crises econômicas agravadas pela falta de credibilidade das autoridades favorecem o uso da mentira e da desinformação até mesmo em países desenvolvidos, onde o eleitorado é mais educado – sobretudo com as facilidades propiciadas pela internet (veja artigo que publiquei no dia 3 de julho). É muito mais fácil fazer fumaça no Brasil, país em que a educação é uma das mais deficientes do mundo. Negar a necessidade das reformas com base no discurso de que esse é o programa “das elites” cola como goma arábica. Além disso, como é possível pedir sacrifícios à população em meio a um dos maiores festivais de patifaria da história do país?

Até partidos e políticos tradicionalmente não populistas não estão resistindo à pressão de um debate nivelado por baixo e têm contribuído para aumentar a oferta de populismo. Por incrível que possa parecer, a reforma da Previdência não é consensual no PSDB. O mesmo partido que votou contra o fator previdenciário teve que “fechar questão” em torno da reforma – coisa que, como se sabe, não significa nada na prática. O modelo analítico descrito no texto do CEPR prevê esse resultado desanimador e os dados mostram que, de fato, as previsões do modelo se materializam: o populismo tende a aumentar em partidos “ideológicos” na esteira de crises econômicas e maior desânimo do eleitor com o sistema político e as instituições.

Olhando para frente o cenário é nebuloso. De um lado, a evolução favorável da economia tende a diminuir a demanda por populismo. Mostrei na semana passada que o crescimento robusto da demanda interna e as boas perspectivas para o consumo deverão inibir a propensão do eleitorado a acreditar no conto de vigaristas, preferindo apostar em estratégias arroz com feijão. De outro lado, no entanto, a confiança no sistema político, que nunca foi das maiores, provavelmente está caindo e isso é motivo para preocupação.

A tabela abaixo mostra dados extraídos da World Values Survey (WVS), a maior investigação global, não comercial e sistemática de crenças e valores dos habitantes de quase 100 países. Algo entre 1000 e 2000 pessoas de cada país são convidadas a responder um questionário amplo, com perguntas variadas, por exemplo, sobre o interesse na política ou a confiança que depositam no governo. As respostas tipicamente envolvem selecionar uma de quatro categorias que vão de “nenhum” a “total”. Os dados da tabela mostram os resultados de algumas questões feitas nas pesquisas realizadas entre 2005 e 2009 e entre 2010 e 2014 (a última). Os números agregam as respostas cravadas em cada opção por meio da atribuição proporcional de notas de zero a cinco para “interesse”, “confiança” e “importância” respectivamente baixos ou altos.

Além do Brasil, selecionei as respostas dadas pelos alemães, que têm exibido maior resistência ao populismo, e pelos norte-americanos, que sucumbiram de forma espetacular e inesperada nas últimas eleições. Além das respostas para cinco itens da WSV que retratam o engajamento político das pessoas e a confiança que elas exibem em relação ao sistema, construí um índice que junta tudo e que batizei de “propensão ao populismo”. O índice corresponde ao inverso da média das respostas multiplicada por 100: sobe quando a confiança e o engajamento caem e vice-versa.

Os números podem ser interpretados em termos absolutos e relativos. De forma geral, brasileiros, alemães e americanos não morrem de amor pelos partidos, governo e congresso e acham que há coisas muito mais interessantes na vida do que política – as notas raramente passam de 2,5 e nunca chegam a 3,0 em 5,0.

A “propensão ao populismo” diminuiu na Alemanha entre as duas pesquisas. Em particular, a confiança dos teutônicos aumentou no período, levando o índice ao menor valor de nossa amostra na última pesquisa da WVS. Nos EUA, a disposição a acreditar em besteiras aumentou, basicamente porque a confiança dos americanos nas instituições políticas caiu. Essas tendências ajudam a entender as vitórias de Merkel e de Trump.

O quadro no Brasil é preocupante, sobretudo no que diz respeito à tendência de aumento da propensão ao populismo e ao fato de que, na partida, ela é bem maior do que a dos alemães e americanos. Tanto os indicadores de confiança quanto os de interesse e engajamento caíram expressivamente entre as duas pesquisas (a última foi feita em 2014 no Brasil). Desconfio que as gabolices dos Luízes Inácios, Renans, Gilmares, Romeros, Aécios e tantos outros tenham contribuído para empurrar o índice mais para baixo desde então. Se for assim, o desencanto crescente com a política e com os políticos tende a amortecer o efeito positivo da recuperação da economia, mantendo elevada a incerteza para o ano que vem. Se as pesquisas de opinião de hoje não mudarem até as eleições a vaca vai para o brejo.

As evidências mostram que não dá para conceber uma democracia sem surtos de populismo simplesmente porque o “eleitor racional” é um mito. A única forma de minimizar a chance de um desastre é fortalecer as instituições para limitar o poder dos populistas que eventualmente consigam ser eleitos, evitando que eles dissolvam as bases da democracia como na Venezuela, por exemplo – lembrando que lá ela já foi muito mais madura do que aqui, sem trocadilho.

A situação ideal é contar com instituições sólidas, governos sérios e oposição populista que, ao prometer o impossível, chama atenção para os problemas que devem ser atacados. O pior dos mundos é ter um governo populista e instituições fracas: essas condições empurram a oposição teoricamente responsável em direção ao populismo e podem conduzir ao autoritarismo.

* A coluna hiberna novamente por algumas semanas e volta à ativa na segunda quinzena de janeiro. Boas festas e um excelente 2018.

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