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O péssimo exemplo da Beija-Flor

Que a contravenção sempre teve um papel importante no carnaval do Rio de Janeiro, como tão tranquilamente afirmou Neguinho da Beija Flor, poucas pessoas poderiam contestar. Mas o fato é que o patrocínio da Guiné Equatorial ao enredo da Beija Flor foi além. Ele fez uma ligação direta entre um governo ditatorial e sanguinário com o enredo de uma escola de samba popular, e que foi escolhida a campeã do […] Leia mais

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Branding, Consumo e Negócios

Publicado em 20 de fevereiro de 2015 às, 13h11.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 08h08.

Que a contravenção sempre teve um papel importante no carnaval do Rio de Janeiro, como tão tranquilamente afirmou Neguinho da Beija Flor, poucas pessoas poderiam contestar. Mas o fato é que o patrocínio da Guiné Equatorial ao enredo da Beija Flor foi além. Ele fez uma ligação direta entre um governo ditatorial e sanguinário com o enredo de uma escola de samba popular, e que foi escolhida a campeã do carnaval carioca de 2015.

Comprar o enredo da escola não é novidade. Muitas marcas de bens de consumo já fizeram este caminho. A Pantene e a Vila Isabel, em 2011, cantaram em conjunto a relação do cabelo com a história da humanidade e do samba. Em 2013 a Tom Maior teve o patrocínio das camisinhas Prudence, cantando em seus versos “Seja prudente, previna-se então. Curta a vida com paixão”. Se no primeiro caso a união entre enredo e patrocínio foi adequada, no segundo foi utilizada para passar uma mensagem positiva da importância do uso do preservativo. Nenhuma empresa com uma marca decente correria o risco de ver uma mensagem negativa sendo transmitida por seu patrocínio. E nenhuma escola de samba deveria servir de veículo para mensagens negativas.

E este é o péssimo exemplo da Beija Flor. Ela incluiu no seu enredo as “belezas” de um país que, segundo a ONG Freedom House, é “o pior do pior” quando se fala de liberdades políticas ou civis. Onde, segundo o relatório “US Trafficking in Persons” de 2012, há tráfico de pessoas para trabalhos forçados e prostituição, e onde a ONU afirma que menos da metade da população tem acesso à água potável e 20% das crianças morrem antes de completar cinco anos. Péssimo para a imagem da Beija Flor, péssimo para a imagem do carnaval do Rio de Janeiro e, inclusive, péssimo para a imagem do Brasil no contexto mundial.

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As escolas de samba são produtos de sua imagem, assim como marcas e empresas. E, portanto, tem responsabilidade sobre as mensagens que transmitem à sua comunidade, aos seus fãs e à sua audiência durante os desfiles.

Me espanta ver que a repercussão não está sendo maior. Em 2011, a marca Zara foi envolvida em um caso em que um de seus fornecedores estava se utilizando de trabalho escravo no centro de São Paulo. A marca sofreu furiosos protestos online e promessas de boicotes aos seus produtos. Em meados dos anos 90, a Nike foi envolvida no uso de mão de obra infantil por parte dos seus fornecedores em países do sudeste asiático. Suas ações tiveram forte baixa, e até hoje o escândalo é lembrado por muitos consumidores. Se nestes casos as empresas prometeram rever, e de fato reviram, suas políticas de contratação de fornecedores, o diretor artístico da Beija Flor diz que “quem se incomoda com patrocínio é burro”. Não, Fran Sérgio, quem não se incomoda com isso é burro. E absolutamente inconsequente.

Tutu Alicante, um dos principais críticos do regime político da Guiné Equatorial, disse que o ditador do país “não dá a mínima para o samba, na verdade. A Beija-Flor foi só mais uma peça de propaganda da ditadura dele.” Sim, Beija-Flor, você foi usada como peça de propaganda. Se o carnavalesco comemora que ele conseguiu doar 4.000 fantasias para a comunidade de Nilópolis, ele deveria pensar nas consequências que o patrocínio teve na educação e saúde da comunidade da Guiné Equatorial.

Mas nós também temos que pensar nessas consequências. Nós somos os consumidores do carnaval do Rio de Janeiro, dos ingressos do Sambódromo, dos patrocinadores da Liga das Escolas de Samba e da transmissão da Rede Globo. Portanto, podemos fazer valer do nosso direito de escolha ao lembrar que a Beija Flor aceitou o patrocínio, que o enredo foi transmitido ao vivo, e que os jurados premiaram o desfile com o título do carnaval 2015.

Esta na hora das organizações, inclusive as escolas de samba, entenderem que seu poder de comunicação e influência é enorme, e que elas devem se utilizar deste poder com responsabilidade. Pois se o tema da falta de água e da corrupção foi preponderante nas fantasias dos bloquinhos populares por todo o Brasil, a única escola a abordar um dos temas foi a X9 Paulistana.

Está na hora das poderosas Escolas de Samba do Rio de Janeiro assumirem a responsabilidade que possuem. E está na hora de nós, como consumidores, passarmos a cobra-las por isso.