A roubalheira tem origem em passado remoto
O mundo é desonesto. Nenhum dos 176 países cobertos na lista de corrupção percebida da Transparency International recebe a nota máxima. Na última edição, apenas 22 registraram escore igual ou maior do que 7,0 em 10,0. O Chile é o campeão da América Latina, figurando em 24º lugar com 6,6. O Brasil situa-se próximo do […]
Publicado em 5 de junho de 2017 às, 11h42.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às, 18h05.
O mundo é desonesto. Nenhum dos 176 países cobertos na lista de corrupção percebida da Transparency International recebe a nota máxima. Na última edição, apenas 22 registraram escore igual ou maior do que 7,0 em 10,0. O Chile é o campeão da América Latina, figurando em 24º lugar com 6,6. O Brasil situa-se próximo do meio da distribuição, exatamente ao lado da China, com 4,0. Por incrível que pareça, há mais de 90 países com corrupção percebida maior do que a nossa.
Seguindo a obra clássica de Raymundo Faoro, a corrupção no Brasil resulta de um processo histórico em que, nos primórdios da colonização, instituições foram formadas para perpetuar as regalias e o poder de uma burocracia administrativamente inoperante, mas muito resistente, no âmbito de um “capitalismo politicamente orientado” que abriu um fosso entre o Estado patrimonialista e a nação – especialmente após 1930.
Basta uma leitura descompromissada dos periódicos recentes para verificar que a descrição de Os Donos do Poder se non è vera, è ben trovata. Sobram indícios de que a prioridade do aparelho estatal é advogar em causa própria, frequentemente a partir de um discurso de defesa do que deveria ser o justo. Vide a diferença brutal existente entre a renda de funcionários do setor público e do setor privado para a mesma atividade – sem mencionar o fosso de produtividade existente entre os dois grupos e os privilégios não pecuniários do primeiro.
Uma questão pertinente é saber como caímos neste buraco. Que condições históricas propiciaram o florescimento de burocracias parasitas como a que tomou conta do Brasil? Além disso, dá para sonhar com um futuro melhor, menos desonesto, em que o mérito e competição em condições igualitárias sejam premiados? Os pesquisadores Eric Uslaner e Bo Rothstein escarafuncharam os dados existentes e encontraram alguns padrões interessantes para iluminar o problema. O trabalho recente intitulado The Historical Roots of Corruption: State Building, Economic Inequality and Mass Education foi publicado na edição de janeiro de 2016 da revista Comparative Politics.
Os autores detectaram a existência de uma relação inversamente proporcional entre os níveis históricos de educação no final do Século XIX e a corrupção percebida atualmente em uma amostra de 78 países para os quais há informações. Os lugares atualmente menos corruptos eram relativamente bem educados em um passado distante, não necessariamente mais ricos. Há várias razões para acreditar no vínculo entre essas variáveis. Primeiro, a educação fortalece os laços sociais entre grupos distintos, consolidando noções de cidadania e de lealdade em relação ao Estado que, por sua vez, são favoráveis à honestidade.
Segundo, a educação tende a criar um ciclo virtuoso de riqueza e igualdade, fatores materiais que costumam inibir a roubalheira. De fato, a elite tem mais dificuldade em adotar políticas socialmente prejudiciais em sociedades mais igualitárias. Além disso, populações mais educadas precisam recorrer menos a estruturas de poder clientelísticas. Terceiro, a educação propicia a criação de um mercado para a imprensa, revigorando seu papel de sentinela. Resumindo, ao prover educação em massa, o estado sinaliza a seus cidadãos que não serve a um grupo específico, estimulando a honestidade.
Por que a educação floresceu mais em uns lugares do que em outros? A existência de um passado colonial conta negativamente e, para a nossa infelicidade, um dos pontos mais críticos é o perfil dos colonos (e os objetivos da metrópole em relação à colônia). Nos lugares em que a fatia de europeus era relativamente maior, o nível educacional era também maior porque os colonos tinham um padrão de exigência em relação aos governantes locais semelhante ao que manifestavam em seus países de origem.
A evidência também sugere que os lugares em que a distribuição da propriedade da terra era mais igualitária no passado tendiam a exibir níveis educacionais mais elevados. Estes fatores indicam que colonizações com fins extrativos, caracterizadas por terem menos europeus e distribuição desigual da terra, ajudam a explicar a corrupção hoje porque, nestes lugares, não havia incentivos a prover educação de massa. Mas isso é apenas parte da história.
As trajetórias de nações independentes também corrobora a teoria. Nestes lugares, a influência da religião foi um elemento importante. A educação foi mais estimulada pelos protestantes, cujos missionários pregavam a leitura da Bíblia. Nos países católicos, a igreja temia que a alfabetização pudesse levar ao questionamento de sua autoridade, preferindo investir em educação apenas quando enfrentava concorrência (como no Canadá). Essa cunha explica a diferença no destino de Portugal e Espanha, de um lado, e Escandinávia, de outro. A Ética Protestante funcionou como obstáculo à corrupção contemporânea não apenas porque instilou a cultura do trabalho duro, mas porque favoreceu a educação.
Um resultado interessante é a importância menor da existência de instituições democráticas lá atrás para entender a corrupção no presente. No final do Século XIX, as democracias não apresentavam necessariamente os níveis educacionais maiores. A Inglaterra, a democracia mais avançada economicamente na época, introduziu educação de massa com bastante atraso, importando o modelo de nações mais autoritárias para fazer a reforma doméstica.
Nações continentais como Alemanha, Dinamarca e Suécia investiram em educação porque a elite política via a necessidade de construir uma identidade nacional unificada a partir do Estado. O sistema Sueco, por exemplo, estabeleceu que meninos e meninas devessem ser tratados da mesma forma e estudar juntos – foi introduzido em 1842. Na Itália, país relativamente corrupto hoje, metade da população era analfabeta ainda na primeira década do Século XX, especialmente na região do sul – em que a corrupção é significativamente maior do que no norte.
O lado positivo do estudo é que parece haver uma via para recuperar o tempo perdido, mas com lentidão bovina. Mudanças no nível educacional ao longo da história também ajudam a compreender a roubalheira atual, mas não tanto quanto a educação existente na partida. De fato, a correlação entre corrupção hoje e educação ontem é bem maior do que a relação entre corrupção hoje e educação hoje. Finlândia, Japão e Coreia do Sul são exemplos de países que, por razões distintas, escaparam da armadilha de um passado longínquo com pouca educação.
A roubalheira generalizada que assola o Brasil tem origem que remonta a colonização. A limpeza que parece ganhar corpo com a Lava-Jato é apenas o primeiro passo de uma longa jornada. A ponte terá que ser erguida com condições desfavoráveis: índices de corrupção ainda elevados e população com baixo nível educacional, inclinada a acreditar na heterodoxia de vendedores de sonhos. As investigações são importantíssimas, mas só seremos um país verdadeiramente honesto quando tivermos discernimento para entender que o desenvolvimento não cai do céu.