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Catch 22, Star Trek e o dilema do Supremo

Julgamentos são análises probabilísticas sujeitas a erro, mesmo que na retórica complicada dos jurisconsultos pareça ser algo diferente

SESSÃO DO SUPREMO: a única forma de garantir que nenhum inocente seja condenado é inocentar todos os culpados / José Cruz/Agência Brasil
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Da Redação

Publicado em 9 de abril de 2018 às 18h01.

A controvérsia sobre a possibilidade de punir réus condenados em segunda instância colocou o Brasil em um paradoxo “catch 22”, como no ótimo livro homônimo de Joseph Heller sobre a insanidade da guerra. Aliás, recebi a notícia de que o romance está sendo adaptado em uma minissérie produzida por George Clooney. Boa sequência a “O Mecanismo”. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) correr o bicho pegará, se ficar parado será comido.

A corte poderá confirmar a jurisprudência em vigor. Ao fazer isso, contrariará um trecho da Carta Magna cuja interpretação é clara – o tal inciso LVII do artigo 5o prega a inocência até o julgamento definitivo. Por outro lado, a manutenção da prescrição atual corrige uma distorção flagrante que torna, na prática, impunes os crimes de colarinho branco – algo que não parece fazer parte do espírito da Constituição.

As opções sobre a mesa são, portanto, aceitar que o STF atue com um pouco de jeitinho ou voltar a ser o ninho dos bandidos poderosos.

A escolha seria óbvia se o que estivesse em jogo fosse simplesmente fazer o que é certo para a maioria da população – que não entende direito o teatro com um quê de ridículo protagonizado por canastrões que falam difícil vestindo uma capa preta.

Seria simples também se o critério fosse adequar o país ao que funciona no “mundo civilizado”, repetindo a expressão do magistrado que mudou recentemente de opinião sem se dar ao trabalho de explicar porque os argumentos que usou há pouco deixaram de valer.

Além disso, o custo imediato e prático do que pode ser uma heterodoxia parece ser baixo, pois as estatísticas indicam que as cortes superiores tendem a confirmar as decisões tomadas pelas primeiras instâncias na maioria esmagadora dos processos.

De resto, a jurisprudência está aí e prevaleceu na maior parte da história da Constituição de 1988.

Um país não sai da barbárie para a civilização sem um pouco de criatividade – afinal, as oportunidades não são tão abundantes. Em “A Ira de Khan”, o jovem cadete James Kirk foi o único a salvar a espaçonave cargueira Kobayashi Maru em um exercício de simulação, poupando a vida das 300 pessoas a bordo e, ao mesmo tempo, evitando a destruição de sua nave pelos Klingons. Conseguiu a proeza porque mudou as condições do teste. Sabia que estava diante de um catch 22 e não havia outra solução.

Pode-se dizer que o contexto de “Jornada nas Estrelas” não seja tão surreal como o do Brasil de hoje. Verdade, mas ainda assim a analogia é apropriada.

Em questões legais, o que parece ser óbvio nem sempre é. O linguajar hermético e embolado usado pelos togados reforça a impressão de que tudo é negociável. Ministros que achavam A, amanhã mudam para B. A justiça em tese é cega e objetiva, mas leigos conseguem prever as opiniões dos juízes X e Y a partir dos ganhadores e perdedores da decisão. Julgadores afirmam que interpretam a lei para promover a “justiça social”, como em pesquisa que o saudoso Prof. Amaury de Souza mostrou a mim inúmeras vezes.

Já que é assim, por que não olhar o quadro amplamente e fazer o que é o certo uma vez?

Os idiotas da objetividade, usando a expressão genial de Nelson Rodrigues, dizem que as instituições brasileiras estarão em xeque se o STF mantiver a jurisprudência – afinal de contas, regra é regra. Não veem – ou fingem não ver – a complexidade “shakespeariana” do novelo, usando outra expressão do dramaturgo. São mais realistas do que rei por razões doutrinárias, mas muitos (talvez a maioria) estão apenas defendendo o pequeno interesse, de A, B ou C, como ficou claro em uma das declarações mais melancólicas já produzidas nesse país.

Outra ironia é ver paladinos do “estado democrático de direito” dos dois times unidos hipocritamente para livrar a cara dos respectivos larápios.

Na coluna “Como Provar a Culpa de um Corrupto?”, que publiquei em julho do ano passado, argumentei que o combate efetivo ao crime envolve aceitar a possibilidade de condenar inocentes. Trata-se de uma realidade lúgubre, como tantas outras, mas é trivial demonstrá-la a partir da teoria que versa sobre decisões com incerteza. A única forma de garantir que nenhum inocente seja condenado é inocentar todos os culpados – outro catch 22.

No caso dos crimes do colarinho branco, esse resultado é razoavelmente intuitivo porque as evidências são imperfeitas quase que por definição. Corruptos não assinam recibos, agem por intermédio de laranjas e praticam malfeitorias que às vezes são difíceis de serem caracterizadas como, por exemplo, favorecimento a apadrinhados. Sempre podem dizer “não sei”, “não conheço”, “foi um empréstimo”, “ganhei na loteria”, “explicarei”, “é legítimo”, etc.

O segredo é achar um balanço entre os extremos e esse desafio tem cunho normativo (e dinâmico). O “mundo civilizado” presume a inocência de seus cidadãos, mas após as fases em que a plausibilidade das provas é avaliada e o réu é considerado culpado, às vezes na primeira instância, ele pode cumprir a pena e, se achar pertinente, entrar com recursos para averiguar eventuais falhas processuais.

A presidente sul-coreana, que perdeu o mandato e foi condenada a 24 anos de prisão, tinha uma amiga que usava a proximidade com o poder para acessar informações privilegiadas e forçar empresas a doarem recursos a organizações que ela controlava. As empresas admitiram os pagamentos, mas não os favores. A defesa diz que a acusação foi baseada em “inferência e imaginação”. A presidente nega os malfeitos e parece que vai recorrer – do xilindró.

A Coréia do Sul faz parte do “mundo civilizado”.

Os países sérios não encarceram cidadãos que juram serem imaculados por esporte. A questão é que o princípio de que crimes precisam ser punidos é um dos pilares da civilização do mesmo modo que o da presunção de inocência. Julgamentos são análises probabilísticas sujeitas a erro, mesmo que na retórica complicada dos jurisconsultos pareça ser algo diferente.

Um político honesto provavelmente não recebe um empresário corrupto na calada da noite sem agendamento apenas para tratar de trivialidades. Não paga inocentemente a amante com dinheiro vivo recebido de uma empreiteira. Não aceita presentes caros como imóveis. Não cria um instituto de fachada para dar “palestras” de mentirinha, cobrando os favores que prestou quando estava no poder.

Não mantém conta não declarada no exterior. Não usa um intermediário para pedir empréstimo milionário a “amigo” empresário frequentador de Brasília.

Todos esses fatos podem ser coincidências infelizes. Normalmente não são. Depois que um tribunal colegiado avalia as provas e sente o cheiro da podridão, faz sentido continuar presumindo inocência deixando marginais em liberdade?

A Constituição aparentemente diz que sim. Quem defende os réus poderosos da Lava-Jato diz que sim. Seis (ontem cinco) magistrados do STF dizem que sim. A jurisprudência em vigor no STF diz que não. Cinco magistrados do STF dizem que não. O “mundo civilizado” diz que não.

Em breve o país terá que tratar do tema novamente, pela enésima vez, com a devida vênia, pela ordem e em nome da previsibilidade jurídica.

Não dá para ficar muito otimista, para variar, mas quem sabe alguém não muda na última hora, como o cadete Kirk, contribuindo para livrar o Brasil de pelo menos um dos inúmeros paradoxos que nos condenam ao subdesenvolvimento?

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A controvérsia sobre a possibilidade de punir réus condenados em segunda instância colocou o Brasil em um paradoxo “catch 22”, como no ótimo livro homônimo de Joseph Heller sobre a insanidade da guerra. Aliás, recebi a notícia de que o romance está sendo adaptado em uma minissérie produzida por George Clooney. Boa sequência a “O Mecanismo”. Se o Supremo Tribunal Federal (STF) correr o bicho pegará, se ficar parado será comido.

A corte poderá confirmar a jurisprudência em vigor. Ao fazer isso, contrariará um trecho da Carta Magna cuja interpretação é clara – o tal inciso LVII do artigo 5o prega a inocência até o julgamento definitivo. Por outro lado, a manutenção da prescrição atual corrige uma distorção flagrante que torna, na prática, impunes os crimes de colarinho branco – algo que não parece fazer parte do espírito da Constituição.

As opções sobre a mesa são, portanto, aceitar que o STF atue com um pouco de jeitinho ou voltar a ser o ninho dos bandidos poderosos.

A escolha seria óbvia se o que estivesse em jogo fosse simplesmente fazer o que é certo para a maioria da população – que não entende direito o teatro com um quê de ridículo protagonizado por canastrões que falam difícil vestindo uma capa preta.

Seria simples também se o critério fosse adequar o país ao que funciona no “mundo civilizado”, repetindo a expressão do magistrado que mudou recentemente de opinião sem se dar ao trabalho de explicar porque os argumentos que usou há pouco deixaram de valer.

Além disso, o custo imediato e prático do que pode ser uma heterodoxia parece ser baixo, pois as estatísticas indicam que as cortes superiores tendem a confirmar as decisões tomadas pelas primeiras instâncias na maioria esmagadora dos processos.

De resto, a jurisprudência está aí e prevaleceu na maior parte da história da Constituição de 1988.

Um país não sai da barbárie para a civilização sem um pouco de criatividade – afinal, as oportunidades não são tão abundantes. Em “A Ira de Khan”, o jovem cadete James Kirk foi o único a salvar a espaçonave cargueira Kobayashi Maru em um exercício de simulação, poupando a vida das 300 pessoas a bordo e, ao mesmo tempo, evitando a destruição de sua nave pelos Klingons. Conseguiu a proeza porque mudou as condições do teste. Sabia que estava diante de um catch 22 e não havia outra solução.

Pode-se dizer que o contexto de “Jornada nas Estrelas” não seja tão surreal como o do Brasil de hoje. Verdade, mas ainda assim a analogia é apropriada.

Em questões legais, o que parece ser óbvio nem sempre é. O linguajar hermético e embolado usado pelos togados reforça a impressão de que tudo é negociável. Ministros que achavam A, amanhã mudam para B. A justiça em tese é cega e objetiva, mas leigos conseguem prever as opiniões dos juízes X e Y a partir dos ganhadores e perdedores da decisão. Julgadores afirmam que interpretam a lei para promover a “justiça social”, como em pesquisa que o saudoso Prof. Amaury de Souza mostrou a mim inúmeras vezes.

Já que é assim, por que não olhar o quadro amplamente e fazer o que é o certo uma vez?

Os idiotas da objetividade, usando a expressão genial de Nelson Rodrigues, dizem que as instituições brasileiras estarão em xeque se o STF mantiver a jurisprudência – afinal de contas, regra é regra. Não veem – ou fingem não ver – a complexidade “shakespeariana” do novelo, usando outra expressão do dramaturgo. São mais realistas do que rei por razões doutrinárias, mas muitos (talvez a maioria) estão apenas defendendo o pequeno interesse, de A, B ou C, como ficou claro em uma das declarações mais melancólicas já produzidas nesse país.

Outra ironia é ver paladinos do “estado democrático de direito” dos dois times unidos hipocritamente para livrar a cara dos respectivos larápios.

Na coluna “Como Provar a Culpa de um Corrupto?”, que publiquei em julho do ano passado, argumentei que o combate efetivo ao crime envolve aceitar a possibilidade de condenar inocentes. Trata-se de uma realidade lúgubre, como tantas outras, mas é trivial demonstrá-la a partir da teoria que versa sobre decisões com incerteza. A única forma de garantir que nenhum inocente seja condenado é inocentar todos os culpados – outro catch 22.

No caso dos crimes do colarinho branco, esse resultado é razoavelmente intuitivo porque as evidências são imperfeitas quase que por definição. Corruptos não assinam recibos, agem por intermédio de laranjas e praticam malfeitorias que às vezes são difíceis de serem caracterizadas como, por exemplo, favorecimento a apadrinhados. Sempre podem dizer “não sei”, “não conheço”, “foi um empréstimo”, “ganhei na loteria”, “explicarei”, “é legítimo”, etc.

O segredo é achar um balanço entre os extremos e esse desafio tem cunho normativo (e dinâmico). O “mundo civilizado” presume a inocência de seus cidadãos, mas após as fases em que a plausibilidade das provas é avaliada e o réu é considerado culpado, às vezes na primeira instância, ele pode cumprir a pena e, se achar pertinente, entrar com recursos para averiguar eventuais falhas processuais.

A presidente sul-coreana, que perdeu o mandato e foi condenada a 24 anos de prisão, tinha uma amiga que usava a proximidade com o poder para acessar informações privilegiadas e forçar empresas a doarem recursos a organizações que ela controlava. As empresas admitiram os pagamentos, mas não os favores. A defesa diz que a acusação foi baseada em “inferência e imaginação”. A presidente nega os malfeitos e parece que vai recorrer – do xilindró.

A Coréia do Sul faz parte do “mundo civilizado”.

Os países sérios não encarceram cidadãos que juram serem imaculados por esporte. A questão é que o princípio de que crimes precisam ser punidos é um dos pilares da civilização do mesmo modo que o da presunção de inocência. Julgamentos são análises probabilísticas sujeitas a erro, mesmo que na retórica complicada dos jurisconsultos pareça ser algo diferente.

Um político honesto provavelmente não recebe um empresário corrupto na calada da noite sem agendamento apenas para tratar de trivialidades. Não paga inocentemente a amante com dinheiro vivo recebido de uma empreiteira. Não aceita presentes caros como imóveis. Não cria um instituto de fachada para dar “palestras” de mentirinha, cobrando os favores que prestou quando estava no poder.

Não mantém conta não declarada no exterior. Não usa um intermediário para pedir empréstimo milionário a “amigo” empresário frequentador de Brasília.

Todos esses fatos podem ser coincidências infelizes. Normalmente não são. Depois que um tribunal colegiado avalia as provas e sente o cheiro da podridão, faz sentido continuar presumindo inocência deixando marginais em liberdade?

A Constituição aparentemente diz que sim. Quem defende os réus poderosos da Lava-Jato diz que sim. Seis (ontem cinco) magistrados do STF dizem que sim. A jurisprudência em vigor no STF diz que não. Cinco magistrados do STF dizem que não. O “mundo civilizado” diz que não.

Em breve o país terá que tratar do tema novamente, pela enésima vez, com a devida vênia, pela ordem e em nome da previsibilidade jurídica.

Não dá para ficar muito otimista, para variar, mas quem sabe alguém não muda na última hora, como o cadete Kirk, contribuindo para livrar o Brasil de pelo menos um dos inúmeros paradoxos que nos condenam ao subdesenvolvimento?

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