A carcaça do leão Cecil e o poder do “consumidor esclarecido”
Há pouco menos de um mês, o mundo ficou estarrecido em função da morte do leão Cecil, caçado pelo dentista americano Walter James Palmer que o atraiu para fora da reserva onde era monitorado pelo governo do Zimbábue e o acertou com uma flecha, para depois de mais de 40 horas de caçada matá-lo com uma arma, e arrancar sua cabeça e sua pele, usadas como troféu pelos participantes da […] Leia mais
Publicado em 11 de agosto de 2015 às, 14h59.
Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às, 07h57.
Há pouco menos de um mês, o mundo ficou estarrecido em função da morte do leão Cecil, caçado pelo dentista americano Walter James Palmer que o atraiu para fora da reserva onde era monitorado pelo governo do Zimbábue e o acertou com uma flecha, para depois de mais de 40 horas de caçada matá-lo com uma arma, e arrancar sua cabeça e sua pele, usadas como troféu pelos participantes da caçada.
Após a repercussão mundial conquistada pelo episódio, o dentista teve que desparecer das redes sociais, e teve que fechar também o seu consultório, localizado em Minneapolis, cidade norte-americana do estado de Minnesota. A revolta da população fez de Palmer o principal símbolo a ser combatido, mas não foi o único.
Na semana passada, numa notícia que teve pouca repercussão no Brasil, as três principais empresas áreas norte americanas anunciaram que iriam parar de transportar carcaças de animais, especialmente aquelas utilizadas como troféus de caça pelos adeptos desta prática. A primeira a adotar a medida foi a Delta Airlines, no dia 3 de Agosto, e foi rapidamente seguida pela United Airlines e pela American Airlines.
“Com efeito imediato, a Delta proíbe, em todo o mundo, o transporte de carga de troféus de leões, leopardos, elefantes, rinocerontes e búfalos”, disse a companhia em sua nota à imprensa. Anterior à esta decisão, a Delta exigia que os troféus transportados cumprissem de forma rigorosa todos os regulamentos governamentais relativos às espécies, mas após a repercussão do caso Cecil resolveu deixar de fazer esse tipo de transporte.
Mas o que isso tem a ver com o consumidor?
Muitas vezes nos esquecemos que as empresas não tem ideologias definidas por si próprias. Apesar de frequentemente as personalizarmos e as dotarmos de características humanas e, portanto, assumirmos que elas possuem vontades e interesses próprios, as empresas são reflexo das pessoas que lá trabalham. Sua visão e valores são passiveis de alterações e mudanças. E as pessoas que as constituem são tão influenciadas e pressionadas pelos assuntos cotidianos como qualquer indivíduo.
Muito mais do que manipular a sociedade, como pregam alguns, elas são influenciadas por ela, e tomam decisões por pressão dessa sociedade. Por que as empresas aéreas americanas não proibiam o transporte de carcaças de animais antes da morte de Cecil? Simplesmente porque não haviam sido pressionadas o suficiente para fazê-lo.
A crença nas empresas como entidades manipuladoras vem do enorme poder de comunicação e influência que exercem, especialmente pela posição privilegiada e unilateral que possuíam anteriormente. Elas detinham grandes verbas, e podiam propagar suas ideias e pensamentos de maneira muito mais intensa do que qualquer indivíduo ou grupos social. Mas esse fato agora mudou. Muitos grupos, ou mesmo indivíduos, conseguem ter um poder de comunicação e, por consequência, uma influência social tão grande quanto a de grandes empresas. E isso nos “empodera” enquanto indivíduos, mas também nos traz uma grande responsabilidade.
Os consumidores do século XXI devem tomar para si a responsabilidade sobre o que consomem. Não escolhem apenas bons produtos, mas escolhem também o processo de captação da matéria-prima, de produção e de descarte dos materiais. Escolhem a maneira como os produtos serão testados antes de entrarem no mercado, como serão comercializados e como os lucros das empresas serão apropriados e utilizados. Os consumidores dão o tom da ética, dos valores e dos impactos que as empresas trarão para a sociedade e para o meio ambiente. Um novo processo, ainda no início, mas tão desafiador quanto as promessas de melhoria que ele traz.
Hoje os consumidores não querem seus cosméticos testados em animais, pressionando para que legislações sejam feitas e valorizando as empresas que não utilizam essa prática (veja aqui), se preocupam com quem costura os produtos que utilizam no seu dia a dia através de pressões por boicote e ações de comunicação (veja aqui e link para vídeo aqui), criticam empresas que impactam o meio ambiente e forçam que novas políticas sejam adotadas (veja aqui) e buscam intensamente se informar sobre quanto saudáveis são os alimentos processados (veja aqui).
As empresas respondem a isso parando de testar em animais, se preocupando com as condições de trabalho dos funcionários de seus fornecedores, adotando políticas ambientais e trabalhando em opções mais saudáveis de alimentos. Não ainda de maneira a mudar por completo o nosso panorama de negócios, mas sem dúvida exercendo uma pressão sem precedentes no meio empresarial.
Os profissionais de marketing devem estar preparados para cada vez mais dividir o controle de seus processos com os consumidores, e a própria atividade de marketing deve ser transformada num processo intenso de co-criação, dispersa dentro da empresa e fora dela.
Espero que este seja apenas o início de uma transformação na qual cada vez mais o consumidor se torne um “consumidor esclarecido”, no termo utilizado pelo filósofo francês Gilles Lipovetsky, e que essas mudanças cheguem a tempo de construirmos uma sociedade melhor, apenas por utilizarmos as nossas pressões e nosso poder como consumidores e como cidadãos.