A aritmética desagradável das reformas
Ultrapassada a novela do impeachment – a ver, pois o desfecho envolveu uma gambiarra que engorda a crônica dos bananais latino-americanos – o obstáculo agora é avançar nas reformas para mudar o rumo da economia. Qual é o tamanho da encrenca a ser dissolvida por Temer? Para que todos estejam na mesma página, o primeiro […]
Da Redação
Publicado em 5 de setembro de 2016 às 13h23.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 17h56.
Ultrapassada a novela do impeachment – a ver, pois o desfecho envolveu uma gambiarra que engorda a crônica dos bananais latino-americanos – o obstáculo agora é avançar nas reformas para mudar o rumo da economia. Qual é o tamanho da encrenca a ser dissolvida por Temer?
Para que todos estejam na mesma página, o primeiro objetivo é evitar que o endividamento público atinja um patamar que seja considerado impagável. Se isto ocorrer, o imbróglio que ainda pode ser equacionado organizadamente será resolvido de forma caótica, por meio de descontrole inflacionário. Não custa lembrar que os custos sociais de uma saída desorganizada são muito maiores, especialmente para os menos favorecidos.
A situação é preocupante porque a dívida brasileira, além de crescente, tem tamanho que destoa do verificado em países de nossa liga. Como não há uma fórmula mágica para saber o ponto de saturação, as situações são avaliadas por meio de comparações. Agências de classificação de risco e investidores fazem isso e, por essa razão, é recomendável estar bem em fotos nas quais aparecemos ao lado de nossos pares.
A dívida bruta brasileira, um pouco acima de 75% do PIB, é bem maior do que a dos países emergentes pertencentes ao G-20, cujo endividamento costuma girar em torno de 40% do PIB. Além disso, nosso passivo ganha a medalha de prata em termos de crescimento no último quinquênio. Atrás da Argentina, o que não chega a ser um refresco – a inflação está em 40% no vizinho. Dentre os países menos desenvolvidos, nossa dívida é inferior apenas ao de lugares que passaram por guerras em passado não muito distante, como Croácia, Egito e Ucrânia.
Os países entram nesta situação quando as despesas do governo crescem sistematicamente mais do que as receitas. Em nosso caso, a bomba relógio foi armada na Constituição de 1988. A irresponsabilidade fiscal do período recente fez o país andar para trás e acabou antecipando para este momento particularmente desfavorável um debate que cedo ou tarde teria que ser travado.
Para gerir a crise, o novo governo propõe um ajuste gradual do buraco herdado que, segundo a versão oficial, foi elevado em nome da “governabilidade”. A primeira linha da tabela mostra que a pretensão é eliminar em 2019 o déficit que, em 2016, deverá atingir incríveis 170 bilhões de reais.
Durante o período de ajuste, a dívida continuará crescendo como proporção do PIB. Para que não fosse assim, seriam necessários superávits equivalentes à diferença entre os juros e o crescimento da economia. Isso é politicamente inviável.
Como o ajuste fiscal “possível” não evita o crescimento da dívida, ele só será palatável aos detentores da dívida – entre os quais estão a maior parte dos brasileiros – se vier acompanhado de medidas que ataquem a raiz do problema fiscal. A proposta de estabelecimento de uma regra que impede os gastos de crescerem mais do que a inflação tem este objetivo.
A segunda linha da tabela mostra a implicação da medida usando previsões de inflação consensuais. Basicamente, a ideia é reduzir à metade o ritmo de crescimento das despesas daqui para frente. De fato, os gastos cresceram 12% ao ano entre 2012 e 2015 e, em média, poderão crescer 6% até 2019 – 4,5% a partir do momento em que a meta de inflação for cumprida.
Matematicamente, há apenas uma trajetória para o crescimento das receitas que é simultaneamente compatível com a meta de superávit primário e a variação das despesas estipulada pela emenda do “teto” – ela pode ser vista na terceira linha da tabela. Note-se que o plano parará de pé apenas se as receitas líquidas crescerem quase o dobro do que vêm crescendo. A análise supõe que Estados e municípios não atrapalharão, contrariando o que tem ocorrido.
Resumindo, o plano é convencer um povo acostumado a contar com um Estado gastador desde o descobrimento a aceitar que o ritmo de crescimento das despesas públicas seja reduzido pela metade e, de quebra, que a velocidade de aumento das receitas seja dobrada, de preferência sem elevação de impostos. Tudo isso para que, eventualmente, em um momento posterior a 2019, mediante esforço adicional, nossa dívida finalmente pare de crescer. A mesma dívida que hoje aparece como uma bolinha preta no caule de vistosa jabuticabeira.
O ajuste se estenderá no tempo, será obviamente dolorido, difícil de ser explicado e terá que ser compartilhado por uma população sistematicamente desinformada por trapaceiros que, por exemplo, dirão o ajuste faz parte da agenda de quem quer a volta da escravidão. Haverá casos particulares dramáticos, que serão mostrados em horário nobre. Tudo isso em uma situação em que prevalece a percepção de que o Legislativo e o Judiciário são povoados por uma turma que advoga em causa própria e se dá bem independentemente do que se passa com o país. Moleza?
O governo sabe que precisa avançar a agenda para evitar o caos econômico. São raposas que operam bem o “presidencialismo de coalizão” e ironicamente essa é a única razão para ter alguma esperança. Mas haverá condições para colocar o ovo de pé? Em situações em que o cobertor é curto demais, como parece ser o caso, a aceleração da inflação costuma fazer parte serviço. Talvez tenhamos já contratado os serviços do dragão. Não para o futuro próximo, quando as coisas felizmente parecerão se acomodar, mas para daqui uns anos. Como na Argentina.
Ultrapassada a novela do impeachment – a ver, pois o desfecho envolveu uma gambiarra que engorda a crônica dos bananais latino-americanos – o obstáculo agora é avançar nas reformas para mudar o rumo da economia. Qual é o tamanho da encrenca a ser dissolvida por Temer?
Para que todos estejam na mesma página, o primeiro objetivo é evitar que o endividamento público atinja um patamar que seja considerado impagável. Se isto ocorrer, o imbróglio que ainda pode ser equacionado organizadamente será resolvido de forma caótica, por meio de descontrole inflacionário. Não custa lembrar que os custos sociais de uma saída desorganizada são muito maiores, especialmente para os menos favorecidos.
A situação é preocupante porque a dívida brasileira, além de crescente, tem tamanho que destoa do verificado em países de nossa liga. Como não há uma fórmula mágica para saber o ponto de saturação, as situações são avaliadas por meio de comparações. Agências de classificação de risco e investidores fazem isso e, por essa razão, é recomendável estar bem em fotos nas quais aparecemos ao lado de nossos pares.
A dívida bruta brasileira, um pouco acima de 75% do PIB, é bem maior do que a dos países emergentes pertencentes ao G-20, cujo endividamento costuma girar em torno de 40% do PIB. Além disso, nosso passivo ganha a medalha de prata em termos de crescimento no último quinquênio. Atrás da Argentina, o que não chega a ser um refresco – a inflação está em 40% no vizinho. Dentre os países menos desenvolvidos, nossa dívida é inferior apenas ao de lugares que passaram por guerras em passado não muito distante, como Croácia, Egito e Ucrânia.
Os países entram nesta situação quando as despesas do governo crescem sistematicamente mais do que as receitas. Em nosso caso, a bomba relógio foi armada na Constituição de 1988. A irresponsabilidade fiscal do período recente fez o país andar para trás e acabou antecipando para este momento particularmente desfavorável um debate que cedo ou tarde teria que ser travado.
Para gerir a crise, o novo governo propõe um ajuste gradual do buraco herdado que, segundo a versão oficial, foi elevado em nome da “governabilidade”. A primeira linha da tabela mostra que a pretensão é eliminar em 2019 o déficit que, em 2016, deverá atingir incríveis 170 bilhões de reais.
Durante o período de ajuste, a dívida continuará crescendo como proporção do PIB. Para que não fosse assim, seriam necessários superávits equivalentes à diferença entre os juros e o crescimento da economia. Isso é politicamente inviável.
Como o ajuste fiscal “possível” não evita o crescimento da dívida, ele só será palatável aos detentores da dívida – entre os quais estão a maior parte dos brasileiros – se vier acompanhado de medidas que ataquem a raiz do problema fiscal. A proposta de estabelecimento de uma regra que impede os gastos de crescerem mais do que a inflação tem este objetivo.
A segunda linha da tabela mostra a implicação da medida usando previsões de inflação consensuais. Basicamente, a ideia é reduzir à metade o ritmo de crescimento das despesas daqui para frente. De fato, os gastos cresceram 12% ao ano entre 2012 e 2015 e, em média, poderão crescer 6% até 2019 – 4,5% a partir do momento em que a meta de inflação for cumprida.
Matematicamente, há apenas uma trajetória para o crescimento das receitas que é simultaneamente compatível com a meta de superávit primário e a variação das despesas estipulada pela emenda do “teto” – ela pode ser vista na terceira linha da tabela. Note-se que o plano parará de pé apenas se as receitas líquidas crescerem quase o dobro do que vêm crescendo. A análise supõe que Estados e municípios não atrapalharão, contrariando o que tem ocorrido.
Resumindo, o plano é convencer um povo acostumado a contar com um Estado gastador desde o descobrimento a aceitar que o ritmo de crescimento das despesas públicas seja reduzido pela metade e, de quebra, que a velocidade de aumento das receitas seja dobrada, de preferência sem elevação de impostos. Tudo isso para que, eventualmente, em um momento posterior a 2019, mediante esforço adicional, nossa dívida finalmente pare de crescer. A mesma dívida que hoje aparece como uma bolinha preta no caule de vistosa jabuticabeira.
O ajuste se estenderá no tempo, será obviamente dolorido, difícil de ser explicado e terá que ser compartilhado por uma população sistematicamente desinformada por trapaceiros que, por exemplo, dirão o ajuste faz parte da agenda de quem quer a volta da escravidão. Haverá casos particulares dramáticos, que serão mostrados em horário nobre. Tudo isso em uma situação em que prevalece a percepção de que o Legislativo e o Judiciário são povoados por uma turma que advoga em causa própria e se dá bem independentemente do que se passa com o país. Moleza?
O governo sabe que precisa avançar a agenda para evitar o caos econômico. São raposas que operam bem o “presidencialismo de coalizão” e ironicamente essa é a única razão para ter alguma esperança. Mas haverá condições para colocar o ovo de pé? Em situações em que o cobertor é curto demais, como parece ser o caso, a aceleração da inflação costuma fazer parte serviço. Talvez tenhamos já contratado os serviços do dragão. Não para o futuro próximo, quando as coisas felizmente parecerão se acomodar, mas para daqui uns anos. Como na Argentina.