TMC: O especialista explica que apenas parte do pênis fica para fora do corpo, tendo uma extensão, não visível, dentro do homem (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
Estadão Conteúdo
Publicado em 19 de dezembro de 2022 às 08h28.
Era meia-noite de um dia comum de 2012 quando João*, de 61 anos, acordou com o latido dos cachorros. Ele saiu da cama para descobrir se alguém tentava entrar em sua casa, localizada na zona rural de uma cidade baiana, e chegou a ver os bandidos de longe, no escuro. Foi quando um deles disparou um único tiro, acertando a virilha do fazendeiro e decepando parte do pênis. A história só teve final feliz no final de setembro deste ano, quando ele passou por uma cirurgia de reconstrução peniana desenvolvida por um médico urologista brasileiro.
“Eu fiquei defeituoso. Não conseguia nem urinar. Quase que eu morri, mas agora tudo vai mudar”, disse ele, pouco antes da intervenção. Um dia após o processo, que começou às 15h e terminou por volta de 22h, João disse que não sentiu dor e não via a hora de retirar as bandagens. Ele teve alta dois dias depois da cirurgia, sem nenhuma complicação ou necessidade de bolsa de sangue.
Ao todo, sete pessoas já passaram pelo procedimento inovador criado pela equipe do médico Ubirajara Barroso, chefe do serviço de urologia do Hospital Universitário Prof. Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também é coordenador da disciplina de urologia. Seis dos pacientes passaram pela Mobilização Total dos Corpos (TCM, na abreviação em inglês) por intermédio do Sistema Único de Saúde (SUS), sendo João o único a realizar a cirurgia de forma particular.
O especialista explica que apenas parte do pênis fica para fora do corpo, tendo uma extensão, não visível, dentro do homem. Em média, a parte que enxergamos corresponde a apenas 2/5 do órgão, enquanto os outros 3/5 ficam fixos na bacia, garantindo a ereção. A ideia de Barroso foi relativamente simples: puxar a parte interna para fora.
“O que nós fazemos na cirurgia é destacar essa porção do corpo cavernoso do osso e levar tudo para a superfície. É como um iceberg: tem uma porção pequena acima da água e uma grande porção abaixo da água. O pênis pequeno é só a ponta desse iceberg, então nós retiramos a parte de ‘dentro da água’ e colocamos na superfície”, afirma.
Apesar da teoria simplificada, o procedimento nunca havia sido feito no mundo. A primeira vez que o especialista pôde comprovar o funcionamento da técnica foi em 2019, em um menino que teve o pênis arrancado por um cachorro aos 8 meses de idade.
O caso, que ganhou as páginas policiais em meados de 2000, aconteceu em Itapicuru, a cerca de 215 km de Salvador, na Bahia. O cão da família arrancou o pênis do garoto, que teve o órgão completamente amputado. Na época, a mãe foi aconselhada a realizar uma cirurgia de redesignação sexual no bebê, para que ele se tornasse do sexo feminino. Ela não aceitou.
Por volta dos 11 anos de idade, André* passou pela primeira cirurgia com o médico Ubirajara Barroso. Utilizando uma técnica anterior ao TCM, o especialista baiano conseguiu recuperar a uretra do menino, que urinava por um orifício. Era a segunda cirurgia deste tipo realizada no Brasil e teve sucesso. “Fizemos uma espécie de enxerto de pele para que ele tivesse o aspecto de uma genitália masculina”, explica.
Entretanto, os hormônios de André já estavam se manifestando com a puberdade. “Ele se masturbava pegando no períneo, uma área próxima ao anus, debaixo do escroto. E aí, quando ele já tinha quase 18 anos, veio a ideia de tentarmos”, afirma o médico.
No caso do jovem, seria difícil colocar uma prótese peniana, visto que não havia muito a ser reaproveitado como base. Além disso, uma prótese inflável, que ele teria de acionar quando quisesse manter relações sexuais, custa em torno de R$ 40 mil e a cirurgia não é feita pelo SUS. Por fim, a pele usada para revestir a prótese é de outra parte do corpo (como braço, por exemplo,) e não possui terminações nervosas como um órgão sexual - o que impossibilita o prazer da masturbação.
A TMC usa o tecido peniano já existente na parte interna, destacando-o do osso e recolocando-o um pouco mais externo. Por ser feita com esse tecido, que é capaz de ereção, não é necessário uma prótese. No caso de Jorge, o pênis foi do zero a oito centímetros. “Ele garante que sente prazer na masturbação e em breve deve tentar penetração, pois soube que está ‘engatilhando’ um namoro”, afirma.
Ainda assim, os médicos se questionavam se o que o garoto sentia era realmente um orgasmo, visto que ele nunca havia tido um pênis para comparar. Foi desta forma que encontraram um segundo paciente.
O segundo a passar pela técnica foi Moacir*, que tem transtornos psiquiátricos. Em um surto psicótico, ele arrancou o próprio pênis, sobrando apenas cerca de oito centímetros. Anos após a crise e sob controle, ele procurou o médico na tentativa de recuperar o órgão.
Hoje, após o procedimento, o pênis possui 12,5 centímetros e é capaz de proporcionar prazer semelhante ao órgão sem intervenção segundo o médico. “Esse também se masturba tranquilo, diz que é como antes e está supercontente”, resume.
O primeiro a tentar penetração foi Carlos*, um homem casado que sofreu de câncer de pênis e, por causa da doença, perdeu quatro centímetros do órgão. De acordo com o médico supervisor da Disciplina de Câncer de Pênis da Sociedade Brasileira de Urologia (SBU), José de Ribamar Rodrigues Calixto, há a expectativa de que a TCM seja cada vez mais usada nos casos relacionados a essa doença.
A depender do estágio do tumor, pode ser necessário retirar todo o falo, mas, em casos menos avançados do câncer, é possível que a amputação de metade do órgão seja suficiente. “Há uma estimativa de que o homem consiga penetrar com oito centímetros de pênis externo em ereção. Mesmo que você faça amputação da metade do pênis, dificilmente terá esse tamanho para conseguir voltar a penetrar. Além disso, muitas vezes temos que reconstruir a uretra no períneo e eles urinam sentados”, diz Calixto.
Após a cirurgia, Carlos ficou com cerca de 11,5 centímetros e já retomou a vida sexual. Barroso revela que ele confirmou sentir orgasmo como antes. “Ele está penetrando inclusive por cima da parceira, que é uma penetração difícil por ter uma angulação maior. Ou seja, não é apenas o coito com uma mulher ‘por cima’, que é mais fácil, mas com ele por cima”, afirma o criador da técnica.
O quarto desafio da equipe médica baiana foi conseguir não apenas aumentar, mas também tornar mais grosso um caso de micropênis. “Foi o caso mais desafiador e o que mais demorei”, diz.
Dentre as dificuldades, estava o fato de Reinaldo* já ter um pênis bem formado, ainda que inapto para penetração, mas com aspecto e outras funcionalidades regulares. “Um cara com um pênis assim está desesperado, todos os casos envolvem (sentimento de) responsabilidade, mas esse eu não poderia deixar dar errado”, diz.
Apesar da dificuldade, o paciente não só passa bem como está namorando e faz coito com penetração. Conforme o médico, ele passou de 2,5 centímetros para 9,5 centímetros, além do avanço da largura.
O representante da SBU destacou que o urologista Ubirajara Barroso já deu palestras para os médicos associados para que o procedimento seja feito em outros Estados. Por enquanto, apenas uma cirurgia de TCM foi feita fora de solo baiano, sendo o quinto no Brasil. Trata-se de um paciente gaúcho, de Porto Alegre.
Na época, Barroso viajou até o Rio Grande do Sul e realizou a cirurgia junto com um colega. Por não se tratar de um paciente dele, o médico não lembra com clareza o comprimento atual do pênis, mas afirma que o homem ganhou oito centímetros logo após a cirurgia.
O sexto paciente foi o único a passar por um procedimento modificado: em vez de retirar a parte interna do pênis, foi retirada a parte interna do clitóris, além de passar pelo processo de engrossamento. “Por incrível que pareça, a anatomia do clitóris é idêntica à anatomia do pênis, tem os mesmos corpos cavernosos cilíndricos, só que menor. É como um pênis miniatura, meio que dobrado nele próprio”, explica.
Alguns hormônios também facilitaram o engrossamento do pênis de Marcelo*, que hoje tem 7,1 centímetros. “Obviamente que não tem a mínima extensão porque o pênis é maior do que o clitóris, tanto na parte externa como na parte interna. Então por isso que o homem trans vai ter também um pouco mais de limitação”, afirma.
Ainda assim, a cirurgia possibilitou a Marcelo ter, por exemplo, a experiência de urinar em pé. Barroso utilizou parte da mucosa interna da boca para fazer uma uretra que passasse pelo antigo clítoris até sua ponta, possibilitando que ele urinasse como um homem comum.
Outra surpresa neste caso foi confirmar que Marcelo pode se masturbar e ter uma forma de prazer diferente da que tinha antes. “A mulher se masturba de uma forma, mas o homem se masturba pegando. Hoje o Marcelo* está se masturbando. Ele disse ‘olhe, é um outro orgasmo’. Sabemos que o orgasmo também está muito na cabeça, então não se trata de dizer que o homem tenha mais ou menos orgasmo que a mulher. Mas ele está sentindo muito mais prazer”, afirma o médico.
O paciente mais recente foi João, a vítima de bandidos na Bahia. Ele já está de volta para casa, mas foi orientado a ainda não tentar o sexo com sua esposa, com quem é casado há 35 anos e tem quatro filhos - dois homens e duas mulher, que deram de presente a cirurgia para o pai. Ele foi o único a passar pelo serviço de forma particular e não pelo SUS.
O inventor da técnica aconselha que o paciente espere pelo menos dois meses para realizar o coito. De resto, entretanto, a recuperação é rápida e ele pode voltar a trabalhar cerca de 15 dias depois. A internação, contando pré e pós-cirúrgico, costuma levar de dois a três dias. Esse prazo pode aumentar caso precise de reconstrução da uretra, mas a cirurgia costuma levar cerca de oito horas.
Nenhum dos homens precisou de bolsa de sangue ou teve algum tipo de complicação. Quando a técnica começou a ser estudada, havia medo de que afetasse principalmente a artéria peniana, além da grande vascularização da região íntima. “É por isso que os procedimentos nunca tinham sido pensados, pois mobilizar esse osso traria muita lesão aos vasos. O que nós fizemos foi uma modificação técnica, mas que permite que seja feito o procedimento por dentro do osso e ainda aproveitamos essa porção óssea para fixar e garantir a ereção”, diz o urologista.
Aumento de pênis
Apesar de a técnica conseguir aumentar e até engrossar o órgão sexual masculino, Barroso só pretende adotar o procedimento para aqueles diagnosticados com micropênis, câncer peniano, mutilação ou redesignação de gênero.
Segundo o profissional, a maioria dos homens que acreditam ter pênis pequeno normalmente não o tem, sendo desnecessária uma intervenção cirúrgica. “Esses casos nunca foram tratados de maneira a ganhar significativamente no tamanho, mas na vida pessoal”, afirma.
Atualmente, o Brasil contabiliza mais de 500 casos de amputação de pênis por ano e não há dados concretos sobre o número de homens trans que pretendem fazer cirurgia de redesignação. A fila de espera de Barroso, segundo conta, já está na casa dos milhares, especialmente pelo fato de os procedimentos serem realizados pelo SUS. O profissional reforça que está em contato com diversos urologistas brasileiros e anuncia que, em breve, deve recuperar a vida sexual de um paulistano.