Como provar a culpa de um corrupto?
A decisão de incriminar um réu é cercada de incertezas porque as evidências são quase sempre imperfeitas
Da Redação
Publicado em 16 de julho de 2017 às 10h01.
Última atualização em 17 de julho de 2017 às 13h27.
A decisão de incriminar um réu é cercada de incertezas porque as evidências são quase sempre imperfeitas. Para dar conta do recado e evitar a condenação de inocentes, adotam-se princípios como, por exemplo, o de presunção de inocência, deslocando-se o ônus da prova à acusação e descartando-se evidências que deixam margem a dúvidas “razoáveis”.
Evidências inconclusivas tornam as decisões susceptíveis a equívocos que podem prejudicar tanto a defesa, condenando-se um inocente, quanto a acusação, absolvendo-se um culpado. Os dois tipos de erros são indesejáveis e um juiz racional e honesto deseja, naturalmente, evitá-los. No entanto, a dúvida cruel transforma o ato de julgar um réu em um exercício de minimização de perdas diante de erros inevitáveis, de um tipo ou de outro.
Formalmente, o caminho das pedras para refletir sobre escolhas nebulosas é a Teoria da Decisão Bayesiana. Digamos hipotética e irrealisticamente que seja possível (i) aquilatar todos os custos de eventuais erros de julgamento e (ii) estimar a probabilidade de que a peça acusatória esteja correta diante das evidências apresentadas. Neste caso, é muito simples formalizar o problema do juiz e obter uma regra decisória que minimize danos: ele decidirá a favor da hipótese de menor prejuízo (esperado) dado pela probabilidade de cada tipo de erro ponderada pelo tamanho do dano caso ele seja cometido.
Se os custos dos erros dos dois tipos forem iguais, o juiz simplesmente decidirá a favor do lado para o qual as evidências pendem, mesmo que a probabilidade de errar para o outro lado seja significativa. Por exemplo, se as evidências provarem a culpa do réu com 51% de probabilidade, o juiz optará pela condenação. Esse é o padrão para delitos civis ordinários, em que o prejuízo de uma parte é o ganho da outra.
A pena para quem comete crimes graves como o de corrupção é bastante pesada por envolver a perda de direitos básicos, como o de liberdade e o de se candidatar a um cargo público. Em casos desse tipo, é justo atribuir um custo maior ao erro de condenação indevida do que ao de absolvição indevida. O juiz incriminará o réu não apenas quando a probabilidade de sua culpa superar 50% à luz das evidências, mas com uma “folga” para diminuir a possibilidade do erro considerado menos desejável, que priva o sujeito de direitos básicos – in dubio pro reu.
O desconto atribuído às evidências para reduzir a chance de condenação indevida depende em certa medida da aversão ao risco de quem vai julgar e também da jurisprudência estabelecida pelo sistema legal – trata-se de um parâmetro normativo. Uma pesquisa mostrou no passado que juízes federais americanos consideravam que um conjunto de evidências não daria “margem a dúvidas razoáveis” quando fosse capaz de provar a tese com 90% de acurácia. Com este parâmetro, ajustado para balizar o julgamento de ofensas graves, a culpa do réu seria estabelecida apenas quando as provas tivessem apenas 10% de chance de estarem erradas.
A presunção de inocência retratada por este grau de aversão ao risco é consistente com a doutrina sugerida pelo jurista britânico Sir William Blackstone quando ele escreveu em meados do Séc. XVIII que “é melhor que dez pessoas culpadas escapem do que uma inocente sofra”. Se, alternativamente, um determinado sistema preferir inocentar três culpados para cada inocente condenado, é simples usar a lógica bayesiana para deduzir que as evidências contra o réu precisariam estar corretas com 75% de probabilidade para sua condenação.
Na prática, não importa saber se os juízes aplicam explicitamente o modelo bayesiano na tomada de decisões, quantificando a verossimilhanças das teses e estimando danos em caso de erros. Desconfio que na maioria das vezes os critérios sejam outros. Sejam quais forem, bayesianos, baianos ou troianos, o sistema funciona como se a seguinte receita de bolo fosse seguida: avalia-se de alguma forma o peso das provas, exigindo-se fatos mais ou menos contundentes dependendo da gravidade de cada caso.
Essa digressão motiva três pontos que a meu ver são essenciais para analisar alguns problemas de nosso cotidiano. Primeiro, a avaliação da plausibilidade de uma história a partir de evidências incompletas é uma tarefa que envolve subjetividades – as pessoas tendem, por exemplo, por abdução, a preferir as explicações que sejam mais simples mesmo que elas não provem a tese no sentido estrito do termo. Um sujeito que surpreende em seu quarto a esposa nua e sorridente com um cidadão também como veio ao mundo pode ter tido a sorte de chegar a tempo de evitar que um estuprador agredisse a amada. Você acha que esta é a história mais plausível?
Segundo, não há como evitar os erros de decisões tomadas com incerteza. A única forma de evitar totalmente a condenação de inocentes é absolver todo mundo e abrir um terreno fértil para os malandros. É importante ter em vista que evitar a todo custo um tipo de erro implica necessariamente aumentar para 100% a chance de cometer o outro. O anseio justo de não condenar um inocente tende a ter o efeito colateral de erigir a casa da mãe Joana porque pessoas desonestas podem usar o desconto excessivo dado às evidências para praticar crimes impunemente.
Terceiro, não há um princípio óbvio para nortear a escolha do tamanho do desconto a ser dado às evidências em cada caso específico. Não resta dúvida que deve prevalecer a presunção da inocência e que o ônus da prova tem que ser pesado para quem faz acusações graves. Mas quanto? Qualquer sociedade que efetivamente deseja inibir a prática de crimes como o de corrupção precisa estar preparada para punir inocentes azarados que, por uma infelicidade danada vêm-se em situações em que todas as evidências apontam contra ele.
A meu ver, a responsabilidade de um político de primeiro escalão é tão grande que a proporção 10 para 1 parece demasiadamente restritiva. Há quem argumente que em determinadas circunstâncias o ônus da prova deveria até ser revertido. Um governador que enriquece em um mandato precisa provar que é inocente e não o inverso. Quem quer se candidatar a um cargo público precisa saber que se as evidências o incriminarem, digamos, com 75% de chance elas serão consideradas suficientes para condená-lo.
Os santos que abarrotam os gabinetes com parentes, sanguessugas e patifes, que pedem empréstimos para empresários corruptos, que aceitam dinheiro vivo de empreiteiras para pagar a amante, que abrem contas no exterior e se esquecem de declará-las, que dão presentes milionários aos filhos por intermédio de empresas agraciadas com dinheiro público, que abrem um instituto que não serve para nada a não ser para lavar dinheiro, evidentemente merecem ser considerados inocentes a princípio, mas têm que estar preparados para perder direitos em uma sociedade que deseja estar livre da corrupção sempre que as evidências apontarem plausivelmente contra eles – mesmo que não definitivamente. Este deve ser considerado um ônus do poder, que pode ser evitado se o político preferir ter o privilégio de ser povo.
Não é preciso ser um gênio para desconfiar que algo soa estranho no Brasil quando o assunto é “provar” que fulano é corrupto. Não é possível que em um país que se diga decente, a melhor forma de conhecer os campeões em matéria de denúncias seja procurar nas diversas comissões de ética, tão abundantes quanto a desonestidade. É óbvio que a corrupção transformou-se em bom negócio no país, não apenas porque a justiça está preparada para firmar acordos claramente mal calibrados com facínoras, mas porque os critérios para decidir quando as evidências incriminam razoavelmente um réu são restritivos demais.
A decisão de incriminar um réu é cercada de incertezas porque as evidências são quase sempre imperfeitas. Para dar conta do recado e evitar a condenação de inocentes, adotam-se princípios como, por exemplo, o de presunção de inocência, deslocando-se o ônus da prova à acusação e descartando-se evidências que deixam margem a dúvidas “razoáveis”.
Evidências inconclusivas tornam as decisões susceptíveis a equívocos que podem prejudicar tanto a defesa, condenando-se um inocente, quanto a acusação, absolvendo-se um culpado. Os dois tipos de erros são indesejáveis e um juiz racional e honesto deseja, naturalmente, evitá-los. No entanto, a dúvida cruel transforma o ato de julgar um réu em um exercício de minimização de perdas diante de erros inevitáveis, de um tipo ou de outro.
Formalmente, o caminho das pedras para refletir sobre escolhas nebulosas é a Teoria da Decisão Bayesiana. Digamos hipotética e irrealisticamente que seja possível (i) aquilatar todos os custos de eventuais erros de julgamento e (ii) estimar a probabilidade de que a peça acusatória esteja correta diante das evidências apresentadas. Neste caso, é muito simples formalizar o problema do juiz e obter uma regra decisória que minimize danos: ele decidirá a favor da hipótese de menor prejuízo (esperado) dado pela probabilidade de cada tipo de erro ponderada pelo tamanho do dano caso ele seja cometido.
Se os custos dos erros dos dois tipos forem iguais, o juiz simplesmente decidirá a favor do lado para o qual as evidências pendem, mesmo que a probabilidade de errar para o outro lado seja significativa. Por exemplo, se as evidências provarem a culpa do réu com 51% de probabilidade, o juiz optará pela condenação. Esse é o padrão para delitos civis ordinários, em que o prejuízo de uma parte é o ganho da outra.
A pena para quem comete crimes graves como o de corrupção é bastante pesada por envolver a perda de direitos básicos, como o de liberdade e o de se candidatar a um cargo público. Em casos desse tipo, é justo atribuir um custo maior ao erro de condenação indevida do que ao de absolvição indevida. O juiz incriminará o réu não apenas quando a probabilidade de sua culpa superar 50% à luz das evidências, mas com uma “folga” para diminuir a possibilidade do erro considerado menos desejável, que priva o sujeito de direitos básicos – in dubio pro reu.
O desconto atribuído às evidências para reduzir a chance de condenação indevida depende em certa medida da aversão ao risco de quem vai julgar e também da jurisprudência estabelecida pelo sistema legal – trata-se de um parâmetro normativo. Uma pesquisa mostrou no passado que juízes federais americanos consideravam que um conjunto de evidências não daria “margem a dúvidas razoáveis” quando fosse capaz de provar a tese com 90% de acurácia. Com este parâmetro, ajustado para balizar o julgamento de ofensas graves, a culpa do réu seria estabelecida apenas quando as provas tivessem apenas 10% de chance de estarem erradas.
A presunção de inocência retratada por este grau de aversão ao risco é consistente com a doutrina sugerida pelo jurista britânico Sir William Blackstone quando ele escreveu em meados do Séc. XVIII que “é melhor que dez pessoas culpadas escapem do que uma inocente sofra”. Se, alternativamente, um determinado sistema preferir inocentar três culpados para cada inocente condenado, é simples usar a lógica bayesiana para deduzir que as evidências contra o réu precisariam estar corretas com 75% de probabilidade para sua condenação.
Na prática, não importa saber se os juízes aplicam explicitamente o modelo bayesiano na tomada de decisões, quantificando a verossimilhanças das teses e estimando danos em caso de erros. Desconfio que na maioria das vezes os critérios sejam outros. Sejam quais forem, bayesianos, baianos ou troianos, o sistema funciona como se a seguinte receita de bolo fosse seguida: avalia-se de alguma forma o peso das provas, exigindo-se fatos mais ou menos contundentes dependendo da gravidade de cada caso.
Essa digressão motiva três pontos que a meu ver são essenciais para analisar alguns problemas de nosso cotidiano. Primeiro, a avaliação da plausibilidade de uma história a partir de evidências incompletas é uma tarefa que envolve subjetividades – as pessoas tendem, por exemplo, por abdução, a preferir as explicações que sejam mais simples mesmo que elas não provem a tese no sentido estrito do termo. Um sujeito que surpreende em seu quarto a esposa nua e sorridente com um cidadão também como veio ao mundo pode ter tido a sorte de chegar a tempo de evitar que um estuprador agredisse a amada. Você acha que esta é a história mais plausível?
Segundo, não há como evitar os erros de decisões tomadas com incerteza. A única forma de evitar totalmente a condenação de inocentes é absolver todo mundo e abrir um terreno fértil para os malandros. É importante ter em vista que evitar a todo custo um tipo de erro implica necessariamente aumentar para 100% a chance de cometer o outro. O anseio justo de não condenar um inocente tende a ter o efeito colateral de erigir a casa da mãe Joana porque pessoas desonestas podem usar o desconto excessivo dado às evidências para praticar crimes impunemente.
Terceiro, não há um princípio óbvio para nortear a escolha do tamanho do desconto a ser dado às evidências em cada caso específico. Não resta dúvida que deve prevalecer a presunção da inocência e que o ônus da prova tem que ser pesado para quem faz acusações graves. Mas quanto? Qualquer sociedade que efetivamente deseja inibir a prática de crimes como o de corrupção precisa estar preparada para punir inocentes azarados que, por uma infelicidade danada vêm-se em situações em que todas as evidências apontam contra ele.
A meu ver, a responsabilidade de um político de primeiro escalão é tão grande que a proporção 10 para 1 parece demasiadamente restritiva. Há quem argumente que em determinadas circunstâncias o ônus da prova deveria até ser revertido. Um governador que enriquece em um mandato precisa provar que é inocente e não o inverso. Quem quer se candidatar a um cargo público precisa saber que se as evidências o incriminarem, digamos, com 75% de chance elas serão consideradas suficientes para condená-lo.
Os santos que abarrotam os gabinetes com parentes, sanguessugas e patifes, que pedem empréstimos para empresários corruptos, que aceitam dinheiro vivo de empreiteiras para pagar a amante, que abrem contas no exterior e se esquecem de declará-las, que dão presentes milionários aos filhos por intermédio de empresas agraciadas com dinheiro público, que abrem um instituto que não serve para nada a não ser para lavar dinheiro, evidentemente merecem ser considerados inocentes a princípio, mas têm que estar preparados para perder direitos em uma sociedade que deseja estar livre da corrupção sempre que as evidências apontarem plausivelmente contra eles – mesmo que não definitivamente. Este deve ser considerado um ônus do poder, que pode ser evitado se o político preferir ter o privilégio de ser povo.
Não é preciso ser um gênio para desconfiar que algo soa estranho no Brasil quando o assunto é “provar” que fulano é corrupto. Não é possível que em um país que se diga decente, a melhor forma de conhecer os campeões em matéria de denúncias seja procurar nas diversas comissões de ética, tão abundantes quanto a desonestidade. É óbvio que a corrupção transformou-se em bom negócio no país, não apenas porque a justiça está preparada para firmar acordos claramente mal calibrados com facínoras, mas porque os critérios para decidir quando as evidências incriminam razoavelmente um réu são restritivos demais.