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A política da vitimização (e a ameaça do mimimi)

A vitimização autodefinida pode se manifestar de duas formas, dependendo de quem é identificado como opressor, há a vítima sistêmica e a vítima egocêntrica

Urna eletrônica (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
Urna eletrônica (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
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Celso Toledo

Publicado em 8 de maio de 2021 às, 13h24.

As vítimas estão entre os personagens principais das narrativas políticas. Na verdade, segundo as normas vigentes hoje em dia, além de merecerem consideração especial, as vítimas são comumente caracterizadas como criaturas moralmente superiores.

Isso não chega a surpreender, pois o avanço civilizatório é incompatível com o predomínio de crimes ou de estruturas que sistematicamente prejudiquem partes da sociedade. A busca por justiça (e a valorização das vítimas) é aspecto intrínseco ao desenvolvimento.

Dito isso, os alvos de crimes, bullying, perseguição, discriminação etc., são vítimas óbvias, facilmente reconhecíveis. Há, contudo, indivíduos que se percebem como vítimas, sem que essa condição seja evidente a quem vê de fora.

Essas vítimas autodefinidas têm influência política semelhante à das vítimas “convencionais” – se não for maior. Sendo assim, colocar-se como vítima pode ser uma alavanca política e social para indivíduos e grupos que saibam explorar o fenômeno.

O periódico “Political Behavior”, um dos 20 mais influentes nas áreas de sociologia e ciências políticas, publicou em janeiro um artigo sobre a natureza da vitimização autodefinida. O material é riquíssimo e traz elementos interessantes ao debate, alguns pouco intuitivos (*).

A vitimização autodefinida pode se manifestar de duas formas, dependendo de quem é identificado como opressor. A vítima “sistêmica” atribui sua adversidade a uma força maior – o próprio governo ou ordenações desenhadas em tese para beneficiar “os outros”.

A vítima “egocêntrica”, por sua vez, não discerne claramente um tirano, mas isso não a impede de sentir que obtém da vida menos do que merece. É claro que as duas manifestações não são totalmente independentes, mas a distinção entre elas é estatisticamente precisa.

Essas frustrações são canalizadas politicamente, primeiro, pela atribuição de culpa aos que se beneficiam do status quo (os “fascistas”, a “esquerda”, “as elites” etc.). Segundo, pelo apoio a atores que se colocam e são percebidos como capazes de resolver o problema.

Sendo assim, é de interesse dos políticos construir narrativas que despertem a vitimização dos eleitores, colocando-se, é claro, como salvadores. A vantagem disso é atuar na frente psicológica, evitando-se as incômodas discussões e escolhas difíceis que deveriam nortear as plataformas.

Ou seja, retratar as massas como vítimas é uma forma potencialmente eficaz de manipulação. O enredo pode se basear em coisas relativamente tangíveis como “impostos”, “corrupção”, “desigualdade”, ou em forças difusas como “a mídia”, “o establishment”, “a burguesia”.

O resultado extraordinário é que, seja qual for a história, a evidência mostra que é possível incutir um senso de coitadismo nas pessoas, mesmo em grupos que dificilmente poderiam ser enquadrados como vítimas a partir de medidas como renda, educação, raça e sexo.

Em particular, a retórica empregada por intelectuais, que sabidamente influenciam a opinião e o comportamento das massas, pode ser um instrumento eficaz de manipulação ao criar vitimização ou amplificar sentimentos preexistentes – à esquerda e à direita.

De fato, a vitimização medida pelos autores parece ser um fenômeno à parte, descolado da “realidade”. Não ocorre, por exemplo, de forma mais saliente em grupos historicamente prejudicados, como mulheres e negros. Nada impede que favorecidos se sintam vitimizados.

O traço comum que liga as pessoas que se sentem vítimas, seja lá por qual razão, é que elas nutrem uma visão antagonista em relação às “elites” e exibem atitudes antielitistas. Tendem a desconfiar mais do poder constituído e percebem a existência de mais corrupção.

Além disso, essas vítimas são menos estáveis emocionalmente, mais propensas a confiar em histórias da carochinha e a acreditar que se elas fossem “ouvidas” pelos outros, provavelmente não estariam na posição desfavorável em que se encontram.

Um resultado interessante é a inexistência de relação entre a predisposição ideológica (progressistas, independentes ou conservadores) e o tipo de vitimização. Isso não é surpresa no caso das vítimas “egocêntricas”, pois elas não identificam claramente as causas.

No entanto, é estranho observar que, dentre os indivíduos que se sentem vitimizados, não há propensão maior dos progressistas (mais preocupados com a correção de injustiças sociais) a se verem como vítimas “sistêmicas” relativamente aos conservadores.

De outro lado, há distinção entre o tipo de vitimização que políticos progressistas e conservadores tentam incutir em suas bases. O progressista tende a apontar o dedo para as iniquidades estruturais, buscando inocular um vitimismo sistêmico em seus eleitores.

O conservador, por sua vez, evita acusar diretamente o sistema, tendendo a encorajar sentimentos egocêntricos de vitimização. Criticam, por exemplo, políticas redistributivas ou imigratórias que privilegiam quem “não merece” – e não o sistema em si.

Fechando o quebra-cabeça, os dados sugerem que as duas manifestações de vitimização podem condicionar escolhas que desafiam o perfil ideológico indicado pelo indivíduo. Ou seja, ao apelar às emoções e incutir em eleitores um senso de vitimização egocêntrico, candidatos conservadores podem “roubar” votos de eleitores ideologicamente progressistas e vice-versa.

Isso não quer dizer que o tipo de vitimização não seja associado a atitudes específicas. Por exemplo, o uso do jargão “politicamente correto” (PC) é mais aceito por quem se sente vitimado pelo sistema. As egocêntricas acham que o palavrório apenas fere a liberdade de expressão.

Até certo ponto, a inoculação de um sentimento de vitimização pode ser considerada parte normal da política. Mas levado ao limite, o jogo da manipulação tende a criar divisões e ressentimentos difíceis de serem controlados – e contornados.

A racionalidade some (e o populismo prospera) quando a vitimização se descola da “realidade” de forma evidente. Tribalismos inflados por estereótipos caricaturais eficazes eleitoralmente e de grande apelo emotivo impedem a construção de consensos e facilitam a vida dos vigaristas.

Qualquer proposição originalmente correta pode se converter em aberração se radicalizada – e ser taxada corretamente de mimimi. O trem descarrila quando o debate público se transforma numa batalha ignorante de grupos que se sentem vítimas de espantalhos criados para gerar discórdia.

Esse mal é mais nocivo quando o eleitorado tem baixo nível educacional e amarga, de fato, injustiças profundas. O avanço da democracia exige reformas impopulares que trazem prosperidade e equilíbrio apenas no longo prazo. Sem diálogo racional não dá.

O estudo foi realizado nos EUA e é preciso cuidado ao generalizar resultados. Feita a ressalva, os augúrios para o Brasil de 2022 não parecem favoráveis. Tudo indica que o país terá novamente que escolher como Sofia sob uma tempestade de mimimis enquanto temas cruciais são escanteados. Nesse diapasão, corremos sério risco de perder mais quatro anos.

(*) Armaly, M. e Enders, A. (2021) “‘Why Me?’ The Role of Perceived Victimhood in American Politics”, Political Behavior, Springer.