Ciência

Lentidão contra ebola é lição contra covid-19, diz médico do remdesivir

André Kalil, médico brasileiro pesquisador há 30 anos na Universidade de Nebraska, fala à EXAME sobre o promissor tratamento contra o coronavírus

André Kalil: médico há 30 anos nos Estados Unidos começou protocolo para tratamento com remdesivir na Universidade de Nebraska (im Gruber/The New York Times/Fotoarena)

André Kalil: médico há 30 anos nos Estados Unidos começou protocolo para tratamento com remdesivir na Universidade de Nebraska (im Gruber/The New York Times/Fotoarena)

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Clara Cerioni

Publicado em 25 de maio de 2020 às 17h24.

Última atualização em 25 de maio de 2020 às 20h12.

A devastadora epidemia de ebola, que assolou países da África em 2014, ensinou importantes lições a André Kalil, infectologista brasileiro e professor da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, sobre como enfrentar doenças que se alastram rapidamente.

O médico, de 54 anos, lidera a pesquisa científica que encontrou um promissor remédio contra o novo coronavírus, o remdesivir. A terapia já foi aprovada por todas as instâncias de saúde do governo americano, como o Food and Drugs Administrations (FDA) e o National Institute of Health (NIH). Agora, entra em sua segunda fase de testes.

"Na epidemia de ebola, o processo de desenvolvimento de protocolos de pesquisa foi muito lento e a resposta demorou a vir. Quando o estudo começou a se desenvolver de fato, a epidemia já estava no final e não foi possível completá-lo", diz Kalil.

Nascido em Bagé, no Rio Grande do Sul, ele trabalha há 30 anos como médico nos EUA. Kalil considera que uma descoberta de vacina para a doença, que já infectou 5 milhões de pessoas e matou 350 mil em todo o mundo, "nos aproximará da cura", mas sabe que para isso é preciso garantir acesso de toda a população às doses.

Kalil concedeu uma entrevista à EXAME por telefone, na última sexta-feira, 22, relatou os resultados encontrados em sua pesquisa e falou sobre seu "cauteloso otimismo" com a descoberta de uma vacina. Leia os principais trechos da conversa:

Como a chegada da pandemia do novo coronavírus mudou sua rotina de pesquisa?

Desde a epidemia de ebola, em 2014, nós começamos a desenvolver uma unidade de biocontenção e aprendemos muito mais sobre como cuidar dos pacientes, como desenvolver projetos de pesquisa para tratamento de doenças que não têm terapias específicas ainda.

Muito se aprendeu naquele momento do ebola, uma das lições foi trabalhar em conjunto com centros europeus e africanos e a Organização Mundial da Saúde, por exemplo. Mas o que de fato aconteceu naquele período é que o processo de desenvolvimento de protocolos de pesquisa foi muito lento, a resposta demorou a vir. Quando o estudo começou a se desenvolver de fato, a epidemia já estava no final na África e não foi possível completá-lo. Outros estudos feitos na época não tiveram um rigor científico confiável e a epidemia ficou sem nenhum tipo de descoberta terapêutica.

Mas essa lição que a gente aprendeu realmente acabou sendo importante agora com a covid-19, porque antes mesmo da epidemia chegar aqui nos Estados Unidos nós já estávamos desenvolvendo um protocolo de pesquisa com o remdesivir, um remédio antiviral, já usado para tratar outras doenças. Tínhamos só alguns casos no país quando começamos a nos preparar, mas já tínhamos, obviamente, a ideia de que isso poderia se alastrar como foi na China e na Europa.

Então, começamos a trabalhar rapidamente para que tivéssemos um protocolo pronto para quando os primeiros pacientes chegassem. E a gente conseguiu não só desenhar o protocolo, mas aprová-lo em todas as instâncias de regulamentação. Em 21 de fevereiro, éramos a única universidade com um ensaio clínico de tratamento desenhado.

Quando os primeiros pacientes começaram a chegar?

Nossos primeiros pacientes chegaram em fevereiro, no cruzeiro Diamond Princess, que tinha passageiros com cidadania americana. Quinze deles foram trazidos para cá. Naquele momento nenhum dos pacientes estava enfermo, mas com o passar dos dias alguns começaram a precisar de tratamento hospitalar.

Quando eles foram para o hospital, nós já estávamos com o protocolo na mão aprovado. Foi que a gente conseguiu incluir o primeiro paciente no teste clínico. Dali em diante, começamos a trabalhar em termos não só de dar oportunidade para pacientes participarem do estudo, mas também a trabalhar com outros hospitais que queriam fazer parte desse ensaio clínico randomizado. Conseguimos rapidamente levantar quase 70 centros hospitalares diferentes — 50 dos EUA e 20 de fora.

Quais os resultados que vocês obtiveram?

Agora no final de abril, nós terminamos a primeira parte do ensaio clínico, com mais de 1.000 pacientes dos EUA, Singapura, Japão, Coreia do Sul, Alemanha, Dinamarca, Espanha e Grécia. Na primeira etapa, metade recebeu Remdesivir e outra metade placebo. Os resultados mostraram que houve uma recuperação quatro dias mais rápida dos pacientes que receberam Remdesivir se comparados aos que receberam placebo.

E o próximo passo?

Já estamos na segunda parte do ensaio clinico. Faz duas semanas que incluímos o primeiro paciente que vai receber uma combinação de Remdesivir e Baricitinib [uma droga usada para aliviar os sintomas da artrite reumatoide]. Vão ser ao menos 600 pacientes, mas nenhum vai receber placebo, todos vão receber remdesivir que se mostrou promissor.

É importante ressaltar que essa rapidez e eficiência não comprometem o rigor científico das nossas pesquisas que são randomizadas, com teste duplo-cego e placebo. Porque se não fica muito difícil de entender o que funciona e o que não funciona, se não houver um grupo controle.

Quais são os desafios que vocês têm encontrado?

Conseguir não só cuidar dos pacientes, mas também descobrir novas terapias e diagnósticos tem sido o desafio. Fazer os dois ao mesmo tempo, mas vejo que estamos conseguindo vencer nesse momento.

Entender a complexidade da situação, e os perigos de se sobrecarregar o sistema de saúde, mas ao mesmo tempo promover os protocolos de pesquisa.

A pesquisa que desenvolvem recebe suporte do governo federal?

Esse estudo é 100% financiado pelo National Institutes of Health [Instituto Nacional de Saúde, o órgão semelhante ao Ministério da Saúde no Brasil], que é um órgão subordinado ao governo federal.

Aqui no Brasil, o governo liberou a prescrição da cloroquina para todos os casos de covid-19. Nos EUA, o presidente Donal Trump também é um entusiasta do medicamento. Quais as evidências científicas que há até o momento sobre esse remédio para o tratamento do novo coronavírus?

Tanto a cloroquina como a hidroxicloroquina são medicações que realmente não existem dados científicos da eficiência contra a  covid-19, nesse momento. O que se sabe, na verdade, é que também existem riscos significativos em termos de segurança para os pacientes.

Até agora, aqui nos EUA, a única recomendação da Food and Drug Administration [FDA, que autoriza ou rejeita protocolos de terapia médicas] para o uso desses remédios é em situação de pesquisa médica, apenas. Não é uma medicação recomendada fora do contexto de pesquisa, em função de não se ter dados científicos sobre a eficácia, além de existir dados que corroboram o problema de segurança para os pacientes. Essa é a recomendação que temos e vamos seguir.

Eu não tenho que entrar em aspectos políticos, porque meu trabalho é científico e é isso que temos hoje. Se futuramente houver estudos científicos, com rigor de pesquisa, que comprovem a eficácia e segurança dessas medicações, certamente elas poderão ser usadas.

Cientistas de todo o mundo dizem que a cura da covid-19 só chegará a partir da descoberta de uma vacina. Como está seu otimismo em relação a uma possível vacina?

Eu diria que estou cautelosamente otimista com a vacina. Já existem algumas candidatas, que parecem ser promissoras, mas todas em fase de teste. Mas existe uma corrida bastante grande para o desenvolvimentos das vacinas, tanto na área governamental quanto na privada.

O que realmente eu não posso prever é exatamente o tempo que pode levar. A estimativa nos EUA é de que se possa ter uma vacina provavelmente para o final do ano, começo do ano que vem. Agora, o que é importante colocar aqui é que vacinas certamente vão nos aproximar da cura, mas não serão a cura total.

Para isso, a vacina tem que ser 100% eficaz e todo o mundo precisa tomar a dose para se imunizar. Ou seja, a cura para a covid-19 depende da efetividade e da disponibilidade para a população da vacina.

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