Lata velha ou joia rara?
Em se tratando de carro clássico, onde um desavisado só vê ferrugem, o expert enxerga ouro - ou diamante
Publicado em 13 de agosto de 2019 às, 16h00.
Convenhamos, as fotos do carro neste post provocam as mais diversas reações, menos a indiferença. Não é todo dia que a gente se depara, em ambientes dito civilizados, com um automóvel tão maltratado pela passagem do tempo, pela ausência de brilho, desalinhado, amassado, riscado, carcomido, condenado até — ao mesmo aparentemente.
Ao primeiro olhar para esse, vá lá, calhambeque, se conclui que foi achado em um ferro velho — ou para lá se dirige. Ou então se tenta prestar mais atenção para ver o que se esconde por trás desta espécie com ares de sobrevivente de um cenário à la Blade Runner — filme de ficção científica de 1982 que se passa em (vejam a coincidência!) 2019, em uma decadente e futurista cidade de Los Angeles.
Bem, estamos em São Paulo, voltemos aos nossos carrinhos.
Quem escolheu a segunda opção, ou seja, entender quem é ou quem foi este sujeito motorizado não vai perder seu tempo. Trata-se de um tipo decano em sua categoria, modelo tão respeitado em sua época que está a caminho de tomar um banho, mudar de roupa e se colocar em pedestais de verdadeiras obras de artes. E quem diz isso não ou eu, não, mas os fatos que envolvem essa beldade maltratada.
Antes de falar mais do nosso astro, um rápido desvio no caminho, mas estamos indo na mesma direção.
Os modelos clássicos estão no meu radar por estes tempos. A sincronicidade de Jung talvez dê conta de explicar isso: nem sempre as coisas acontecem por acaso… Por causa de um livro que escrevo sobre os 25 anos da Audi no Brasil, saí atrás de modelos da marca (ou da sua família) que entraram para história e, por algum motivo, estão por aqui. E não é que caiu em minhas mãos a notícia de que um colecionador de São Paulo é o feliz proprietário de um dos poucos exemplares que restam do W 52C, de 1937, saído da linha de montagem com a denominação Wanderer? Aqui cabe um parêntese: a Audi é resultado da fusão de Horch, DKW, Audi e Wanderer, dando origem à Auto Union, que, por sua vez, viria se unir com a NSU até chegar na Audi que conhecemos hoje.
Muito prazer! Fecho o parêntese.
Evidentemente, trata-se de uma raridade. O W 52C, todo original, está com o motor de 6 cilindros no lugar, mas precisa de uma, digamos, lubrificadinha para entrar em funcionamento e, quem sabe, atingir os 115 km/h que promete. O carro foi adquirido no final da década de 1980, “por um valor de um carro seminovo mediano”, segundo o discreto dono, e, desde então, espera uma oportunidade de ser restaurado, em uma operação que irá trazer vida a toda a sua originalidade. Depois de pronto, quanto valerá — se for colocado à venda, evidentemente? Quanto um outro colecionador amante de carros clássicos estiver disposto a pagar. Adianto: não vai ser pouco, a julgar pelas movimentações desse mercado.
E com essa deixa das cifras volto ao nosso ator principal.
Veja o exemplo de Maserati 5000 GT Coupe by Ghia, de 1961, que a RM Sotheby’s, tida como uma das maiores casas de leilão de automóveis-investimentos, estima vender por um valor que varia de US$ 500 mil a US$ 700 mil. Sim, daria para comprar boa parte dos modelos dos sonhos tinindo de novos, mas esse montante tem seus motivos. A história dá conta de que o 5000 GT foi desenvolvido a partir de um pedido do xá do Irã Mohammad Reza Pahlavi, que queria um carro de rua com motor V8 de 5.0 litros, o mesmo utilizado pelos bólidos de competição da Maserati.
Queria pouco, não?
A encomenda deu tão certo que o 5000 GT — nascido da costela, digo, do chassi do cupê 3500 GT — estreou no Salão de Turim, na Itália, em 1959 e, diante da recepção calorosa do público, a marca decidiu produzi-lo em maior escala. Ainda assim, foram feitas apenas 34 unidades até 1965, quando saiu de linha. O exemplar que está sendo leiloado é o 18º.
E por que essa aparência desgastada? Depois de alegrar a vida de donos ilustres, entre eles Ferdinando Innocenti, fundador de Lambretta, o 5000 GT passou de mão em mão, até ser praticamente abandonado na Arábia Saudita. A quem possa interessar: sua cor original é prata (não parece, sabemos), rodou apenas 15 mil quilômetros e o estepe, acreditem, não foi utilizado.
Depois de restaurado, gastando-se provavelmente a mesma quantia desembolsada para comprá-lo, o carro vai valer mais que um irmão zero-quilômetro, não apenas por ser o que é, mas também pela história que carrega.
E então, trata-se de lata velha ou joia?
*Chico Barbosa é doutor em comunicação e semiótica, jornalista, escritor e editor CBNEWS