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A música vai tocar por quanto tempo na bolsa americana?

Há 10 anos, em julho de 2007, o barco começava a fazer água nos EUA. O então CEO do Citigroup, “Chuck” Prince, soltou a seguinte frase em uma entrevista ao Financial Times: “quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas serão complicadas. Mas, enquanto a música estiver tocando, você tem que levantar e […]

BOLSA DE NOVA YORK: guardadas as devidas proporções, não há um pouco de complacência em 2017 como em 2007? / Brendan McDermid/Reuters
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Da Redação

Publicado em 31 de julho de 2017 às 12h27.

Há 10 anos, em julho de 2007, o barco começava a fazer água nos EUA. O então CEO do Citigroup, “Chuck” Prince, soltou a seguinte frase em uma entrevista ao Financial Times: “quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas serão complicadas. Mas, enquanto a música estiver tocando, você tem que levantar e dançar. Nós estamos dançando”. Alguns meses depois a música parou e o planeta inteiro dançou.

Em defesa de Prince, é preciso dizer que sua opinião era compartilhada implicitamente pela maioria. Na época da entrevista, sabia-se que a música pararia um dia e que este dia não estava muito distante. Sabia-se também que o mercado imobiliário estava aquecido demais, que os preços das casas deveriam na melhor das hipóteses parar de subir e que havia turbulências encomendadas para o futuro. Sabia-se de tudo isso, mas o clima era de euforia.

A história predominante tinha o seguinte enredo. A economia americana apresentava “bons fundamentos” e acumulava vários anos de crescimento robusto com inflação baixa. Os ciclos econômicos deveriam ser significativamente menos pronunciados do que os do passado graças em grande medida à atuação competente e previsível dos bancos centrais – a recessão de 2001, por exemplo, havia sido bastante suave quando comparada às anteriores.

O crescimento da inadimplência de créditos subprime, muitas vezes estendidos a famílias que não tinham renda, emprego ou ativos, era motivo para alguma preocupação. Estes empréstimos representavam, no entanto, uma fatia pequena do total. De resto, o mercado financeiro havia distribuído o risco eficientemente por meio de pacotes que juntavam coisas boas e coisas podres produzindo, milagrosamente, algo com as características apenas da parte boa – produtos que recebiam notas altas das agências de rating.

Em meados de 2007, o ciclo de normalização da política monetária iniciado pelo FED havia três anos estava próximo do final. As condições financeiras eram ainda frouxas, mas a economia claramente perdia força. O Presidente do FED, Alan Greenspan, preocupava-se com a exuberância do mercado imobiliário e alertava para a possibilidade de correções de preços muito maiores do que as esperadas. Ainda assim, os economistas atribuíam probabilidade relativamente baixa para uma recessão nos próximos trimestres, da ordem de 15%.

A bolsa de valores operava nas alturas. O índice S&P 500 acumulava alta de mais de 7% no ano – 80% desde o vale atingido havia quatro anos. Havia convivas empanturrados exibindo sinais de embriaguez, mas eles não impediram que o banquete continuasse a todo vapor. Deu no que deu. Julho de 2007 marcou o início da reversão das condições de liquidez que resultaria na crise. Nos próximos 12 meses, a bolsa despencaria 17%. Em 2008, mais um tombo de 25% e o mundo estaria atolado em um buraco do qual ainda não saiu totalmente.

Ninguém foi capaz de prever que instituições financeiras importantes alavancadas várias vezes abririam o bico. Ninguém foi capaz de prever que o governo salvaria algumas e deixaria outras quebrarem, instalando o pânico. Ninguém foi capaz de prever as intervenções no mercado que ajudaram a alimentar a aversão ao risco. Ninguém foi capaz de prever os efeitos colaterais de médio prazo como, por exemplo, a introdução de regulações restritivas e o surgimento de demandas protecionistas que freariam a globalização. Por estas razões, ninguém foi capaz de prever o armagedom – por mais que queiramos acreditar, ninguém é capaz de prever o futuro.

Mas, com o benefício da história, dá para dizer que houve uma boa dose de complacência dos analistas e dos mercados diante de sinais de enfraquecimento da economia e de uma música que estava ficando meio dissonante – não era preciso prever o caos. Convenhamos, quando famílias sem qualquer renda ou colateral recebem crédito para comprar uma casa e estes créditos, depois de empacotados, são rotulados de seguros há algo estranho no mercado. O filme The Big Short conta a história do pessoal que sentiu o cheiro de podridão antes da casa cair.

Era tentador invocar a hipótese de mercados eficientes e bolar uma história que “provasse” que o otimismo tinha fundamentos. A maior distorção, no entanto, é dada pela lógica da indústria de fundos. Um ambiente competitivo em que administradores cuidam do dinheiro de gente que não quer saber dos detalhes dos investimentos e só se importa com o valor das cotas. Neste esquema, poucos gestores têm reputação suficiente para deixar o baile enquanto muita gente estiver dançando. Somem-se as hesitações do governo em evitar o surgimento da bolha e, depois, em lidar com a crise quando os dominós começaram a cair e tem-se a grande recessão.

Guardadas as devidas proporções, não há um pouco de complacência em 2017 como em 2007?

Outro dia tive acesso a um relatório escrito no final de junho pelo time de economistas de um banco estrangeiro. A meu ver, uma das equipes mais competentes da indústria. Leio suas análises com deleite sempre que posso. Elas normalmente trazem pontos novos e, até onde é possível dizer, o pessoal tem “acertado”. O título desse último texto pode ser traduzido livremente como “pode relaxar que está tudo bem”. Na verdade, os autores reafirmam uma análise feita em março que recomendou operar a favor dos ativos de risco. Ou seja, quem seguiu o que eles vêm falando ganhou dinheiro e, portanto, pode-se dizer que eles têm cumprido bem sua missão. O objetivo aqui é mostrar o pensamento dos melhores analistas.

A história que eles vêm contando é basicamente a seguinte. A economia global está se recuperando com alguma consistência, afastando riscos de uma recaída deflacionária. Ao mesmo tempo, a inflação está surpreendendo para baixo, o que abre espaço aos bancos centrais para pilotar a normalização das políticas monetárias com cautela. Entre os perigos, mencionam a virtual convicção de que não existe “solução boa” ao problema “épico” de crédito na China. Falam também dos problemas estruturais da Europa e das incertezas em torno das iniciativas de Trump e das negociações do Brexit, que demonstram a dificuldade de transformar populismo em realidade. Naturalmente, enumeram também a situação “esticada” das bolsas e dos juros na linha do que escrevi aqui nas últimas semanas.

No final, conclui-se que os riscos são razoáveis, mas “não devem se materializar nos próximos trimestres” – sem maiores explicações. A parte mais legal é a conclusão, com o seguinte raciocínio: as ações estão caras, mas os juros estão muito baixos e os spreads estão apertados. A recuperação da economia, a volatilidade baixa e a possibilidade de que haja estímulos adicionais tornam a bolsa “a opção menos desvantajosa”. Eles são cuidadosos em dizer que suas recomendações valem para o curto prazo, um ou dois trimestres. Fico pensando no que uma empresa ou investidor com horizonte maior do que dois trimestres deve fazer diante de um cenário em que a recomendação é tomar risco porque esta é a opção menos ruim.

Enquanto isso as bolsas batem recordes, os juros de longo prazo permanecem baixos, mesmo com o FED avisando que começará a desarmar o afrouxamento quantitativo – lentamente, é verdade, mas com efeitos que nenhum modelo é capaz de prever com acurácia. Esse ambiente sossegado tem sido determinante em criar a sensação no Brasil de que a situação hoje é muito parecida à que prevalecia antes das gravações dos irmãos Batista.

Vamos comemorar e torcer para que a música continue tocando por mais do que apenas “um ou dois trimestres”. E se for para tocar Prince de novo, que seja “Life Can Be So Nice” e não “Chaos And Disorder”.

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Há 10 anos, em julho de 2007, o barco começava a fazer água nos EUA. O então CEO do Citigroup, “Chuck” Prince, soltou a seguinte frase em uma entrevista ao Financial Times: “quando a música parar, em termos de liquidez, as coisas serão complicadas. Mas, enquanto a música estiver tocando, você tem que levantar e dançar. Nós estamos dançando”. Alguns meses depois a música parou e o planeta inteiro dançou.

Em defesa de Prince, é preciso dizer que sua opinião era compartilhada implicitamente pela maioria. Na época da entrevista, sabia-se que a música pararia um dia e que este dia não estava muito distante. Sabia-se também que o mercado imobiliário estava aquecido demais, que os preços das casas deveriam na melhor das hipóteses parar de subir e que havia turbulências encomendadas para o futuro. Sabia-se de tudo isso, mas o clima era de euforia.

A história predominante tinha o seguinte enredo. A economia americana apresentava “bons fundamentos” e acumulava vários anos de crescimento robusto com inflação baixa. Os ciclos econômicos deveriam ser significativamente menos pronunciados do que os do passado graças em grande medida à atuação competente e previsível dos bancos centrais – a recessão de 2001, por exemplo, havia sido bastante suave quando comparada às anteriores.

O crescimento da inadimplência de créditos subprime, muitas vezes estendidos a famílias que não tinham renda, emprego ou ativos, era motivo para alguma preocupação. Estes empréstimos representavam, no entanto, uma fatia pequena do total. De resto, o mercado financeiro havia distribuído o risco eficientemente por meio de pacotes que juntavam coisas boas e coisas podres produzindo, milagrosamente, algo com as características apenas da parte boa – produtos que recebiam notas altas das agências de rating.

Em meados de 2007, o ciclo de normalização da política monetária iniciado pelo FED havia três anos estava próximo do final. As condições financeiras eram ainda frouxas, mas a economia claramente perdia força. O Presidente do FED, Alan Greenspan, preocupava-se com a exuberância do mercado imobiliário e alertava para a possibilidade de correções de preços muito maiores do que as esperadas. Ainda assim, os economistas atribuíam probabilidade relativamente baixa para uma recessão nos próximos trimestres, da ordem de 15%.

A bolsa de valores operava nas alturas. O índice S&P 500 acumulava alta de mais de 7% no ano – 80% desde o vale atingido havia quatro anos. Havia convivas empanturrados exibindo sinais de embriaguez, mas eles não impediram que o banquete continuasse a todo vapor. Deu no que deu. Julho de 2007 marcou o início da reversão das condições de liquidez que resultaria na crise. Nos próximos 12 meses, a bolsa despencaria 17%. Em 2008, mais um tombo de 25% e o mundo estaria atolado em um buraco do qual ainda não saiu totalmente.

Ninguém foi capaz de prever que instituições financeiras importantes alavancadas várias vezes abririam o bico. Ninguém foi capaz de prever que o governo salvaria algumas e deixaria outras quebrarem, instalando o pânico. Ninguém foi capaz de prever as intervenções no mercado que ajudaram a alimentar a aversão ao risco. Ninguém foi capaz de prever os efeitos colaterais de médio prazo como, por exemplo, a introdução de regulações restritivas e o surgimento de demandas protecionistas que freariam a globalização. Por estas razões, ninguém foi capaz de prever o armagedom – por mais que queiramos acreditar, ninguém é capaz de prever o futuro.

Mas, com o benefício da história, dá para dizer que houve uma boa dose de complacência dos analistas e dos mercados diante de sinais de enfraquecimento da economia e de uma música que estava ficando meio dissonante – não era preciso prever o caos. Convenhamos, quando famílias sem qualquer renda ou colateral recebem crédito para comprar uma casa e estes créditos, depois de empacotados, são rotulados de seguros há algo estranho no mercado. O filme The Big Short conta a história do pessoal que sentiu o cheiro de podridão antes da casa cair.

Era tentador invocar a hipótese de mercados eficientes e bolar uma história que “provasse” que o otimismo tinha fundamentos. A maior distorção, no entanto, é dada pela lógica da indústria de fundos. Um ambiente competitivo em que administradores cuidam do dinheiro de gente que não quer saber dos detalhes dos investimentos e só se importa com o valor das cotas. Neste esquema, poucos gestores têm reputação suficiente para deixar o baile enquanto muita gente estiver dançando. Somem-se as hesitações do governo em evitar o surgimento da bolha e, depois, em lidar com a crise quando os dominós começaram a cair e tem-se a grande recessão.

Guardadas as devidas proporções, não há um pouco de complacência em 2017 como em 2007?

Outro dia tive acesso a um relatório escrito no final de junho pelo time de economistas de um banco estrangeiro. A meu ver, uma das equipes mais competentes da indústria. Leio suas análises com deleite sempre que posso. Elas normalmente trazem pontos novos e, até onde é possível dizer, o pessoal tem “acertado”. O título desse último texto pode ser traduzido livremente como “pode relaxar que está tudo bem”. Na verdade, os autores reafirmam uma análise feita em março que recomendou operar a favor dos ativos de risco. Ou seja, quem seguiu o que eles vêm falando ganhou dinheiro e, portanto, pode-se dizer que eles têm cumprido bem sua missão. O objetivo aqui é mostrar o pensamento dos melhores analistas.

A história que eles vêm contando é basicamente a seguinte. A economia global está se recuperando com alguma consistência, afastando riscos de uma recaída deflacionária. Ao mesmo tempo, a inflação está surpreendendo para baixo, o que abre espaço aos bancos centrais para pilotar a normalização das políticas monetárias com cautela. Entre os perigos, mencionam a virtual convicção de que não existe “solução boa” ao problema “épico” de crédito na China. Falam também dos problemas estruturais da Europa e das incertezas em torno das iniciativas de Trump e das negociações do Brexit, que demonstram a dificuldade de transformar populismo em realidade. Naturalmente, enumeram também a situação “esticada” das bolsas e dos juros na linha do que escrevi aqui nas últimas semanas.

No final, conclui-se que os riscos são razoáveis, mas “não devem se materializar nos próximos trimestres” – sem maiores explicações. A parte mais legal é a conclusão, com o seguinte raciocínio: as ações estão caras, mas os juros estão muito baixos e os spreads estão apertados. A recuperação da economia, a volatilidade baixa e a possibilidade de que haja estímulos adicionais tornam a bolsa “a opção menos desvantajosa”. Eles são cuidadosos em dizer que suas recomendações valem para o curto prazo, um ou dois trimestres. Fico pensando no que uma empresa ou investidor com horizonte maior do que dois trimestres deve fazer diante de um cenário em que a recomendação é tomar risco porque esta é a opção menos ruim.

Enquanto isso as bolsas batem recordes, os juros de longo prazo permanecem baixos, mesmo com o FED avisando que começará a desarmar o afrouxamento quantitativo – lentamente, é verdade, mas com efeitos que nenhum modelo é capaz de prever com acurácia. Esse ambiente sossegado tem sido determinante em criar a sensação no Brasil de que a situação hoje é muito parecida à que prevalecia antes das gravações dos irmãos Batista.

Vamos comemorar e torcer para que a música continue tocando por mais do que apenas “um ou dois trimestres”. E se for para tocar Prince de novo, que seja “Life Can Be So Nice” e não “Chaos And Disorder”.

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