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75 anos da ONU, multilateralismo e as empresas

Não é novidade para ninguém, mas nós sentimos em diferentes níveis que nosso mundo de hoje, mais do que nunca, é um só

ONU: hoje protege os direitos humanos, fornece ajuda humanitária, promove o desenvolvimento sustentável e defende o direito internacional (Phil Roeder/Getty Images)
ONU: hoje protege os direitos humanos, fornece ajuda humanitária, promove o desenvolvimento sustentável e defende o direito internacional (Phil Roeder/Getty Images)
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Carlo Pereira

Publicado em 15 de setembro de 2020 às, 12h05.

Última atualização em 15 de setembro de 2020 às, 13h43.

A ONU chega aos 75 anos em meio à maior crise do nosso tempo, que ocorre em um mundo já fraturado pela desigualdade, impactos ambientais, ataques à democracia e pressão sobre o multilateralismo.

A Organização das Nações Unidas celebra seu aniversário após uma profunda reforma. Criada a partir de um esforço coletivo entre países para estabelecer a paz após a Segunda Guerra, a ONU, por meio de suas agências, fundos e programas, apoia milhões de pessoas em todos os países, protege os direitos humanos, fornece ajuda humanitária, promove o desenvolvimento sustentável e defende o direito internacional.

A crise do nosso tempo foi iniciada por uma crise ambiental, que gerou crises sanitária, econômica e humanitária em quase todas as nações. Evidencia a interdependência entre o ser humano e a natureza e mostra que esses desafios não respeitam fronteiras e seu enfrentamento demanda uma atuação conjunta global entre governos, empresas e sociedade civil. Como disse o secretário-geral da ONU, António Guterres, ninguém está a salvo a não ser que todos estejam. Na atual crise dos valores iluministas, precisamos extrair lições desse momento para mitigarmos os efeitos negativos de nossas atividades e construirmos
sociedades mais resilientes. Para a já presente crise climática, Barack Obama, ponderou que somos a primeira geração a sentir os efeitos das mudanças do clima e a última que pode fazer algo a respeito.

O multilateralismo não está posto apenas para enfrentar os problemas, mas também para aproveitar oportunidades comuns. Ian Bremmer entende que a globalização é a humanidade aproveitando melhor nossas capacidades e conhecimentos humanos coletivos. Temos agora a chance e a necessidade de reiniciar o capitalismo, criando uma sociedade melhor. Os mais de USD 15 trilhões previstos pelos pacotes de recuperação econômica, muitos dos quais já
direcionados a estímulos sustentáveis, podem contribuir para a formação de um mundo mais verde, inclusivo e íntegro.

Bill Gates, que em 2015 previu uma crise oriunda de um vírus zoonótico, em um artigo intitulado “The Case for Multilateralism”, defende que o progresso não é inevitável. É o resultado de uma série de escolhas. Isso acontece porque pessoas de todo o mundo decidem trabalhar juntas na solução de problemas globais. Destaca ainda que enfrentar os desafios sozinho é uma prática que vai contra a construção de um mundo mais equânime e seguro.

Há muito vento contrário. A desigualdade vem crescendo fortemente. O mundo pré pandemia já registrava o maior índice de desigualdade das últimas três décadas. Além disso, a população mostrava seu descontentamento com a representação política e a degradação da estrutura democrática. Isso fica evidente na expectativa da consultoria Maplecroft, que previu grandes insurgências sociais em mais de 70 países em 2020 contra 47 em 2019.

Com a pandemia, esses problemas ficam mais latentes. Falhas estruturais de nações em todo o mundo são desnudadas, assim como a incapacidade de muitos países se recuperarem – segundo estudos, 37 países estão nesta condição. Com isso, a falta de oferta de serviços básicos aumentará em um ambiente de mais desemprego e maior vulnerabilidade socioeconômica. Essas questões, somadas às mudanças do clima, ciberespaço, desinformação, outras pandemias, são transfronteiriças e demandam uma atuação coletiva. Esta não é uma corrida, nem um jogo de soma zero, mas uma equação onde todos perdem.

Ao levar esse contexto para o ambiente dos negócios, há uma insegurança generalizada somada a uma expectativa crescente para que as empresas assumam o protagonismo nessa transição para uma economia de stakeholders. O professor George Serafeim cita a famosa frase de Abraham Lincoln utilizada na campanha antiescravagista nos EUA, quando a sociedade norte-americana exigia a abolição: “opinião pública é tudo”. No caso atual, a frase foi empregada para mostrar que aquelas empresas que atenderam a esse chamado da sociedade, ou seja, implementaram mais efetivamente fatores ESG – sigla em inglês para ambiental, social e governança –, foram mais valorizadas nas últimas décadas.

O zeitgeist – palavra alemã que se refere ao clima cultural e intelectual da época – muda de geração para geração. Cabe lembrar que estamos, segundo o J.P. Morgan, durante a grande transferência, na qual mais de USD 30 trilhões passarão dos baby boomers para os millennials e geração z, formada por pessoas como Greta Thunberg, que externalizam em alto e bom tom suas frustrações. Lembremos da participação de Thunberg em Davos, quando questionou como as gerações anteriores ousam roubar-lhe os sonhos, fazendo referência a inação frente à crise climática.

A sociedade – e essa nova geração mais do que qualquer outra – espera que o setor empresarial promova impacto positivo sustentado no longo prazo, e as empresas precisam adequar suas operações a essa nova realidade. Por exemplo, apesar da crise econômica que reduziu drasticamente a produção industrial, o preço da permissão para emissão gases de efeito estufa do mercado europeu aumentou fortemente. Provavelmente, devido aos pacotes de recuperação econômica que visam uma retomada mais verde.

As empresas são criações sociais e o mercado é reflexo do ethos do momento. Fato é, estamos cada vez mais interconectados e mais cientes da interdependência com a natureza. Assim, existe um movimento crescente de empresas que alinham seus propósitos aos anseios da sociedade, desenhando uma relação sólida e de longo prazo com seus funcionários, clientes, fornecedores, governos, acionistas, investidores e sociedade em geral. Lucro e propósito passaram a caminhar conjuntamente. A atuação focada na regeneração da natureza, internalização dos direitos humanos e ativismo empresarial encontra eco em imperativos
impostos pela ética contemporânea, além de ser essencial para o desenvolvimento econômico dos negócios. A adoção contundente e crescente de fatores ESG pelo mercado financeiro deixa isso evidente.

O Pacto Global convidou CEOS de todo o mundo a participarem ativamente desta transição para uma economia de stakeholders, fortalecendo o multilateralismo. Esta carta-compromisso, assinada por mais de 1 mil presidentes de empresas, será entregue agora em setembro para o secretário-geral da ONU, durante a Assembleia Geral.

Isso ocorre no início da Década da Ação, pois faltam 10 anos para 2030, ano em que o mundo deve atingir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – e isso só acontecerá com o envolvimento profundo do setor empresarial, a partir de um trabalho conjunto. A maior crise da contemporaneidade pode, na verdade, ser apenas um wake up call para o que está por vir.

Por isso, como diz Tania Cosentino, CEO da Microsoft Brasil, essa não é a hora para sermos otimistas ou pessimistas, mas sim para sermos ativistas. Vamos juntas e juntos partir para a ação coordenada e direcionada pela Agenda Global de Sustentabilidade, que tem como objetivo equacionar esses grandes desafios da atualidade.

Carlo Pereira, diretor-executivo da Rede Brasil do Pacto Global. O Pacto Global é maior iniciativa de sustentabilidade corporativa do mundo.