As pessoas ligam para a desigualdade?
Li na semana passada um artigo instigante publicado na edição de abril da prestigiosa revista “Nature Human Behaviour” enquanto meditava sobre um tema para a coluna. Os autores, Christina Starmans, Mark Sheskin e Paul Bloom, pertencentes ao departamento de psicologia da Universidade de Yale, fazem a seguinte provocação: por que as pessoas preferem sociedades desiguais? […]
Publicado em 17 de abril de 2017 às, 13h15.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h31.
Li na semana passada um artigo instigante publicado na edição de abril da prestigiosa revista “Nature Human Behaviour” enquanto meditava sobre um tema para a coluna. Os autores, Christina Starmans, Mark Sheskin e Paul Bloom, pertencentes ao departamento de psicologia da Universidade de Yale, fazem a seguinte provocação: por que as pessoas preferem sociedades desiguais? A pergunta é essa mesmo, sem erro de digitação.
Trata-se de assunto quentíssimo. Tem a ver com a atual divisão entre coxinhas e mortadelas, com as reformas que o governo tenta emplacar e, certamente, com a pauta que ordenará a corrida eleitoral de 2018. Além disso, o artigo ilumina alguns resultados da pesquisa recente da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, sobre os valores políticos da periferia paulistana.
Como se sabe, o estudo corroborou a conjectura do saudoso Joãozinho Trinta segundo a qual “luta de classes”, “exploração”, “revolução” e demais mitos da esquerda são coisas que interessam mais à elite intelectual e à molecada hipster do que à galera dos andares de baixo – que, supostamente, seriam as maiores vítimas do sistema.
Os mais humildes parecem mais preocupados com as falhas do governo do que com as falhas do mercado – resultado que, pensando bem, não chega a causar estranheza no Brasil. Com um estilo peculiar, o povão valoriza conceitos liberais como meritocracia, eficiência e empreendedorismo. Está mais para Hume do que para Marx.
O artigo da Nature busca harmonizar evidências empíricas aparentemente contraditórias. De um lado, há uma simpatia quase universal pela noção de igualdade. De fato, o tema tem sido valorizado em praticamente todos os discursos de líderes destacados da cena global, especialmente após a crise financeira. Segundo Barack Obama, por exemplo, a desigualdade representa o maior desafio de nosso tempo.
De outro lado, no entanto, a literatura de psicologia política e economia comportamental mostra que, quando perguntadas sobre a distribuição ideal de renda, as pessoas revelam consistentemente uma preferência por sociedades desiguais – independentemente da posição que ocupam dentro do espectro político e até mesmo faixa etária.
Por exemplo, um estudo recente do economista Dan Ariely (famoso pelo excelente documentário intitulado “(Dis)Honesty: The Truth About Lies” que pode ser visto na Netflix) mostrou que as pessoas idealizam uma sociedade em que os pertencentes ao quintil de renda superior ganham três vezes mais do que os do quintil inferior. Os autores de Yale citam estudos sugerindo que a “desigualdade ideal” na cabeça das pessoas pode ser muito maior do que a encontrada por Ariely.
Resumindo, o mesmo sujeito que parece carregar uma espécie de “gene da igualdade”, especialmente quando avalia os discursos de políticos e celebridades, desenha uma sociedade ideal marcada por desigualdade muito distante do anseio igualitário que permeia o debate público e o discurso “progressista”.
O aparente paradoxo é resolvido por meio de experimentos controlados em que o resultado equitativo não coincide necessariamente com o mais justo. Estes experimentos mostram que o ser humano tem na verdade uma enorme aversão à injustiça, algo que frequentemente é confundido com desigualdade. Entre uma distribuição desigual, mas justa e uma distribuição igual, mas injusta, os indivíduos sistematicamente preferem a primeira.
O objetivo dos autores não é, obviamente, ressaltar a diferença entre desigualdade e injustiça. O ponto, mais sutil, é que o foco atual na questão da desigualdade não tem sido moderado pela questão da justiça – que é tão ou mais importante. Como as pessoas variam em atributos que determinam seu mérito, como esforço e habilidade, e também em merecimento com base em aspectos morais, um sistema “justo” que leve essas diferenças em consideração produz resultados necessariamente desiguais.
A evidência produzida em laboratório mostra de forma robusta que, quando os dois temas são esmiuçados conjuntamente, a aparente aversão à desigualdade desaparece por completo – inclusive entre crianças. Vale a pena ler os vários exemplos citados no texto. No frigir dos ovos, as pessoas querem que o jogo seja justo ou, em outras palavras, que as oportunidades sejam iguais. Resultados diferentes contam menos.
Naturalmente, este arrazoado deixa aberta a questão do que devem ser considerados direitos basilares, independentes do mérito de cada um. Há também a possibilidade de que pessoas que não tenham aversão à desigualdade em si, preocupem-se com as consequências potenciais do fenômeno, especialmente quando ele se manifesta de forma extremada. Evidentemente, poucos discordam do fato de que a desigualdade pode ser tanto o resultado quanto a fonte de injustiças.
Ainda assim, o artigo é elucidativo ao chamar atenção para a necessidade de temperar a discussão sobre igualdade, frequentemente muito superficial e pautado mais por modismos do que por reflexão. Ajuda também a entender porque o discurso da esquerda, avesso aos mecanismos de mercado e centrado na questão da igualdade bate na trave especialmente junto a públicos pouco sofisticados e menos suscetíveis às besteiras do “politicamente correto” rasteiro e levado ao extremo.
No livro Justice: What´s the right thing to do, Michael Sandel examina as consequências perversas de se aplicar mecanismos de mercado para todos os aspectos da sociedade – seu argumento é forte e convincente. Mas, se de um lado é difícil engolir a tese de que devemos organizar a sociedade em torno de um mercado, de outro, é quase impossível contrapor a ideia de que esta é ainda a melhor forma de organizar a economia. Os mercados certamente falham, mas muito menos do que os governos. Parece que o povão está se ligando.
O Brasil ganhará se, em 2018, vencer um candidato que saiba sensibilizar as aspirações liberais dos brasileiros. A situação ainda delicada da economia, nossa propensão ao populismo e a chuva de lama que cai sobre o sistema político são motivos para ter cautela. Mas é animador ver que algumas figuras novas têm conseguido bons resultados eleitorais sem fingir que não existem custos ou dilemas econômicos.