Ciência

Remédio para cólica tem efeito positivo no tratamento de esquistossomose

Experimento mostra que o anti-inflamatório ácido mefenâmico é mais eficiente do que o praziquantel, única droga disponível para o tratamento da verminose

Remédios: a esquistossomose atinge mais de 240 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS (REB Images/Getty Images)

Remédios: a esquistossomose atinge mais de 240 milhões de pessoas em todo o mundo, segundo a OMS (REB Images/Getty Images)

Isabela Rovaroto

Isabela Rovaroto

Publicado em 16 de agosto de 2019 às 09h29.

Usado amplamente no combate a cólicas menstruais, o anti-inflamatório ácido mefenâmico mostrou eficácia no tratamento da esquistossomose.

Em experimentos feitos na Universidade Guarulhos, com apoio da FAPESP, o medicamento reduziu em mais de 80% a carga parasitária em camundongos infectados com o verme Schistosoma mansoni. O índice ultrapassa o chamado padrão-ouro estipulado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para novos medicamentos.

Os resultados da pesquisa, publicada na revista EbioMedicine, do grupo Lancet, sugerem que o ácido mefenâmico pode ser mais eficiente do que o único medicamento existente para a doença, o praziquantel. Mas, para que o anti-inflamatório seja receitado contra a esquistossomose, será necessária a realização de testes em humanos com a verminose.

A descoberta deu-se a partir de um estudo de reposicionamento de fármacos conduzido no Núcleo de Pesquisa em Doenças Negligenciadas da Universidade Guarulhos. Foram analisados 73 anti-inflamatórios não esteroidais comercializados no Brasil e em outros países. De todos os medicamentos testados, cinco apresentaram eficiência no tratamento da infecção, sendo os resultados do ácido mefenâmico os mais promissores.

“Os testes in vitro demonstraram que o ácido mefenâmico afetou a motilidade e a viabilidade do parasita e também induziu um grande dano tegumentar [na superfície]. Ainda não se sabe exatamente o mecanismo de ação do ácido mefenâmico nesse tipo de infecção, mas isso não é o mais importante agora, pois os fármacos usados para tratamento das verminoses também não possuem mecanismos elucidados. Por isso, estudos de reposicionamento de fármaco são tão importantes para doenças negligenciadas, como a esquistossomose”, disse Josué de Moraes, professor da Universidade Guarulhos e autor do artigo.

A esquistossomose atinge mais de 240 milhões de pessoas em todo o mundo, de acordo com a OMS, e há 40 anos um único fármaco tem sido usado no tratamento da doença.

“Além do praziquantel não atuar em vermes jovens, ele apresenta limitações em relação à sua eficácia. Após tanto tempo sem nenhum tratamento alternativo e sendo o praziquantel receitado tanto para humanos como para uso veterinário, é esperado que o parasita tenha adquirido resistência à droga”, disse.

O ácido mefenâmico se mostrou mais eficiente em comparação ao praziquantel por agir também na fase larval do platelminto.

“Atualmente, é preciso esperar que os vermes jovens no paciente se tornem adultos para que o fármaco tenha efeito. Isso significa que, se o tratamento não for repetido, o ciclo de vida do parasita não é interrompido e o indivíduo continua com a doença. Pessoas infectadas, em um contexto de saneamento inadequado ou inexistente, tendem a contribuir para a disseminação dos vermes no ambiente e, consequentemente, expõem a população ao risco de infecção. É claro que o ideal seria um saneamento adequado, mas o ácido mefenâmico se mostra importante nesse aspecto da prevenção também”, disse Moraes.

Reposicionamento de fármaco

Moraes destaca que estudos de reposicionamento de fármacos têm se tornado mais comuns, sobretudo para as chamadas doenças negligenciadas, aquelas que embora afetem parcela significativa da população carecem de estudos, vacinas e tratamentos mais avançados.

Esse é o caso da esquistossomose, cuja transmissão está ligada a locais sem saneamento básico adequado e pelo contato de água com caramujos infectados pelos vermes. Uma vez infectado, o Schistosoma se aloja nas veias do mesentério e no fígado do paciente.

A doença, ainda sem vacina – existem estudos já avançados sendo realizados na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) –, é assintomática nas primeiras duas semanas, mas pode evoluir e causar problemas crônicos de saúde e morte.

“A descoberta e o desenvolvimento de um novo fármaco custam em média US$ 1,5 bilhão, dinheiro que não existe para doenças negligenciadas. Não há interesse comercial. Por isso estamos buscando ação contra o parasita em drogas já existentes e comercializadas. Isso possibilita cortar uma série de etapas, uma vez que não é preciso fazer testes clínicos sobre toxicidade, interação medicamentosa e outros. Ainda é preciso fazer testes em humanos, mas não todos. O processo todo fica muito mais barato”, disse Moraes.

O grupo do Núcleo de Pesquisa de Doenças Negligenciadas da Universidade Guarulhos também analisou o efeito de 13 diuréticos, amplamente comercializados, no verme Schistosoma. Os resultados foram publicados na revista Antimicrobial Agents and Chemoterapy, da American Society of Microbiology.

Entre os diuréticos, a espironolactona, indicado no tratamento da hipertensão, foi a única que nos testes in vitro teve ação contra o parasita. “No entanto, na comparação entre os dois estudos, o ácido mefenâmico continua sendo o mais eficiente”, disse Moraes.

O artigo Phenotypic screening of nonsteroidal anti-inflammatory drugs identified mefenamic acid as a drug for the treatment of schistosomiasis (doi: 10.1016/j.ebiom.2019.04.029), de Eloi M. Lago, Marcos P. Silva, Talita G. Queiroz, Susana F. Mazloum, Vinícius C. Rodrigues, Paulo U. Carnaúba, Pedro L. Pinto, Jefferson A. Rocha, Leonardo L.G. Ferreira, Adriano D. Andricopulo, Josué de Moraes, pode ser lido em https://www.ebiomedicine.com/article/S2352-3964(19)30268-3/fulltext.

O artigo In Vitro and In Vivo Studies of Spironolactone as an Antischistosomal Drug Capable of Clinical Repurposing (doi: 10.1128/AAC.01722-18), de Rafael A. Guerra, Marcos P. Silva, Tais C. Silva, Maria C. Salvadori, Fernanda S. Teixeira, Rosimeire N. de Oliveira, Jefferson A. Rocha, Pedro L. S. Pinto, Josué de Moraes, pode ser lido em https://aac.asm.org/content/63/3/e01722-18.

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